Por Igor Carvalho.
Na casa ao lado, aos gritos, um homem chama pelo vizinho, que não responde. Apressado, Rogério Silva* interrompe a entrevista e corre para o portão para repreender o sujeito que brada. “Vai ficar berrando na frente da minha casa?”, pergunta. Quando retorna, se desculpa. “Eu não sou o mesmo cara, fiquei rancoroso e irritado. Hoje, fico bravo por qualquer coisa, não sei o que acontece.”
Aos 24 anos, Silva ainda tenta se adaptar à vida nas ruas do Parque Novo santo Amaro, na zona sul de São Paulo. O jovem, que era acusado pelo roubo de dois veículos e da tentativa de homicídio de um agente da Guarda Civil Metropolitana (GCM), ficou 30 meses preso, aguardando o julgamento, até ser inocentado no dia 21 de agosto de 2019.
O pesadelo começou em 20 de fevereiro de 2017, quando Silva, que é garçom, foi detido perto de sua casa. A prisão era esperada há algumas semanas, como lembra Rosa Silva, mãe do jovem. “Tinha uma mulher, policial, que não saía aqui da frente de casa, sempre passava e ficava olhando para dentro. Eu achava muito estranho.”
Até que um dia, policiais foram até a residência do garçom e interpelaram sua mãe. Havia um mandado de prisão expedido contra o jovem. “Eles invadiram nossa casa, minha filha e meu caçula estavam deitados e tomaram um susto. Foram violentos e gritaram com as crianças, mas o Rogério estava trabalhando, não o encontraram”, lembra Rosa, trabalhadora doméstica, que é divorciada e mora com os cinco filhos.
Após receber um telefonema de sua mãe, informando que a polícia tinha acabado de sair de casa, Silva procurou a advogada do restaurante em que trabalhava e pediu a ela que verificasse o motivo do pedido de prisão. “Foi aí que ela me disse que eu era acusado de roubo e tentativa de homicídio. Me disse também que eu era considerado foragido.”
O crime, no qual Silva foi apontado como suspeito, ocorreu no dia 24 de abril de 2016. Um grupo estava em fuga, após roubar um automóvel, quando foi interceptado por uma viatura da GCM. Houve troca de tiros e um agente foi atingido no capacete. Os criminosos escaparam e roubaram outro veículo. Ainda de acordo com o guarda civil, o assaltante que tentou assassiná-lo foi atingido na perna direita.
Reconhecimento
Três meses após a ocorrência, em julho de 2016, o inquérito apontava Fábio Bruno como principal suspeito do roubo. Foi quando o delegado da 1º Delegacia de Polícia de Taboão da Serra chamou as vítimas para que reconhecessem os demais assaltantes e apresentou fotografias de diversos sujeitos.
Para chegar no garçom, a polícia foi até o perfil da namorada de Bruno no Facebook, selecionou alguns de seus contatos e copiou as fotos. Entre eles, Silva. “Em toda essa história, o que eu mais tenho raiva é dessa pessoa que colocou meu nome nessa lista, eu nem sei quem foi, queria saber”, explica o jovem.
Hugo Leonardo, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), criticou o método.“É equivocado, selecionar o universo amostral no Facebook, sem nenhum critério técnico e jurídico, de que as pessoas que seriam co-autoras desse crime estariam elencadas no rol de amigos em uma rede social. O fato de esse critério não ser técnico, já torna a prova absolutamente nula.”
O agente da GCM que teve o capacete atingido por um tiro, reconheceu Silva como o assaltante que o alvejou. A motorista do primeiro carro roubado também apontou o garçom como um dos criminosos, mas afirmou que não conseguiria identificá-lo pessoalmente. Matheus Gomes, advogado de Silva, atacou o processo de reconhecimento. “É um absurdo, não há como reconhecer meu cliente naquela imagem”.
Após ver a foto utilizada no reconhecimento de Silva, Leonardo classificou o reconhecimento como “um escárnio”. “O Brasil tem, no artigo 226 do Código de Processo Penal, uma diretriz de que reconhecimentos pessoais devem seguir alguns critérios de que pessoas semelhantes devem ser colocadas ao lado do principal suspeito, para que se evite ao máximo o erro de falsos reconhecimentos” , explicou.
Matheus Gomes recorda que em nenhum momento na delegacia, Silva foi perguntado sobre o tiro na perna ou mesmo instigado a mostrar a cicatriz do ferimento de bala, provocado pelo agente da GCM, à equipe policial.
Prisão
No dia 01 de agosto de 2016, foi expedido o mandado de prisão contra Rogério Silva. Por não saber da existência do documento, o jovem não se apresentou e ficou foragido – para a Justiça – até 20 fevereiro de 2017, quando foi preso.
Silva foi levado para a 1ª DP de Taboão da Serra. De lá, foi transferido para o Centro de Detenção Provisória 2 de Guarulhos. Em setembro de 2017, foi conduzido até o Centro de Detenção Provisório de Osasco, onde ficou até ser inocentado.
Durante os 30 meses, Silva teve duas audiências: Em 19 de setembro de 2017 e no dia 12 de junho de 2019. Na primeira, foi novamente reconhecido pelo agente da GCM e a motorista do primeiro veículo roubado. Na segunda, pôde falar e defendeu sua inocência.
A sentença foi publicada somente no dia 21 de agosto de 2019. No texto, o juiz responsável pelo processo critica a investigação e inocenta Silva por falta de provas.
“Ressalta-se que os elementos constantes dos autos não elucidam de forma suficiente como na fase investigativa chegou-se ao nome de Rogério, não sendo justificada a razão pela qual foi apresentada a fotografia dele para reconhecimento pelas vítimas, tampouco demonstrada a existência de prévia relação entre Rogério e Fábio Bruno. Apenas consta que Rogério teria sido identificado por ter dentre seus contatos na rede social ‘Facebook’ a ex-namorada de Fábio Bruno. Reforçando a insuficiência dos indícios de autoria colhidos em relação a Rogério, observa-se que o ofendido (agente da GCM) mencionou em juízo que Rogério se pareceria com o agente que, durante o roubo, disse ter sido ferido por tiro disparado pelo guarda municipal. Ocorre que não há nos autos notícia de ter sido constatada a existência de ferimento por disparo de arma de fogo no réu”, encerrou o juiz.
Racismo
Matheus Gomes, advogado de Silva, também criticou a investigação. “O direito criminal está passando por tempos nebulosos, estamos passando por uma verdadeira inquisição, onde primeiro o Estado prende para depois averiguar se a pessoa é inocente. Não é assim que funcional nossa Constituição. Pelo contrário, a liberdade deveria ser a regra e a prisão a exceção. É estarrecedor que um jovem, que na época tinha 21 anos, trabalhava para sustentar sua família, ficar presos por quase 3 anos.”
A defesa de Silva entrará com uma ação indenizatória, por danos morais e materiais. Para o garçom, que é negro, não há dúvida sobre o preconceito embutido em seu caso. “Teve racismo, eu moro na periferia e sou preto. As pessoas acham que nós que somos negros somos todos iguais. Foram racistas comigo.”
O advogado concorda. Neste caso, fica evidente o racismo por parte do Estado. Se o réu fosse branco, morasse em um bairro nobre e tivesse recursos financeiros acima da média, provavelmente não aguardaria preso para ter uma sentença.”
*Para proteger a identidade dos envolvidos, os nomes dos suspeitos e seus familiares foram trocados por outros, fictícios, nessa matéria