Jovens são presos por estarem perto de carro roubado na Grande SP

Kauan e Lucas foram acusados de serem comparsas, mas não se conheciam, segundo familiares; criminalista aponta falta de provas que liguem jovens ao crime

Segundo PM, Kauan (à esq) e Lucas estavam ao lado de carro roubado quando abordados | Foto: Arquivo pessoal

Por Arthur Stabile e Jeniffer Mendonça.

Estar perto de um carro roubado pode te incriminar. Foi isso que aconteceu com Kauan Oliveira Santos, 18 anos, e Lucas Andrei Nascimento Dias, 20, presos no dia 2 de janeiro suspeitos de cometerem dois roubos juntos em São Bernardo e Santo André, cidades da Grande São Paulo. Um detalhe é que Kauan e Lucas não se conhecem, segundo um amigo de um deles.

As vítimas dos crimes reconheceram Kauan por causa do bigode fino e de uma blusa preta logo depois da versão de flagrante contada pelos PMs que o prenderam. A vítima que reconheceu Lucas chegou a dizer que suspeitava, mas não tinha certeza. A versão está sendo contestada pelas famílias dos jovens, que seguem presos no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Santo André.

A versão oficial coloca Kauan junto de um veículo Chevrolet Spin, de cor preta, que acabara de ser roubado e usado em outro crime, no dia 2 de janeiro de 2020, na Grande São Paulo. Dois suspeitos, um deles armado, abordaram uma família e levaram o carro para a rua Rio Feio, em São Bernardo do Campo. Menos de dois quilômetros depois, usaram o carro para roubar um homem na rua Las Palmas, já em Santo André, município vizinho. Levaram sua aliança, chave da casa e o celular.

Segundo os PMs Wellinson Luciano Viola e Claudinei Pereira, eles receberam pelo rádio a informação dos roubos e buscavam o veículo citado. Por volta de 21h, encontraram o carro na rua Cambuci, na Vila Sobral, cerca de 1 quilômetro de onde o segundo crime ocorreu. Segundo eles, Kauan dava indícios de que tinha acabado de se desvencilhar do carro e caminhava perto de Lucas.

Os policiais descrevem que Kauan e Lucas estavam juntos, andando lado a lado a 10 metros do veículo, que ainda estava com luz interna acesa. Consideraram a atitude suspeita e decidiram abordá-los. Os jovens teriam dito que eram amigos de trabalho. Ao revistarem o carro, os PMs recuperaram a chave da casa do homem, optando por levar a dupla para o 1º DP de Santo André.

Na delegacia, três vítimas reconheceram Kauan como um dos criminosos “sem qualquer dúvida”, enquanto uma não soube precisar sobre Lucas, mas confirmou ter suspeita dele, mesmo que nenhum item roubado e nenhuma prova os ligasse ao crime.

O reconhecimento feito na delegacia, comandado pelo delegado Dimitrius Moraes Costa, não seguiu o padrão do CPP (Código de Processo Penal), como consta no termo de declaração, pois não colocou pessoas de características físicas próximas para a vítima apontar quem seria o suspeito. O delegado alegou “ausência de pessoas semelhantes” para seguir com o reconhecimento solitário de Kauan e Lucas.

O documento da Polícia Civil paulista não detalha de que forma as vítimas explicaram como eram os criminosos. Esta descrição seria utilizada como base para os policiais buscarem os autores do crime. Consta apenas que elas traçaram características como “estatura, compleição, vestimenta, cabelo e sinais característicos da face, ‘como olhos e bigode ralo’”, sem detalhamento de quais seriam essas características.

O fato de serem abordados próximo ao carro e o reconhecimento feito pelas vítimas bastou para o delegado considerar situação de flagrante e determinar a prisão dos rapazes. “A fundada suspeita, juízo técnico-jurídico consubstanciado nos elementos de autoria e materialidade delitivas emerge das oitivas e demais substratos coligidos”, escreve Dimitrius Moraes Costa, sem citar quais “substratos” seriam estes.

Em audiência de custódia, o juiz Marcus Vinícius Kiyoshi Onodera considerou que o flagrante estava em ordem. Descreveu que a materialidade do delito estava “demonstrada” pela entrega dos bens roubados e que estavam dentro do veículo “do qual ambos teriam supostamente saído”. Não há nenhum elemento que comprove que Kauan e Lucas saíram do carro.

Kiyoshi não estranha o fato de uma das vítimas dizer que tinha suspeita sobre Lucas ser um dos dois criminosos, não certeza. Se baseou no depoimento das outras duas, que colocaram ambos como os suspeitos. Ainda que Kauan tenha trabalho, atuando como jovem aprendiz em um hospital, residência fixa e nenhum antecedente criminal, manteve sua prisão preventiva, assim como para Lucas.

No dia 7 de janeiro, o MPE (Ministério Público Estadual) de São Paulo decidiu acusar Kauan e Lucas pelos dois roubos. O promotor de Justiça substituto de Santo André Thiago Beretta Galvão Godinho usou o reconhecimento das vítimas como prova para denunciá-los, ainda destacando que os itens das vítimas foram encontrados dentro do veículo e não com os dois.

Três dias depois, a juíza Teresa Cristina Cabral Santana recebeu a denúncia e definiu que a primeira audiência do caso acontecerá no dia 20 de fevereiro. No entanto, a situação mudou na tarde desta terça-feira (14/1), quando a magistrada acolheu recurso da defesa e decidiu pela soltura dos dois jovens.

Dentre as justificativas, o fato de que o reconhecimento não seguiu o que a lei determina.

Distância de onde o carro foi roubado para o segundo roubo e local no qual PM encontrou o veículo | Foto: Reprodução/Google Maps

“Não há como justificar a manutenção da prisão preventiva decretada do acusado Lucas, conforme apontado pela sua defesa, visto que não foi reconhecido em sede policial, bem como do acusado Kauan, diante da realização de procedimento informal de reconhecimento pela autoridade policial”, determinou. A libertação dos dois jovens do CDP de Santo André deverá acontecer por volta de 10h desta quarta-feira (15/1), segundo o advogado de Kauan, Álvaro Barbosa.

Com a liberdade, a juíza alterou a data da audiência para 1 de julho de 2020.

Testemunha desmente versão da PM

Parentes de Kauan e uma testemunha vão além de questionar a prisão: desmentem a versão contada pelos policiais. Segundo a tia do jovem, a secretária Maria de Fátima Santos Oliveira, 51 anos, ele estaria com amigos em uma praça da Vila Sacadura Cabral, mesma região em que o carro modelo Spin fora abandonado após ter sido roubado e usado no crime seguinte.

No local em que Kauan estaria há um bar, um mercado e uma tabacaria, e serve de ponto de encontro para quem mora na região confraternizar. Junto de amigos, eles foram abordados por PMs, como conta Mateus Cruz de Araújo, 18 anos, um dos sete jovens revistados pelos policiais.

O jovem, que está desempregado, conta que passou o dia todo com Lucas, de quem é amigo desde a infância. Eles se encontraram para conversar, já que a cachorra do amigo morreu atropelada e ele não estava bem. Permaneceram juntos das 15h até a hora da abordagem, quando caía uma forte chuva em Santo André.

“Estávamos fumando e caiu a energia. Fomos para debaixo do centro comunitário e os PMs chegaram com lanterna, dizendo que se alguém corresse iam atirar”, relembra Mateus. Ao puxar da memória, conta que os PMs gritavam e davam tapas se eles olhassem para o lado, mas dois pontos chamaram sua atenção: os policiais não se incomodaram com o fato de eles estarem fumando maconha e também não procuravam nada específico.

“Não falaram muito, falaram mais com o Kauan e o Lucas. Com ele disseram ‘esse pode até matar, faz o que quiser’. Conversaram com os dois isolados”, relembra, citando que em determinado momento do enquadro, Kauan teria dito para os policiais que conhecia seus direitos. “Vocês não podem fazer isso comigo”. Kauan trabalhou três anos como jovem aprendiz no Fórum de São Bernardo e um ano como assistente de advogado no escritório no qual sua tia trabalha. “Tinha vários meninos, foram liberando um de cada vez e deixaram só os dois. Fiquei sabendo no dia seguinte que estavam presos”, afirma Mateus.

A versão apresentada pela testemunha também contraria a dos policiais no registro da abordagem. No documento, contam que Kauan e Lucas se apresentaram como amigos de trabalho. Segundo Mateus, os dois nem sequer se conheciam. Kauan trabalha em um hospital na Mooca, zona leste de São Paulo, e Lucas ajuda seu pai nos trabalhos de pedreiro em Diadema, cidade na qual mora há alguns meses.

“Isso [amigos de trabalho] é mentira, eles nem se conheciam. A primeira vez que se viram foi naquele dia”, conta o jovem. “O Lucas não fez nada, passou o dia inteiro comigo. Até minha mãe conversou com ele por causa da cachorra”, continua. Na hora da abordagem, conta que a rua estava escura pela falta de energia, mas que não viu nenhum carro preto por perto. “Nem a vítima, que falaram estar lá, não vimos”, finaliza.

Defensor de Kauan, Álvaro Barbosa aponta uma série de problemas no processo, desde a abordagem e o reconhecimento, até o fato de a polícia não ter verificado a localização dos dois através do aparelho celular e nem coletado as digitais dos criminosos no veículo.

“Houve uma série de elementos que poderiam gerar dúvida no momento da prisão. O delegado poderia ter indagado melhor as vítimas sobre o porquê reconheceram e, nesse momento, a gente percebe que as principais características era sobre vestuário nem tanto sobre o rosto”, argumenta o defensor, com quem Kauan trabalhou como assistente.

“Foi excelente [o período que trabalhou no escritório]. Ele é um menino que apesar de jovem, por onde passa consegue construir relacionamentos. É uma pessoa tímida, mas muito bondoso. Foi uma surpresa [quando soube da prisão]”, comenta e frisa que a abordagem e prisão se devem ao fato do jovem “morar perto de comunidade”.

“A juventude hoje em dia usa quase o mesmo tipo de vestimenta, o cabelo, o bigode. Não houve trabalho de investigação, só o testemunho dos policiais e o reconhecimento das vítimas”, argumenta, sobre o reconhecimento baseado em uma blusa de moletom preta com touca e o “bigode fino”, descritos pela vítima do roubo.

Criminalista critica prisão

Ponte apresentou o processo da prisão e acusação de Kauan Oliveira Santos e Lucas Andrei Nascimento Dias para a advogada criminalista Priscila Pâmela Santos, integrante da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) São Paulo e do IDDD (Instituto de Defesa pelo Direito de Defesa). A especialista analisa erros que vão da abordagem à manutenção da prisão.

“[É um processo] Muito absurdo. Primeiro ponto escancarado: as cópias dos depoimentos de todas as pessoas. Elas não reproduzem a mesma fala. Se deduz que o escrivão coloca o relato de forma mais simples, mas não pode ser copia e cola do depoimento anterior, o que fica difícil a identificação dos autores”, exemplifica.

Outro ponto é a abordagem. Segundo a advogada, os PMs não poderiam tê-los revistado simplesmente por estarem ao lado de um veículo fruto de roubo sem suspeita e a descrição das vítimas. Além disso, o criminoso ter bigode fino é insuficiente para determinar com exatidão o perfil do suspeito. “Não há indicativo a não ser estar próximo do objeto [do crime], isso por si só não é flagrante”, critica.

Para ela, o fato de Kauan ter trabalho e residência fixa deveriam bastar para a prisão ser relaxada e ele responder o processo em liberdade.
“Faltam elementos de autoria. A prisão preventiva deve ter autoria e prova da materialidade. Sem isso, não há prisão preventiva”, detalha. “Ali não se verifica caso concreto nenhum. O estado de flagrância [do cometimento do crime] é muito equivocado. A prisão deveria ter sido relaxada na custódia ou concedida liberdade provisória”, argumenta.

Ponte questionou a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria, sobre os procedimentos desde a abordagem até o pedido de prisão preventiva de Kauan e Lucas. Em nota, a assessoria de imprensa terceirizada, a InPress, informa que a prisão aconteceu em flagrante e que estão presos preventivamente.

A reportagem também questionou o MP sobre quais elementos basearam a denúncia feita cinco dias após a prisão, mas ainda não recebeu um posicionamento oficial do órgão sobre o assunto.

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