Por Renato Santana.
A Justiça Federal de Barra do Garças (MT) decidiu pela manutenção de posse dos 2.500 hectares da aldeia Porto Velho, município de Luciara, ao povo Kanela do Araguaia, que vem sendo ameaçado de expulsão por pretensos proprietários. O juiz Francisco Vieira Neto determinou ainda a Manoel Botelho Feijó, um entre os vários indivíduos que afirmam ter escrituras da mesma terra, que retire as cercas instaladas na aldeia entre o final de 2015 e agosto deste ano – sob pena de multa diária de R$ 1 mil.
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou a ação pedindo a manutenção de posse depois de receber denúncias dos próprios indígenas. “Filmamos as conversas com o senhor Manoel, a instalação das cercas e registramos as ameaças. Levamos ao procurador e mostramos o quanto está perigosa a situação pra gente”, explica o cacique Lucas Kanela. A decisão da Justiça Federal, todavia, não se restringe apenas a Feijó, mas a todos que tentam retirar os indígenas da terra tradicional e a esbulham.
No último dia 29 de julho, duas caminhonetes com oito homens não identificados chegaram à aldeia Porto Velho. Disseram para os Kanela que estavam no local porque eram os proprietários da terra. Cacique Lucas afirma que é comum também em outras aldeias Kanela da região mais de um ‘proprietário’ aparecer mandando que as comunidades se retirem porque possuem documentos confirmando a posse. “Isso é tudo resultado das grilagens. Gente que nunca vimos aqui”, diz o cacique.
Em consulta às placas dos veículos, um pertence à empresa Sedmar Serviços Especializados e Transporte Maringá Ltda., cujos donos foram notificados pela Justiça, e o outro a Valtenis Antônio Camargo, também requerido. Os homens que ocupavam as caminhnetes disseram que voltariam ali em 16 dias com a polícia. Em 26 de agosto, agentes da Polícia Civil de Luciara estiveram na aldeia e fotografaram a comunidade – sem autorização do povo e tampouco comunicado à Funai.
“A própria existência de processo administrativo de demarcação da Terra Indígena em trâmite na Funai implica em dizer que, ao menos nesta fase inicial, eventuais atos de turbação dos requeridos não possuem o condão de retirar da parte autora a posse da totalidade da referida área”, disse o juiz em sua decisão. Ele afirma ainda que é possível comprovar na farta documentação acostada à ação que os Kanela do Araguaia vivem há pelo menos 60 anos na terra reivindicada como tradicional.
Argumentação do MPF
De acordo com a argumentação do MPF, a posse dos Kanela é demonstrada pelos estudos de qualificação de reivindicação da terra indígena – etapa inicial do procedimento de demarcação em condução pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A ocupação foi atestada ainda por diversos órgãos públicos, incluindo estudos antropológicos do próprio MPF. Com o autorreconhecimento dos Kanela, afirma o MPF, as aldeias passaram a sofrer pressões dos “supostos proprietários rurais da região”.
“Os primeiros membros da etnia Kanela-Apanyekra”, explica o procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis, “aportaram no Vale do Araguaia após intensos conflitos pela posse da terra em sua região de origem, no município de Barra do Corda, no Maranhão. Refugiaram-se e assentaram-se na região do Araguaia ainda na primeira metade do século XX. No período, diversos grupos da etnia Kanela, fazendo semelhante trajeto, instalaram-se nos munícipios de Luciara, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia e Canabrava do Norte, todos na região nordeste do estado de Mato Grosso, formando os quatro troncos familiares nos quais atualmente se organiza a comunidade indígena”.
Conforme os estudos do relatório de qualificação da Funai, os Kanela do Araraguaia saíram da aldeia Morro do Chapéu, município de Barra do Corda, no Maranhão, devido a perseguições e assassinatos causados por fazendeiros que tinham interesses nas terras que ocupavam. “Seguiram para outras aldeias Kanela, Olho D’Água das Cunhãs e Fortaleza dos Nogueiras, sempre com intuito de fugirem das perseguições que sofriam, até que cruzaram o Rio Tocantins para o estado de Goiás, atual Tocantins, o destino era o local conhecido como Barreira do Gado, Ilha do Bananal”,diz trecho do estudo.
Então seguiram para o povoado de Antônio Rosa, município de Santa Terezinha (MT). Em 1955, outro grupo chegou em Mata Verde, em Luciara. Quando lá chegaram encontraram parentes que haviam migrado para aquela região anos antes, a família de Júlia Pereira Rocha e Cândido Ferreira Rocha, morando às margens do rio Tapirapé, localidade da atual Aldeia Porto Velho. “(…) Há a citação no ‘Memoria Descritivo Histórico’ (capítulo do relatório da Funai) o qual traz as narrativas da emigração da família do fundador da fazenda Porto Velho do Tapirapé, o Senhor Ciriaco Gomes de Abreu, assim como, documentos que demonstram o pioneirismo da família na região.”
Para o procurador da República, “após a elaboração, no ano de 2009, de um mapa situacional dos Kanela do Araguaia, durante uma oficina cartográfica do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, os Kanelas do Araguaia fortaleceram sua percepção acerca do espaço territorial no qual estão instalados”. Em 2013 os troncos familiares se reuniram e desde então se tornou pública a apropriação dos Kanela do Araguaia do que os indígenas passaram a chamar de Aldeia Porto Velho.
“Embora a área da Aldeia Porto Velho, debatida nesta ação possessória, não se trate ainda de área declarada indígena pelo Estado brasileiro, a tradicionalidade da ocupação exercida pelo povo Kanela do Araguaia encontra-se evidenciada em diversos documentos oficiais, nos três níveis da federação (…) elementos de prova atestam a ocupação de dezenas de famílias da etnia Kanela sobre a área originalmente identificada como “Fazenda Bom Jesus”. Referidas famílias compõem o núcleo familiar originário de Cândido Ferreira Rocha e Júlia Pereira Rocha” conclui o procurador.
Ameaças e pressões
Para o procurador da República, os direitos territoriais dos povos indígenas constituem autêntico direito fundamental, pelo qual se resguarda a identidade de cada membro da comunidade e o caráter pluriétnico da sociedade brasileira. “Em se tratando de comunidades indígenas, o rompimento das relações com o território enseja intenso sofrimento psíquico, além do desamparo material decorrente da privação dos meios necessários à sobrevivência física dos indivíduos do grupo”, defende.
“O que a gente sente”, atesta o cacique Lucas Kanela, “é que quando passamos a existir pra essa gente passamos a ser uma ameaça e então não existem direitos. Até um momento, enquanto servíamos pra mão de obra barata, toleravam”. Todas as ameças e pressões exercidas contra os Kanela foram descritas pela ação do MPF como prova da necessidade da Justiça Federal garantir a posse, e assim inibir novas investidas contra os indígenas – que agora aguardam a conclusão da demarcação pelo governo federal.
Fonte: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8936&action=read.