Júlia: Quando o Teatro de Rua resgata a revolução

    juliaPor João Gabriel Almeida.

     Em 1971, o genial cineasta Glauber Rocha escreveu Eztetyka do Sonho. Relendo criticamente seu próprio trabalho, antes condensado no Eztetyka da Fome e retratado em Terra em Transe, ele propôs uma outra guinada para o que seria a arte revolucionária. Estabeleceu que a revolução não é da ordem da razão, dizendo que, sustentados por esta, a direita anseia o ideal medíocre da modernização e a esquerda se esvai no paternalismo que exclui as massas pobres do centro da política. Falou que o erro fundamental desta incorre no fato de o povo ser um mito da burguesia e que sua razão É a razão da burguesia. Afirmou também que a revolução é “a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza”. Para reagir a isso ele diz que devemos sugar da linguagem popular, não na sua face folclórica, mas da sua permanente rebelião histórica. Termina propondo que a “Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda”.

    Nesta última semana, enquanto a nível nacional vivenciamos o embate entre as duas faces desse racionalismo colonizador, digno de figurar em cenas do Terra em Transe, ocorria em Florianópolis o 21° Festival de Teatro Isnard Azevedo. Dentro deste, uma peça merece destaque. Durante 4 dias, em diversos espaços públicos da Grande Florianópolis, o Cirquinho do Revirado, de Criciúma, apresentou o espetáculo Júlia. Em uma carroça inspirada no trabalho do ezquisofrênico morador de rua Bispo do Rosário, Júlia e Palheta, dois pedintes, entram na praça para fazerem o seu show. Através de uma linguagem cômica e violenta, os dois personagens invadem a privacidade dos passivos espectadores, cobrando-lhes respostas para o que veem diante de si. Palheta literalmente toca o público, tentando inclusive roubar beijos. Ambos tensionam ao máximo o que se poderia denominar de dignidade humana. Durante 55 minutos, forçam o público a sair da sua rotina automatizada e suspendem as hierarquias sociais. No dia em que pude vê-los, ousaram desafiar a polícia, tocaram nos famosos cidadãos de bens que atravessavam tentando passarem imunes por aquele evento. Demonstraram uma ética absurda. A piada não era os mendigos. A sua condição irracionalmente trágica servia de motor para nós sermos a piada. Aquelas duas figuras desafiavam a máscara social que sustentamos diariamente para fingirmos crer no que somos. O misticismo que Glauber se referia estava presente naqueles dois corpos, colocando-se nas situações mais espúrias para que surgisse um lapso de surto. Algum sinal de vida da nossa inércia tradicional.

    Independente do resultado das eleições, algo surgiu. Pessoas foram às ruas por seus candidatos, cada qual por uma sensação difusa que excede em muito os programas de seus respectivos representantes. 2013 demonstrou que estamos chegando a um limite da racionalidade política em que vivemos. Não se aguenta mais ser somente estatística. Uma etapa surgirá depois do dia 26, na qual as ebulições podem se acomodar, fundarem um sistema ainda mais violento ou abrirem margem para um novo processo de mudanças. É hora de revisitar quem pensou com originalidade o Brasil, quem em outros momentos como este também tentou formular respostas. Glauber Rocha foi um deles e vi seu legado ressurgir nas ruas no trabalho dos dois fantásticos artistas Reveraldo Joaquim e Yonara Marques.

    Foto: Captura de vídeo.

    João Gabriel Almeida é graduando em Letras- Português.

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