Jovens apartidários ou o velho discurso burguês de negação do protagonismo da juventude de esquerda nas manifestações de massa?

Foto do protesto “Fora Temer” realizado no dia 2/9 em Florianópolis. Foto: Thiago Iessim
Foto do protesto “Fora Temer” realizado no dia 2/9 em Florianópolis. Foto: Thiago Iessim

Por Fernando Calheiros, Florianópolis, para Desacato.info.

Em matéria publicada no dia 03 de setembro pelo jornal Diário Catarinense online sob o título “Florianópolis volta ao protagonismo em protesto contra Michel Temer” a filiada da Rede Globo no Sul do país mais uma vez buscou se valer do discurso científico como forma deliberada de negação da existência e do protagonismo da juventude de esquerda, essa que mais uma vez se mostrou expressiva, exercendo papel determinante nos recentes protestos da cidade.

Ao considerar que os dois últimos atos “Fora Temer”, ocorridos em (31/08 e 02/09) em Florianópolis, tenha contado exclusivamente com um protagonismo de jovens universitários conectados às redes sociais e “sem ligações estreitas com partidos ou movimentos sociais tradicionais da esquerda brasileira”, a notícia não só tenta se apropriar do conhecimento cientifico para despolitizar o debate público acerca do acirramento da luta de classes, como também busca, levando-se em consideração a atual disputa ideológica, mistificar a realidade do contexto político local, ao sugerir que a maioria dos manifestantes jovens seriam apartidários e sem posicionamento político e ideológico definidos.

Tal afirmação teria sido feita pelo professor Jacques Mick, do departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC (a quem considero e respeito), mas que, diante da desconsideração do histórico de luta da juventude local, assim como da não problematização das contradições e disputas ideológicas em jogo, avalio como sendo uma análise equivocada da conjuntura política local, sendo, dessa forma, obrigado a discordar do estimado professor. Primeiramente, pelo argumento utilizado de que tal mobilização tenha contado exclusivamente com um público composto por jovens sem ligações partidárias estreitas, mobilizados em rede e com organização descentralizada. De fato, nenhum protesto desse porte pode ser considerado como algo dotado de uma pretensa espontaneidade, ainda mais quando se leva em conta o atual contexto político marcado pela disputa ideológica expressa nas ruas (que já supera a falsa polarização entre PT X PSDB/PMDB), ou seja, das manifestações pró e contra o impeachment. Um olhar mais atento é capaz de verificar que os protestos recentes não pedem a volta da presidente Dilma, mas sim a saída do governo Temer e novas eleições. São antes organizados por grupos políticos e movimentos sociais já atuantes na vida política da cidade. De forma alguma ocorreram de maneira espontânea e muito menos por coletivos apartidários. Ignorar essa questão se configura como um grave erro de análise, principalmente no que diz respeito às formas de como são organizadas tais manifestações de massa e das forças e grupos políticos que as compõe.

Desse modo, é preciso superar a aparência dos fatos, o que exige a necessidade de uma maior atenção, tanto do histórico da participação e atuação política da juventude combativa da cidade, assim como também da própria organização dos últimos atos em particular. Diante da velocidade em que as duas manifestações foram realizadas – uma na quarta, dia 31, logo após a votação do processo de impeachment no Senado, e a outra, na última sexta, dia 02 – é preciso ressaltar o fato da ocorrência de manifestações de menores portes que já vinham ocorrendo anteriormente ao resultado do impedimento definitivo da presidente Dilma. Nesse sentido, é de se notar que já haviam grupos organizados realizando pequenos atos no centro de Florianópolis denunciando o golpe em curso no país, ou seja, temos que levar em consideração que o que culminou nos dois grandes protestos já vinha sendo gestado por grupos políticos e pela própria juventude ligada tanto a partidos como aos diversos grupos e movimentos sociais progressistas da cidade. Quer dizer, não surge na cena política local a partir do Movimento Ocupa Minc, ou impulsionado pelas redes sociais, muito menos por coletivos universitários apartidários como sugerido na matéria do DC.

Outro ponto importante, diz respeito à participação dos jovens nos dois últimos protestos. Certamente, podemos concordar que nem todos são ligados a partidos e movimentos de esquerda, porém, isso não justifica o pretenso argumento de que eles seriam a maioria dos manifestantes. Ao contrário, tais jovens constituem-se como a exceção, não a regra. Explico. Boa parte da juventude presente nos atos possui histórico de militância anterior como, por exemplo, as adquiridas a partir do engajamento nas lutas por melhorias no transporte público, direito à moradia, por direitos dos grupos étnicos, feministas, LGBT, direitos estudantis e vários outros. Ou seja, trata-se de ativistas e militantes já atuantes na cena política local e que, além da práxis vinculada à luta social, são possuidores de um posicionamento e orientação política claramente de oposição à ordem, encontrando-se não de hoje, organizados em diversos espaços e frentes de luta, ligados por sua vez a grupos políticos contestatórios à ordem burguesa, notadamente alinhados ao pensamento progressista e de esquerda.

Dando nomes aos bois, é só lembrarmos dos massivos atos que ficaram conhecidos como a “revolta das catracas”, promovidos em 2005/2007 e que contou majoritariamente com a participação de jovens (universitários e secundaristas), que se somaram ao Movimento Passe Livre e lá começaram a adquirir uma práxis de luta e resistência urbana. Parte dessa mesma juventude teve grande participação também como apoiadores das recentes lutas por moradia na região, através das ocupações Contestado, ex-Palmares e principalmente Amarildo de Souza, essa última que contou com uma notória participação da juventude militante, vinda das mais variadas correntes partidárias de esquerda, assim como dos diversos grupos e movimentos sociais atuantes na região.

Afirmar que não há grupos organizados da juventude de esquerda em Florianópolis é de certa forma omitir as práticas políticas e de experiências de luta adquiridas pela juventude combativa de Florianópolis. É esvaziar o conteúdo político-ideológico presente nos protestos. É a negação do contraditório. Dos antigos e novos quadros da juventude dos partidos e movimentos de esquerda. Supor que a maioria dos jovens presentes nos últimos protestos sejam adeptos do apartidarismo é, antes de tudo, contribuir para a afirmação do discurso hegemônico da mídia golpista que investe tanto na negação, como na criminalização dessa mesma juventude, assim como do não reconhecimento da existência de diversos movimentos sociais progressistas que possuem um largo histórico de luta na cidade.

Ao contrário do afirmado na matéria do Diário Catarinense, o que podemos considerar, a partir do último protesto protagonizado por mais de 10 mil pessoas em Florianópolis, é justamente a presença expressiva de grupos e movimentos progressistas e de esquerda, da juventude que cresceu e ainda cresce ganhando experiência nas lutas promovidas pelo Movimento Passe Livre, pelas recentes ocupações urbanas e nas mais diversas reivindicações sociais existentes na região da grande Florianópolis. Vale também levar em consideração a participação, nos atos, dos muitos sindicalistas combativos presentes na cena política da cidade, com destaque para as últimas greves e protestos dos funcionários públicos municipais. Dos professores do ensino público, assim como dos secundaristas que, influenciados pelas ocupações das escolas de São Paulo e Rio de Janeiro, começam por aqui a mostrarem sua indignação com a atual degradação e péssima gestão das escolas públicas do município, do mesmo modo que a juventude que compõe os antigos e novos quadros da militância dos partidos de esquerda como PCB, PSOL e PSTU, além do grande número de ativistas das causas étnicas (negros e indígenas), feministas (Marcha das Vadias) e da comunidade GLBT, expressivos e atuantes na vida política da região.

Em momentos de acirramento da luta político-ideológica como os atuais, se faz necessário redobrar as atenções sobre o tom e os objetivos dos discursos das elites que apoiam o golpe de Estado. Supor que a juventude presente nos dois últimos protestos ocorridos em Florianópolis não tenha nenhum tipo de filiação política ou ideológica, evidencia uma clara tentativa de negar a existência de uma juventude combativa e de esquerda. Tal justificativa não passa de uma estratégia articulada entre grupos oligárquicos locais e seus porta-vozes (RBS), com o claro intuito de manipulação da opinião pública na busca por emplacar goela abaixo o discurso da legalidade do impeachment, ou melhor, do golpe. Trata-se da negação do contraditório, a saber, do reconhecimento de uma esquerda que começa a esboçar uma unificação a partir dos protestos “Fora Temer”.

Nesse sentido, para uma compreensão da realidade política contemporânea, se faz imprescindível a análise atenta e crítica sobre a conjuntura nacional e local, não só como forma de precisá-la com o devido rigor científico, mais sobretudo, com o objetivo de possibilitar uma melhor leitura para o engajamento e ação diante do acirramento da luta de classes que se apresenta no Brasil. Como sujeitos históricos, políticos e sobretudo críticos, devemos estar atentos às investidas do pensamento conservador em ascensão no país, sem cair nas armadilhas do discurso despolitizador, que busca a todo modo se valer do rótulo científico com o intuito de usá-lo ardilosamente para o falseamento da realidade.

Existe sim uma expressiva juventude de esquerda em Florianópolis, que diante dos acontecimentos políticos vem tomando partido, posicionando-se de maneira crítica diante do golpe parlamentar estabelecido no país. Juventude que está indo às ruas dar o seu recado às elites de que não aceitarão passivamente outro golpe de Estado no Brasil. Crescendo a cada novo ato, saem em defesa da frágil democracia – ainda que limitada aos parâmetros estabelecidos pela ordem burguesa – exigindo respeito à constituição e as poucas conquistas que obtivemos através de muito luta social. Não aceitarão passivamente mais retrocessos históricos. Querem avançar.

  Apesar da complexidade apresentada pela conjuntura política brasileira no momento atual, o que se pode percebe é a existência da abertura de novas possibilidades, como também da extrema necessidade de uma unificação entre os grupos políticos alinhados ao pensamento progressista e de esquerda, a fim de manterem garantidos os parcos direitos sociais que foram conquistados através de muita luta. Nesse sentido, a juventude não apartidária de Florianópolis já desponta com seu protagonismo em direção a não aceitação do golpe de Estado, realizando o maior protesto “Fora Temer” registrado no Brasil até o presente momento. As diversas bandeiras vermelhas presentes nos dois últimos atos não deixam dúvidas sobre o posicionamento político-ideológico de grande parte de seus manifestantes. Nos mostra a existência do protagonismo da juventude de esquerda atuante no município, que vem a algum tempo construindo a resistência ao golpe, aglutinando e crescendo a cada ato, contribuindo para politização do debate público. Certamente ela será imprescindível nas lutas que seguirão daqui por diante. Pois como indicado em alto e bom som nos últimos protestos, o levante popular protagonizado pela juventude progressista e de esquerda está apenas começando, sinalizando para novos atos e protestos, pois – relembrando as experiências de luta adquiridas na “revolta das catracas” e nos demais espaços de luta – já alertaram às elites golpistas que “amanhã vai ser maior!”

Fernando Calheiros é cientista social e professor da rede pública de ensino básico do município de Florianópolis

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.