Torturas, linchamentos e justiça feita com as próprias mãos pela sociedade civil evidenciam cada vez mais a linha tênue que existe no país entre a democracia e a barbárie.
Por Ivan Longo.
O significado da palavra “justiceiro”, no dicionário, está ligado àquele que se empenha na aplicação da justiça, que é severo e rígido no fazer cumprir a lei. Mas, em uma sociedade na qual compete ao Estado a aplicação das leis, o significado da palavra “justiceiro” toma um sentido diferente e passa a ser atributo de quem viola as normas vigentes para fazer , supostamente, “justiça”.
As ações de pessoas ou grupos que tentam fazer valeu seu próprio código moral, mesmo à margem da lei, tem ganho repercussão. O caso mais notório foi o do jovem de 15 anos que foi preso nu a um poste, no Rio de Janeiro, por um cadeado de bicicleta, ocorrido em 31 de janeiro. Desconfiados de que o adolescente pudesse ser um assaltante, um grupo com cerca de 14 outros jovens o espancaram a pauladas, tirando-lhe, inclusive, uma parte da orelha. Uma artista plástica que passava no local viu o menino preso e denunciou o caso nas redes sociais. Dois suspeitos de terem prendido o garoto ao poste foram detidos pela polícia, mas acabaram sendo liberados depois de pagar fiança.
O episódio ganhou grande repercussão na mídia principalmente depois que uma apresentadora de telejornal, Rachel Sheherazade, expressou, ao vivo, sua opinião sobre o caso, apoiando a atitude dos justiceiros. Ao mesmo tempo em que inúmeras pessoas expressaram indignação diante da declaração da jornalista, outra parcela da sociedade não só concordou com sua opinião como também aprovou esse tipo de atitude dos chamados “justiceiros”. Essa tendência em apoiar esse tipo de ação só é fortalecida à medida que os casos, que não são novos, não cessam. Em meio à repercussão da notícia do jovem acorrentado, o deputado federal Fernando Francischini (Solidariedade – PR) chegou a chamar as pessoas que cometem atos de tortura e linchamento contra supostos criminosos de “gente do bem”.
No mês passado, um outro episódio parecido ganhou as manchetes internacionais. Foi divulgado nas redes sociais um vídeo em que um homem, suspeito de assalto na periferia de Teresina, é arremessado por duas pessoas sobre um formigueiro, com pés e mãos amarrados e marcas de agressão no rosto. Enquanto ele agonizava de dor, é possível ouvir pessoas perguntarem: “Agora você lembra de Deus? Quando roubava, não lembrava, né?”. Após recorrentes notícias de linchamentos e justiçamentos no país, um jornal estrangeiro se referiu ao caso como “justiça à brasileira”. Na ocasião, novamente, ninguém que participou do linchamento foi preso.
Até hoje não existe uma contabilização formal de quantos casos de justiça feita com as próprias mãos aconteceram ao longo da história ou mesmo recentemente, isto por que esses casos, na maior parte das vezes, sequer são registrados e, quando são, ficam arquivados sob diversas outras tipificações. Essa prática, no entanto, ganha e perde visibilidade com o passar do tempo. Não é preciso recorrer a arquivos para saber que a “justiça à brasileira” é algo que está incorporado no seio da sociedade e que, os casos mais recentes, talvez só tenham tido tanta visibilidade por conta da disseminação informações pelas redes sociais.
Mentalidade punitiva: a lógica dos justiceiros
O mais antigo episódio do gênero que sem tem notícias no país, de acordo com pesquisa feita e publicada em artigo pelo sociólogo José Martins de Souza, aconteceu em 1585 em Salvador, na Bahia. Na ocasião, Antônio Tamandaré, um índio que liderava um movimento messiânico, foi espancado, estrangulado e teve a língua cortada por inúmeras pessoas, inclusive por outros índios que o seguiam.
Para o sociólogo, esse tipo de comportamento é completamente alheio às tradições tribais, e foi trazido a partir de uma cultura punitiva branca, católica e inquisitorial, que, na visão de Eduardo Pazinato, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, permeia até hoje na mentalidade da maior parte dos brasileiros. “A questão que está de fundo nessas práticas de ‘auto justiça’ está relacionada à cultura de punição, que se dá a partir do emprego da dor, mesmo que essa punição se dê de forma apartada de uma instituição político-organizacional. Temos um problema estrutural. Antes de ser político, é socio-cultural, faz parte das representações sociais da própria relação com o outro, pautada pela lógica punitiva, aponta. “Temos um conjunto de concepções sobre segurança que estão amparadas por essa lógica. Encarceramento em massa, assassinatos de criminosos, punições que violam os direitos humanos e justiçamentos são práticas tratadas pela sociedade como legítimas, infelizmente.”
O coordenador geral do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Rildo Marques, alerta, porém, que a ação de justiceiros não provém somente da mentalidade da sociedade em si que carrega consigo uma concepção de punição para resolver o problema, mas também da deficiência do Estado em participar dos conflitos da comunidade e prover segurança. “O Estado está muito ausente nessa questão de justiça. Não prioriza o diálogo entre a sociedade pautado nos princípios de justiça, de maneira que essa própria cultura social punitiva só é ampliada com isso. O sistema de justiça é completamente aquém das necessidades. Não acessa e nem é acessado nos bolsões onde mais ocorre a violência”.
Marques aponta ainda que a descrença da população em relação à polícia e ao sistema de justiça é outro fator agravante. “A ausência do Estado somada à falta de entendimento da população de como fazer o controle da segurança, faz a sociedade querer agir por conta própria. Falta uma política educacional, um debate com a população. Não há espaços públicos para debater a contenção da violência. É muito comum ver, no centro das cidades, no metrô, ou seja lá onde for, alguém ser assaltado e a população se revoltar. Isso ocorre não pelo ato em si, mas por saberem que não haverá nenhuma punição”, pondera. “A violência fugiu ao controle. As pessoas se sentem acuadas em ver um crime organizado cada vez mais implicado com a polícia. Ainda há, por parte da polícia, um trabalho muito ineficiente no caráter preventivo e investigativo.”
Ariadne Natal, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), vai além para explicar as origens deste tipo de atitude. “Trata-se da soma de alguns fatores e as justificativas para isso acontecer mudam ao longo dos anos e da situação. Nos anos 80, por exemplo, a principal justificativa em episódios do tipo, era a ausência do Estado. Com o tempo, aparecem mais motivos alegados, estes, por sua vez, em relação à insuficiência desse Estado em termos de resposta adequada. A polícia prende mas solta, não é capaz de fazer uma investigação adequada. A questão da vingança também é algo que permeia, ao invés de usar o Estado como mediador, faz-se justiça com as próprias mãos, o que é algo completamente ilegal e uma resposta conservadora que passa por cima de tudo aquilo que temos como base numa sociedade, a democracia”.
Democracia em risco
O último caso noticiado pela imprensa em que houve ação de justiceiros ocorreu em Sorocaba, interior de São Paulo, no mês passado. Um adolescente furtou um frasco de xampu em um pequeno supermercado e, ao perceber, o dono do estabelecimento o abordou na rua e o espancou. Poucos minutos depois, dezenas de vizinhos participavam da ação vexatória, desferindo socos, chutes e pauladas contra o garoto. Com afundamento no crânio, o jovem foi levado ao hospital e, mais uma vez, ninguém foi preso.
Apesar da frequência com que casos assim acontecem e da fria naturalidade com que as pessoas os tratam, Rildo Marques acredita que é preciso dar mais atenção a esse tipo de violência e que uma mudança de postura do Estado é urgente. “Se isso não for coibido, se essas pessoas não forem procuradas para um diálogo e se não reciclar esse diálogo em processos pedagógicos de educação, direitos humanos e cidadania, se não levarmos para o sistema judiciário, ainda que falho, vamos provocar a barbárie. Se isso não for tratado com seriedade vamos chegar a uma sociedade que não tem lei, cada um por si. Será criada uma crise de convivência social muito grande, as pessoas vão voltar a andar armadas e aí, na minha concepção, se instabilizará a pouca paz social que ainda existe. Nos grandes bolsões de pobreza isso já acontece e as pessoas vivem com leis próprias”, prevê Marques.
A moda dos justiceiros, pelo visto, é amarrar as vítimas em poste. O homem da foto teria praticado um furto, em Santa Catarina. (Foto: reprodução/Facebook)
Pazinato, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, conta com consequências ainda mais graves. Para ele, a própria democracia está em risco. “Não trato nem como uma crise, por que se crise fosse já teria sido superada. É um problema crônico que temos no Brasil em relação à violência. De alguma forma, é derivado dessa percepção social de que apenas com mais violência, seja por pessoas ou seja pelas instituições públicas, conseguiremos resolver os problemas. Não só não conseguimos como acabamos por acirrar esses problemas”, acredita. “Quanto mais punições, desabrigo das garantias de direitos individuais, mais encarceramentos, mais esse ciclo vicioso se reproduz pela sociedade. É um risco para a democracia. A partir do momento que deslegitimamos o sistema de justiça, acabamos por desconstruir os canais de processamento, de administração dos conflitos e fragilizamos o estado democrático de direito, que é um mecanismo de organização social que deve estar pautado pela garantia dos direitos humanos. Um último aspecto consequente dessa mentalidade punitiva é a reprodução do sentimento de medo e insegurança. Isso abala as relações humanas. As pessoas se relacionam cada vez menos, moram em condomínios fechados. Isso vem justamente ao encontro desse ciclo vicioso de produção (por parte da Justiça) de violência e de reprodução (por parte da sociedade)”, pontua Pazinato.
Sistema falido
A lógica punitiva como ferramenta de manter a ordem social que permeia a mentalidade das pessoas é, em grande parte, reflexo direto de um sistema de justiça falho, inacessível aos mais pobres, que conta com uma polícia extremamente repressiva e seletiva. Ainda que o Judiciário tente se fazer mais presente, de nada adiantaria para resolver o problema da violência, civil ou institucional, pela próprio conceito de distinção que existe no interior do sistema. É o que aponta Rildo Marques. “Uma pesquisa recente da USP revelou que o sistema de justiça no Brasil é composto em 98% por pessoas com origem de classe mais abastada. Só nessa composição já verifica-se que há uma estratificação social, o que impede o diálogo. As próprias decisões só são eficientes nos casos contra os chamados colarinho branco, contra o patrimônio, e não é eficiente em crimes contra a vida. Isso faz a sociedade se afastar do sistema de justiça”.
A questão da seletividade do sistema judiciário, para Pazinato, é outro problema crônico que se soma à ineficiência da polícia para investigar e prevenir a criminalidade. Para ele, as pessoas estão descrentes das políticas públicas como um todo. “As pessoas começaram a questionar cada vez mais a baixa qualidade das políticas públicas. Quando restringimos isso à polícia, nós percebemos uma baixa qualidade de investigação criminal. De cem pessoas que matam, 8 são identificadas. A condenação é menor ainda, entre 1% e 3%. Apesar de algum esforço, temos um nível bastante diminuto de identificação de responsabilidades”, avalia. “Somado a isso, temos outra questão: o perfil dos encarcerados no Brasil continua sendo o de pobres, negros e jovens. Evidentemente isso se dá por que o filtro de atuação do sistema penal continua focado nessa distinção social. Nós não temos esse grau de indignação social contra os crimes de colarinho branco, mas temos quando é um simples assalto, principalmente praticado por um jovem negro e pobre. Essa seleção continua sendo fator fundamental de distinção e ao mesmo tempo de embasamento dessa cultura punitiva. Por conta disso, esses jovens acabam sendo os inimigos do direito penal e também os inimigos dessa cultura punitiva”, pontua.
E agora, o que fazer?
Para combater a mentalidade de punição e violência como forma de estabelecer ordem e ainda prezar pela democracia, isto é, evitar que casos que envolvam justiceiros voltem a acontecer em detrimento da atuação da Justiça, os especialistas em segurança e direitos humanos são unanimes: precisamos, urgentemente, de reformas estruturais no sistema judiciário e nas políticas públicas de cidadania. Mas uma mudança de concepção sócio-cultural não acontece de uma hora para outra. A cultura repressiva acompanha o seio da sociedade brasileira desde os seus primórdios e, para que cheguemos a um patamar estável de segurança e convivência, é preciso enfrentar inúmeros desafios que envolvem, inclusive, a questão da desmilitarização.
“Precisamos pensar em uma organização social na qual haja mais participação das pessoas. Não adianta ter uma política pública que queira chegar a elas se não tiverem a possibilidade de participação. As delegacias não podem ser apenas repressivas, a própria polícia tem que ter uma outra concepção de atender, de prevenir. Tem que haver espaços que promovam diálogos sobre como construir processos de segurança cidadã, com base na democracia constitucional, o sistema prisional tem que reinserir, e não excluir. E não é só a polícia em si, mas a Justiça como um todo, que tem, em sua concepção, uma origem num programa militar, o Pacto de Washington. O Brasil adotou um modelo de segurança pública em detrimento de um programa de segurança.
social. A ditadura de 64 mexeu e militarizou as polícias, as escolas, as universidades…”, analisa. “E não podemos esquecer que, para mudar a concepção da Justiça, é primeiro preciso fazer esse debate com a sociedade sobre um novo modelo de segurança. Segurança deve ser compactuada, e não imposta. A segurança cidadã, social, é um processo que tem que se compactuar com o coletivo, não se pode centralizar em uma única ordem, um único secretário. A polícia tem que ser desmilitarizada mas o sistema de justiça como um todo também. Dessa lógica militar da Justiça que vem o alto índice de encarceramento.”, explica Rildo Marques.
Marques ainda fez uma comparação para evidenciar como seria um sistema judicial mais presente na sociedade, o que contribuiria para evitar os episódios de justiça por conta própria. “Berlim, por exemplo, tem 3 milhões de habitantes e 300 varas cíveis. Na cidade mais populosa da América do Sul, São Paulo, com 12 milhões de habitantes, as varas cíveis não passam de 100. A Justiça, além de ausente, é cara e inacessível.”
É exatamente por isso que Fórum Brasileiro de Segurança Pública, segundo Pazinato, vem lutando para se criar um debate nacional em torno da reforma do sistema de segurança e justiça no país. “Precisamos de uma profunda reforma que possa justamente recolocar as questões nos devidos lugares. O acesso da população à Justiça é diferenciado, principalmente o da população mais pobre. Precisamos equalizar isso, por exemplo, fortalecendo a defensoria pública e métodos alternativos de resolução de conflitos. É preciso fazer projetos que lidem com a capacitação de lideranças comunitárias, pautadas na lógica de mediação. Precisamos é de uma grande pactuação republicana, que possa ser induzida pelo Estado mas que garanta um debate ampliado em relação a isso”, sustenta.
O caminho para chegar a um sistema de justiça efetivamente pautado na garantia dos direitos humanos, bem como a mudança na mentalidade da população, acomodada com a cultura repressiva, é longo e exige esforços. Se houver, no entanto, apenas um impulso inicial para esse debate, já é um grande avanço para uma nova realidade, conforme aponta o coordenador geral do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Rildo Marques: “É preciso que a Justiça mude o conceito do seu papel. A polícia tem que ser educadora antes de qualquer processo de repressão. É o Estado que tem que tem que dar impulso a esse debate para, aí sim, até dentro de um olhar mais utópico, projetar uma outra sociedade”.
*Foto: Correio do Brasil
Fonte: Revista Fórum