“Lamento a coincidência entre Evo e Milei”. Luis Arce

Derribando Muros entrevistou o presidente da Bolívia, Luis Arce, em La Paz. O diálogo abordou a questão do golpe de Estado frustrado de 26 de junho, o conflito político com o líder histórico do MAS, Evo Morales, e a situação económica do país.

Foto: Comunicação Presidencial

O presidente  Luis Arce Catacora  recuperou a Casa Grande del Pueblo que Evo Morales havia inaugurado em 2018 e a líder golpista Jeanine Áñez deixou de usá-la durante seu governo de facto. A rigor, é um edifício de arquitetura brutalista que substitui o Palácio Quemado, de design clássico europeu. Tem 29 andares, um heliporto e para chegar à sala onde o chefe de Estado nos receberá é preciso subir até o 23. Uma semana depois de  um grupo de soldados e civis chefiados pelo general Juan José Zúñiga ter tentado quebrar a ordem constitucional Esse tema ocupou a maior parte do diálogo com o economista que fez mestrado na Universidade de Warwick, na Inglaterra, e venceu as eleições de 2020 com 55,11% dos votos.

– Frustrada a tentativa de golpe contra o seu governo, e uma vez presos os seus líderes militares, o ex-presidente Evo Morales e o Chefe de Estado da Argentina, Javier Milei, ainda falam em autogolpe, que reflexão você pode fazer agora?

– O melhor são as evidências, que são mais claras do que qualquer discurso político. Compreendemos perfeitamente a lógica do Sr. Milei. Sabemos que ele defende a escola austríaca de Friedrich Von Hayek e toda essa história. Mas essa é uma questão puramente política, é uma posição política. Lamentamos que eles estejam assumindo essa posição. Um golpe de Estado ocorre quando há provas e vejam o que o General Zúñiga declarou. Ele falou sobre a reconstrução da democracia, que em breve haveria um novo gabinete. E as investigações que estão sendo feitas corroboram que isso não aconteceu simplesmente de um dia para o outro. Tinha uma lógica de construção retrógrada e de longo prazo. E não só pelas provas de que nesse mesmo dia, na manhã do golpe de Estado, os soldados estavam reunidos no Estado-Maior com os seus homólogos reformados que participaram no golpe de Estado de 2019 e com pessoal civil. Muita coincidência? Não é que apenas os militares estivessem lá. Aos poucos, vários aspectos de tudo isso vão sendo descobertos. Mais tarde descobrimos, porque naquela época não sabíamos, que havia atiradores de elite em La Paz trazidos exclusivamente de Cochabamba. Por que você precisaria de atiradores? Diga-me. E então a coisa mais clara. Dizem que é um autogolpe e é o que Zúñiga declara casualmente depois de ir para o Estado-Maior. E certamente seus assessores lhe disseram para falar isso, para justificar o não avanço da investigação para setores que deveriam estar comprometidos e desviar a atenção.

Imagem: cortesia da Comunicação Presidencial.

-Com que objetivo presidente?

-Para minimizar o efeito. Mas o povo boliviano sabe disso. Por isso ele saiu às ruas. Podem dizer o que quiserem e lamento a coincidência entre Evo Morales e Milei. Você não acha estranha essa coincidência?

– A saída dos militares com seus tanques em direção à Plaza Murillo não poderia ter sido um ensaio para um golpe de Estado para medir a capacidade de reação do povo boliviano?

– Claro. Felizmente conhecemos a história. O que aconteceu com Pinochet no Chile é um grande exemplo. Primeiro veio o  Tanquetazo  e depois o golpe final. Aqui na Bolívia, no dia 1º de novembro de 1979, houve um golpe de Natusch Busch e eu estava lá, muito jovem, na Plaza San Francisco defendendo a democracia. E em 80, em julho, veio o golpe final de García Meza, que foi sangrento. Mataram Marcelo Quiroga Santa Cruz e muitas outras pessoas morreram. Conhecemos a história e como para nós isso ainda não acabou, dizemos que deveria ser investigado. Temos visto nervosismo em algumas fileiras que se apressam em avançar a tese do autogolpe. Para ficarem à margem e que, caso acontecesse alguma coisa amanhã, já teriam o guarda-chuva político para se protegerem.

– Circula nas redes sociais um vídeo do general reformado Tomás Peña y Lillo que anuncia sua mudança para a clandestinidade. O que você pode nos contar sobre o assunto?

– Por que vai para a clandestinidade se não tem nada a ver com isso? Porque ele foi um dos que participou daquela reunião que lhe contei. Ele é um militar reformado que esteve lá e participou do golpe de 2019. As coisas estão claras e quem não quiser ver isso não deveria ver. Por isso lamento a posição do Evo, já que Milei o toma como fonte. Imagine o que estou dizendo (sorri). É como se Von Hayek tomasse Karl Marx como fonte ou Marx tomasse Von Hayek como fonte, mais ou menos. É um paradoxo.

– O governo argentino foi o último da região a se manifestar sobre a tentativa de golpe de Estado. Qual a sua opinião?

– Isso não me surpreende, não me surpreende.

– O senhor tem sido criticado pela sua oposição interna ao governo dos Estados Unidos pelos contactos que mantém com a China e a Rússia e também pelo seu encontro com Vladimir Putin.

– Nós, como país, já tomamos uma decisão. Pedimos para entrar no Brics. Participei da reunião quando a Argentina ia aderir como membro pleno e me disse: que inveja temos deles porque queríamos estar lá. E bem, agora vejam o que aconteceu na Argentina que rejeitou essa entrada. No nosso caso, a configuração do planeta a nível mundial é clara. O que está acontecendo. A fraqueza dos Estados Unidos, a fraqueza da União Europeia e também é claro que hoje temos e somos a maior reserva mundial de lítio. E também somos muito desejáveis ??porque temos minerais raros, terras raras, água doce que a chefa do Comando Sul já nos disse, está claro o que está acontecendo. É por isso que com todo este cenário não se pode dizer que não houve golpe de Estado. Com toda esta informação se poderia dizer que devido a cálculos eleitorais alguém poderia ficar cego para a realidade. A realidade é que sim, houve um golpe de Estado e eles sabem disso porque muitos participaram. Por isso há um certo nervosismo com as investigações que estão sendo feitas e tudo sendo esclarecido. O povo boliviano tem todo o direito de saber a verdade. Assim como aconteceu em 2019, ainda há coisas que não foram esclarecidas, como o envio de gases e armas da Argentina para a Bolívia para o golpe de Estado. Nós aqui vamos fazer todos os esforços para que o povo saiba a verdade sobre quem foram os atores, quem esteve por trás deles, mesmo que isso gere um nervosismo natural.

– Durante a entrevista ele falou muito sobre as provas. Há também evidências de fatores externos à Bolívia neste golpe?

– Isso está sendo investigado.

– Como está a relação diplomática com os Estados Unidos, que já era ruim até chegar ao ponto de ruptura durante os governos de Evo Morales?

– No início não tivemos problemas, mas ultimamente tem havido algumas ações que o encarregado de negócios aqui da Bolívia tem tomado e que têm sido reivindicadas pelo nosso Itamaraty. Não tivemos resposta a isso. Houve áudios que circularam nas redes sociais de supostas filmagens que o atual encarregado de negócios estaria fazendo e que nunca foram esclarecidos pelo governo norte-americano.

– Quando o entrevistei para  Derribando Muros  em 2019 como Ministro da Economia, o senhor ficou orgulhoso pelo facto de o coeficiente de Gini que mede a desigualdade nos países ter caído consideravelmente. Como está hoje?

– Quando ocorreu o golpe de 2019, a queda impressionante que tínhamos tido foi seguida de um aumento substancial do governo de facto e o que fizemos neste tempo todo é ter alcançado novamente os indicadores anteriores ao golpe de Estado. Recuperamos o caminho perdido e a tendência decrescente do coeficiente de Gini. Isto é, a redistribuição está melhorando felizmente graças às medidas que tomamos. Aplicamos um imposto às grandes fortunas, estamos devolvendo o IVA aos setores de menor renda e fizemos muitas coisas para acelerar, porque estávamos num índice de Gini muito elevado quando entramos no governo. Agora a situação está voltando ao normal e o modelo funciona e vamos resolver a questão econômica e os problemas sociais.

– É possível reconstruir a relação política com Evo Morales e garantir que o MAS não continue dividido?

– Quero primeiro esclarecer o seguinte. Nunca ataquei Evo Morales e ele me atacou durante toda a sua vida como governo desde 2021 e isso, para começar. Se alguém tem diferenças, é ele conosco e, como demonstramos, mantivemo-nos íntegros à esquerda. Não fechamos nem assinamos acordos com a direita, como afirmou Evo no Senado. Não concordamos com Milei nas declarações sobre o autogolpe. Somos homens de princípios, somos velhos militantes de esquerda, socialistas, por isso sabemos perfeitamente onde estamos e não recuamos nem um centímetro. Além do mais, eles não gostam do que fazemos no Norte com as relações que temos com a China, com a Rússia e com o Brics. Isso não significa que alguém esteja traindo os princípios esquerdistas, certo? A nossa posição política é clara. É ele quem tem que se definir.

Tradução: TFG, para Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.