Por Thiago Burckhart, para Desacato.info.
Kafka foi um escritor tcheco do início do século XX. Autor de romances e contos, Kafka é internacionalmente reconhecido em razão da crítica pontual e certeira que realiza em suas obras, críticas que relatam a burocracia, a alienação, a brutalidade do ser humano. Suas obras são ainda hoje estudadas no meio acadêmico, tanto nos cursos de Literatura quanto nos cursos de Direito, trazendo um acervo de temas muito contemporâneos que podem (e devem) ser contextualizados.
Em uma de suas obras mais conhecidas, Na Colônia Penal, Kafka conta a história de um explorador que visita uma ilha afim de conhecer o procedimento de pena de morte institucionalmente adotado naquele local. O procedimento é realizado por uma máquina onde condenado é inserido sem, entretanto, nem mesmo saber de sua própria sentença, nem mesmo tem o direito ao contraditório e ampla defesa. Tal máquina, antes de realizar o procedimento de morte do condenado, tatua em sua pele a sentença, sendo essa a marca do “desvio” do condenado em sociedade.
Trata-se de um suplício, inclusive acompanhado por habitantes da Colônia, sendo muito similar àquilo que Foucault chamou de demonstração de poder Estatal. A tatuagem é o símbolo da opressão estatal, que é, evidentemente, mostrado a todos aqueles que querem ver. Antes da morte, a máquina produz a marca da sentença no condenado em seu próprio corpo, que posteriormente é ostentado como símbolo do poder.
A tirania das marcas
É evidente que a máquina relatada no conto de Kafka não existem na realidade (ou, pelo menos, espera-se que não exista!), mas o efeito que elas visavam produzir nos corpos dos condenados naquele conto ocorre em nossas sociedades, em grande medida sem mesmo percebermos.
De fato, existe um controle biopolítico dos corpos, que estampa na corporalidade as marcas de cada indivíduo. As marcas desses corpos são criadas no plano da linguagem, por meio de discursos, que podem servir para vangloria como para subjugar. As marcas não são somente estampadas na face dos condenados pelo sistema penal hodierno, mas se estendem para um leque muito maior de sujeitos marcados por sua própria condição culturalmente considerada “inferior”.
As marcas, contudo, são um instrumento do poder, pois são ditadas por aqueles que o detêm, e condenam os “emprestáveis” de nossa sociedade pautada na lógica capitalista e individualista à morte. Morte que nem sempre ocorre literalmente, mas sobretudo subjetiva e representativamente. Morte daqueles corpos que não se adequam aos padrões privilegiados, e que ostentam o símbolo da tortura que carregam em suas costas somente por sê-lo.
Não é à toa que autores afirmam que o poder recai de modo mais forte nos corpos marginalizados política, social, cultural e etnicamente. Corpos como o de Vitor, o bebê indígena morto no litoral de Santa Catarina com uma lâmina enfiada em seu pescoço; corpos dos negras e negros assassinados pelo aparato policial diariamente nas favelas das grandes cidades brasileiras; corpos das travestis e transexuais mortos em todo o país (o Brasil lidera mundialmente o número de mortes de travestis e transexuais); corpos dos LGBTs mortos por não se adequarem ao “padrão sexual”; corpos dos palestinos que vivem em constante pavor em razão do grande genocídio a céu aberto que ocorre naquele país… corpos de todos os que são “indesejados” tanto pelo poder, quanto por um moralismo cego e desmedido.
A sentença que simbolicamente se inscreve em seus corpos é assinada pelo preconceito, sentença de ódio que vocifera a tirania das marcas, que divide o mundo entre inferiores e superiores, bons e ruins, justos e injustos. E que são o caminho para a precarização da vida, no sentido em que Judith Butler assim o define, isto é, como a impossibilidade de criar laços sociais, de serem reconhecidos como sujeitos, como cidadãos, como seres humanos tanto pelo Estado, como pela maior parte da sociedade.
A esses corpos são negados os direitos básicos e a possibilidade de construir uma vida digna, e em razão disso, (sobre)vivem nas margens, nas bordas, nos cantos, são condenados e marcados somente em razão de ser.
A metáfora que aqui se faz a partir da obra de Kafka é uma forma de relembrar que as marcas ainda nos assombram, ainda marcam espaço em nossa convivência social, e ainda geram uma série de atrocidades na vida em sociedade. A tirania das marcas é por si só a marca da degradação humana, da incompreensão, do fundamentalismo que marcam nosso tempo, tempos tão sombrios.