O problema de fundo, se bem compreendido, ajuda-nos a entender por que o MP brasileiro é singular no quadro das democracias contemporâneas: trata-se de uma instituição capaz de representar a sociedade sem se deixar vincular diretamente a ela
O Ministério Público (MP) é uma instituição estatal que integra o sistema de justiça. Em termos substantivos, sua principal função é promover a ação penal pública nos casos previstos em lei. Em termos formais ou processuais, sua principal função é a de custos legis, isto é, atuar como fiscal no processo de aplicação da lei. Quanto à primeira, sua atuação se impõe pela obrigação estatal de zelar pelo direito à vida, cabendo ao MP levar adiante todos os casos de lesão criminal que baterem à sua porta por meio, principalmente, do inquérito policial. Quanto à segunda, sua presença no processo não se dá como parte ou autor, mas como elemento interveniente a zelar pela observância da lei no julgamento de casos concretos.
O MP está estruturado em todo o território nacional, acompanhando de perto a estrutura federativa em geral e a do Judiciário em particular. Assim, no plano da União temos os ministérios públicos Federal, do Trabalho e Militar, que atuam perante as respectivas justiças especializadas (devemos incluir na alçada da União também o MP do Distrito Federal e Territórios). Nos estados, temos os MPs estaduais que atuam perante a justiça comum, civil e criminal. Somando todos os promotores e procuradores de justiça em atividade nesses diversos ramos, o MP dispõe hoje de pouco mais de 10 mil integrantes no país.
Nas últimas décadas, o Ministério Público conheceu inigualável desenvolvimento institucional, seja em comparação com períodos anteriores, seja em comparação com seus congêneres mundo afora. A instituição conta com autonomia funcional e administrativa e seus integrantes gozam das mesmas garantias que os membros da magistratura. Ao contrário do que muitos afirmam, esse desenvolvimento não teve início com a Constituição de 1988, mas remonta ao regime anterior, mais precisamente ao ano de 1973, quando um novo Código do Processo Civil (CPC) autorizou o MP a intervir em todos os processos nos quais o “interesse público” estivesse presente. Embora a intenção inicial da medida fosse a defesa dos interesses da administração pública, a formulação do artigo 82 do CPC permitiu que o MP passasse a explorar a ideia de que o interesse público não se restringia aos interesses do governo e de suas agências, mas dizia respeito aos interesses mais amplos da sociedade. Teve início ali sua bem-sucedida trajetória de separação do Poder Executivo e de afirmação como representante da sociedade, da qual a Constituição de 1988 é ponto de chegada, e não de partida.
Foi também durante o regime militar que o MP obteve sua primeira Lei Orgânica Nacional, em 1981. O ponto mais importante da Lei Complementar n. 40 foi definir o MP como instituição permanente e de caráter nacional. Sob a Constituição da época, somente as Forças Armadas gozavam dessas mesmas condições. A nacionalização do MP permitiu que competências, garantias e vedações introduzidas pela Lei (e daí em diante por todas as leis seguintes) fossem uniformemente aplicadas aos MPs estaduais e da União. Às portas da Assembleia Constituinte de 1987-88, o MP já era uma instituição unificada e com projeto razoavelmente claro acerca do lugar a ser alcançado na nova Constituição. Poucos observaram esse fato, mas a definição de Ministério Público na lei de 1981 é a mesma que remanesceu na Carta de 1988. A única diferença é que o texto de 1988 acrescentou a expressão “defesa do regime democrático”, algo que seria insólito no regime anterior. Sinal de que houve mais continuidade do que ruptura na transição democrática é também o fato de que a instituição comemora seu Dia Nacional em 14 de dezembro, data em que foi promulgada a lei de 1981.
Outro passo decisivo do processo de desenvolvimento do MP se deu com a Lei da Ação Civil Pública (ACP), de 1985, que lhe conferiu legitimidade para atuar na defesa de interesses difusos e coletivos, como meio ambiente, consumidor e patrimônio histórico e cultural. A atuação do MP na esfera cível se restringia até então à defesa dos chamados incapazes, tais como os menores de 16 anos, “os loucos de todo gênero”, “os surdos-mudos”, “os pródigos” e “silvícolas”, nos termos do Código Civil da época. A legislação sobre direitos difusos e coletivos, iniciada com a Lei da ACP e depois expandida por novos textos legais na esteira da Constituição de 1988, seria caracterizada pela mesma ideia de hipossuficiência – desta feita da sociedade civil – para justificar a atuação do MP na defesa daqueles direitos. Se sua presença tutelar no processo civil estava originalmente condicionada a situações de incapacidade jurídica de determinadas pessoas e/ou indisponibilidade de direitos, a ampliação das hipóteses de atuação do MP nessa esfera teria de obedecer necessariamente àqueles critérios, do contrário seria injustificável. Foi por essa via que se conferiu ao MP uma espécie de representação extraordinária da sociedade, pela qual está legitimado a representar interesses e direitos coletivos sem que haja autorização ou mandato explícitos e intencionais por parte dos representados. Assim, a evolução recente dos direitos coletivos e do MP no Brasil não deixa de conter um importante paradoxo: o mesmo processo que levou ao reconhecimento da dimensão coletiva e social de certos direitos – rompendo com o princípio individualista do ordenamento jurídico tradicional – qualificou a sociedade civil como hipossuficiente ou incapaz de defender seus próprios direitos e habilitou uma instituição do próprio Estado a agir em nome dela.
Por fim, a Constituição de 1988 consolidou o ciclo de transformações anteriores, atribuindo ao MP independência em relação aos demais poderes de Estado. Na ordem constitucional anterior, a instituição era subordinada ao Poder Executivo e agia segundo seus critérios, no plano federal e nos estados. Com a nova Constituição, o MP conquistou independência em duas dimensões, externa e interna. Na primeira, o MP conquistou autonomia funcional e instrumentos de autogoverno, sem que tivessem sido acompanhados de mecanismos de prestação de contas horizontal ou do tipo de controle que ocorre por meio de eleições populares. Seus membros ingressam na instituição por meio de concurso público e, internamente, gozam de garantias como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos, o que lhes confere alto grau de independência funcional e controle completo sobre as ações que conduzem. No Brasil, a autonomia dos promotores e procuradores assemelha-se à dos juízes, e a ideia de independência para julgar se estendeu também à função de acusar.
Em resumo, o Ministério Público brasileiro se distingue de outros por combinar um amplo leque de funções na defesa de interesses coletivos da sociedade e altos graus de independência institucional e discricionariedade de ação na área cível. Embora esse modelo tenha sido o responsável por elevá-lo a uma condição de quase quarto poder, também a ausência de mecanismos de controle de sua atuação – seja para impor sanção nos casos de abuso de autoridade, seja para cobrar a instituição nos casos em que se omite – tem sido objeto de crítica acirrada. O problema de fundo, se bem compreendido, ajuda-nos a entender por que o MP brasileiro é singular no quadro das democracias contemporâneas: trata-se de uma instituição capaz de representar a sociedade sem se deixar vincular diretamente a ela. A ausência de vínculos diretos é tida por muitos como condição para uma atuação técnica e que almeja neutralidade. Para os críticos, é uma quimera, pois a política sempre encontra uma forma de se reinstalar, e nenhuma instituição com poder de fogo e que tenha por função agir em nome de outros estaria imune à politização.
A questão da accountability do MP se torna mais importante na mesma medida em que sua presença na vida política do país se torna mais intensa. Hoje o MP não se restringe a defender determinados interesses coletivos, mas ele interfere na realização de políticas públicas e busca controlar a própria conduta dos ocupantes de cargos públicos, nos mais diversos escalões da República. Sua presença se fez cotidiana, e nas comarcas de todo o país é comum assistirmos aos mais diversos casos de protagonismo envolvendo promotores e procuradores na defesa do interesse público. Na década de 1990, uma estratégia dominante na consecução desses objetivos foi a aliança do MP com a mídia, especialmente com o chamado jornalismo investigativo. A reação da classe política contra essa associação não tardou e veio na forma da proposta de uma lei da “mordaça”, jamais aprovada pelo Congresso Nacional.
Outra disputa importante tem se dado entre o MP e as polícias. Para entendê-la é necessário mais um breve recuo histórico. No contexto da redemocratização, as instituições policiais foram duramente criticadas por sua associação com o regime autoritário, mas também por sua ineficiência na condução da própria investigação criminal. Embalado pelas conquistas dos anos 1970 e 1980, o MP se lançou à tarefa da investigação e, com menos êxito, também à de controle externo da atividade policial. A lei da ACP de 1985 já havia conferido uma arma poderosa a promotores e procuradores: o inquérito civil. Por meio dele, o MP passou a realizar verdadeiras investigações, sem a participação da polícia e sem o controle do Judiciário. Num contexto marcado por escândalos de corrupção, pela ineficiência policial e pela morosidade da justiça, a investigação por meio do inquérito civil permitia a promotores e procuradores contornar o inquérito policial e o foro privilegiado das autoridades, aumentando teoricamente as chances de sucesso de suas iniciativas. No processo de afirmação institucional do MP da década de 1990, houve mesmo quem propusesse a extinção do inquérito policial, sem falar da controversa ideia de entregar ao Ministério Público a direção exclusiva dos trabalhos de investigação.
Passados quase trinta anos de experiência com o inquérito civil e mais de vinte anos com as ações de improbidade administrativa, os resultados desse modelo podem ser considerados muito modestos, por múltiplas razões que não cabe aqui expor. O fato é que nos últimos anos o inquérito policial vem recuperando o prestígio graças às famosas operações da Polícia Federal no combate à corrupção e ao crime organizado. Tais operações têm produzido dois deslocamentos importantes: o combate à corrupção política tem migrado da esfera cível da improbidade administrativa para a esfera criminal, e do plano estadual para o nível federal, com a participação ativa e cada vez mais articulada das instituições de controle administrativo, policial e judicial da União. Em poucas palavras, promotores de justiça estaduais cederam a frente da cena política a delegados da Polícia Federal, e por trás desses atores específicos há um terreno institucional em profunda transformação.
Nesse novo contexto, faz-se inteligível a reação de segmentos da corporação policial contra o MP, numa espécie de ajuste de contas em relação às investidas do segundo sobre os primeiros, ocorridas nos anos 1990. Duas propostas em tramitação no Congresso Nacional visam, direta ou indiretamente, restringir o trabalho de investigação por parte do MP: o Projeto de Lei n. 6.745/2006 submete o inquérito civil a controle judicial e a Proposta de Emenda à Constituição 37/2011 estabelece a investigação criminal como tarefa privativa das polícias federal e civil dos estados, afugentando o MP desse terreno. Não por coincidência, as duas propostas têm como autores deputados que são ex-delegados de polícia.
O debate em torno de prerrogativas e atribuições do MP vis-à-visa outras instituições sugere que sua condição não está consolidada e que a democracia brasileira, nesse âmbito, não logrou estabelecer ainda um marco jurídico claro das relações entre justiça e política. É verdade que o MP goza hoje de amplo reconhecimento da opinião pública e que os poucos casos de desvio de conduta de alguns de seus integrantes não foram suficientes para macular sua imagem. Entretanto, nosso argumento é que o modelo institucional que elevou o MP à condição de ator político encerra uma tensão inevitável, e a instituição continuará enfrentando o desafio de assegurar sua independência como órgão do sistema de justiça a cada nova tarefa política a que se lançar. Nesse equilíbrio delicado, é bastante provável que nenhuma das contundentes mudanças institucionais cogitadas de lado a lado desde os anos 1990 seja realmente aprovada, permanecendo, contudo, como espadas de Dâmocles, penduradas por um fio sobre a cabeça de quem se viu alçado a uma singular condição de poder.
*Professor doutor do Departamento de Ciência Política e coordenador da Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo.
Fonte: http://www.adital.com.br