Juiz utiliza Marco Temporal para anular processo de demarcação de território Kaingang no RS

A decisão tomada pelo Juiz considera as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, contradizendo a decisão do próprio STF em utilizar tais condicionantes exclusivamente neste caso

Por Julia Saggioratto, para Desacato.info.

Entre períodos acampados na BR e em cima da terra, a comunidade da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, que fica entre os municípios de Sananduva e Cacique Doble, no Rio Grande do Sul, luta há mais de 12 anos pela demarcação de seu território. No dia 25 de abril de 2011 o Ministério da Justiça reconheceu 1916 hectares do território Kaingang, por meio de Portaria Declaratória.

No entanto no em março deste ano o juiz federal de Erechim suspendeu a Portaria baseando-se na Tese do Marco Temporal, como comenta Roberto Antonio Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário Regional Sul. “O juiz de primeiro grau da Vara Federal de Erechim decide pela anulação do processo demarcatório daquela área com um único argumento: de que a Funai, ao realizar os estudos de identificação e delimitação daquela terra indígena não levou em conta o contexto do Marco Temporal da Constituição Federal de 1988. O juiz alega que em função da decisão do caso Raposa Serra do Sol o Supremo Tribunal Federal impôs condicionantes às demarcações de Terras Indígenas”, destaca.

Rosalina Mendonça, indígena Kaingang de 87 anos, conta que as casas de seus antepassados foram queimadas e desmanchadas para que saíssem do território (Foto: Julia Saggioratto)

De acordo com a tese, apenas os indígenas que estivessem sobre o território tradicional no dia 5 de outubro de 1988 ou lutando judicialmente por ele teriam direito ao seu espaço. Porém, além de não haver nenhuma discussão sobre o Marco Temporal no momento em que a Funai realizou os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, para a comunidade o Marco Temporal não tem legitimidade. Como destaca o Kaingang Adamor Franco, os indígenas foram os primeiros habitantes do país. “Quando os portugueses chegaram, os índios que encontraram. O índio era dono desse país, dessa pátria chamada Brasil. Agora chamam nós de invasores, nós não somos invasores, nós somos sementes dessa terra, a terra é nossa mãe, nós dependemos dessa terra”, comenta Adamor.

A indígena Kaingang Jandira dos Santos comenta que ela e sua família tiveram que sair de seu território antes de 1988 pois os brancos não permitiam que ficassem (Foto: Julia Saggioratto)

O Cacique Gedivaldo da Silva destaca que a comunidade indígena está no território desde o início: “Não estamos aqui a partir do ano 88, nós estamos aqui desde o começo, para nós não existe Marco Temporal”. Como conta a indígena Marcelina da Silva, os indígenas foram expulsos de sua terra: “Fomos obrigados a sair daqui porque não podia, se tu ficasse eles ameaçavam de morte, colocavam fogo nas casas, então tivemos que sair para eles não fazer isso para nós”. De acordo com a indígena Kaingang Rosalina Mendonça, de 87 anos, era preciso sair para que não perdessem a vida: Eles botavam fogo na casinha, os brancos, desmanchavam todas as coisas que eles tinham e obrigavam a ir embora pra não morrer”. A indígena Jandira dos Santos conta que os brancos não deixaram que ficassem em sua terra. Os brancos não deixavam, eles mandavam sair, ir embora, diziam ‘a terra é escriturada, é nossa’, daí fomos saindo antes, o pai saiu antes”. Para que não ficassem vestígios da ocupação tradicional indígena, o cemitério de seus antepassados foi destruído.

A indígena Marcelina da Silva conta que eram ameaçados de morte ao resistirem em ficar em sua terra (Foto: Julia Saggioratto)

Além disso as condicionantes utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol devem ser utilizadas única e exclusivamente neste caso, como definiu o próprio STF em sua decisão. De acordo com Roberto Liebgott, o Ministério Público Federal, em seu parecer apresentado à Justiça Federal fazendo a defesa do procedimento demarcatório realizado pela Funai, aponta a improcedência da decisão do Juiz. “Como o próprio magistrado reconhece na sua decisão que os índios estavam efetivamente naquela região, naquelas terras na década de 70, é por óbvio que aquele território é de ocupação tradicional. Ou seja, o fato de em 88, naquele lugar específico, não ter alguma família indígena, isso não tira deles o direito originário sobre a ocupação daquela terra, sendo que na década 70, início dos anos 80, por ali os indígenas viviam e habitavam”, salienta.

O Cacique da TI Passo Grande do Rio Forquilha, Gedivaldo da Silva, destaca que os indígenas estão no território desde o começo, para eles o Marco Temporal não existe (Foto: Julia Saggioratto)

Consequências da não demarcação do território dos Kaingang são o conflito e o racismo contra os indígenas, e principalmente, a criminalização da luta pelo seu território. Os meios de comunicação comerciais contribuem com a propagação do racismo, distorcendo as informações e espalhando o ódio contra a comunidade. Os indígenas são penalizados ao semear a terra, perdendo seus equipamentos, e ao reivindicar seu território.

Adamor Franco, Kaingang da TI Passo Grande do Rio Forquilha, conta que os não indígenas destruíram o cemitério de seus antepassados para apagar os vestígios de seu povo na área (Foto: Julia Saggioratto)

A decisão do juiz vem sendo questionada pelo Ministério Público e pelos advogados constituídos pela comunidade indígena, que ingressaram com embargos de declaração pedindo ao juiz maiores esclarecimentos e fundamentação sobre sua decisão, já que ela não leva em consideração que a ocupação tradicional indígena não se limita a um espaço curto de tempo, conforme comenta Roberto. “A ocupação tradicional está vinculada a um direito originário que os povos indígenas têm sobre as terras que tradicionalmente ocupam ao longo da história”, finaliza. Ainda segundo Roberto, caberão outros recursos ao longo de todo o processo e possivelmente a decisão tomada pelo juiz da vara federal de Erechim será revertida no Tribunal Regional Federal da 4ª região. A comunidade segue mobilizada contra a decisão. O Portal Desacato segue acompanhando o caso.

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