Por Bruno Ribeiro | Revista Opera
Recentemente, o gaúcho José Falero comentou, em seu perfil no Instagram, que a casa em que morava, na Lomba do Pinheiro, um dos bairros mais pobres da periferia de Porto Alegre, teria que ser derrubada por conta de seu estado precário. Poucos dias depois, uma “vaquinha” virtual foi feita, com a ajuda de amigos, para viabilizar a construção de um novo lar. Em pouco tempo, o valor necessário foi levantado com a contribuição de inúmeras pessoas que ele nunca viu pessoalmente.
Em vídeo, o rapaz mostra o desenrolar da obra, que avança conforme o ritmo ditado por sua experiência adquirida como servente de pedreiro, e agradece a quem contribuiu para que ele pudesse dar uma moradia mais digna à sua mãe, dona Rita, com quem divide o mesmo teto desde que veio ao mundo, em 1987. Grande parte do montante arrecadado veio dos leitores que o jovem tem angariado em todo o País, desde o lançamento de seu primeiro romance, “Os Supridores”, pela editora Todavia.
Aos 34 anos, José Falero — pseudônimo de José Carlos da Silva Junior —, é um dos escritores mais comentados da atualidade no Brasil e não vê contradição entre a repentina “fama” obtida pelas críticas elogiosas ao livro e sua realidade social. “O mercado editorial está se abrindo, aos poucos, para as vozes periféricas, porque há uma demanda reprimida por nossa arte. Nós sempre tivemos o que dizer. Eu não sou uma exceção”, diz.
Com mais de 5 mil cópias vendidas até o momento, traduções para idiomas estrangeiros e os direitos para o audiovisual comprados pela produtora RT Features, “Os Supridores” tem recebido elogios rasgados de autores como Bernardo Carvalho, para quem o romance de estreia de Falero seria “único, cômico, sensacional e eletrizante”. Em resenha publicada na contracapa do livro, diz sobre o estilo do autor: “À vontade entre a norma culta e a gíria das vilas na periferia de Porto Alegre, como quem transita com destreza e naturalidade entre um clássico picaresco e os filmes de Tarantino.”
O romance, lançado dois anos depois de “Vila Sapo”, livro de contos que apresentou José Falero ao público, tem como personagens principais a dupla Pedro e Marques, funcionários do supermercado Fênix, no centro de Porto Alegre, cujo trabalho cotidiano (e mal remunerado) consiste em suprir as prateleiras de produtos, numa rotina extenuante, cumprida de modo quase automático, que não oferece nenhuma perspectiva de tirá-los do “círculo vicioso da miséria”.
Pedro, que demonstra ter uma aguçada consciência de classe, não tarda a convencer Marques a “inverter o jogo” contra o sistema ao montar, em sociedade com ele, um esquema de venda de maconha dentro do próprio local de trabalho. O narrador deixa claro que a lógica de Pedro está desprovida da culpa e do moralismo burguês: “Seus bisavós tinham sido pobres as vida inteira, seus pais tinham sido pobres a vida inteira: até onde iria isso?”.
A partir do momento em que a grana começa a entrar, a história ganha corpo numa espiral de acontecimentos que combina ação, suspense, humor e violência na medida certa. Destaque para a forma segura como Falero conduz a narrativa, dando a ela contornos de sátira política e social. É possível perceber estilo próprio em sua escrita — algo raro em autores iniciantes. Há algo, no ritmo e na oralidade da trama, a evocar os norte-americanos John Fante (“Pergunte ao Pó”) e J. D. Salinger (“O Apanhador no Campo de Centeio”). O sotaque, porém, vem da periferia gaúcha, com suas gírias quase nunca exploradas pela literatura. Se Falero fosse paulista poderíamos considerá-lo sobrinho de Plínio Marcos.
Pouco antes da pandemia, o autor decidira voltar à escola onde, na adolescência, fora expulso da aula de uma professora por recitar uma letra do Racionais MC’s (ironicamente, hoje o grupo de rap é leitura obrigatória no vestibular da Unicamp, uma das principais universidades do Brasil). “O ambiente da escola sempre me foi hostil, mas tenho o direito de estar dentro dela. Decidi que não me privaria mais do estudo formal”, comentou, em entrevista à Revista Opera.
Sobre seu ingresso no supletivo “Educação de Jovens e Adultos” (EJA), programa voltado a pessoas que não completaram a educação escolar na idade apropriada, escreveu: “Como alguns sabem, estou fazendo EJA no Colégio de Aplicação da UFRGS. E, como alguns também sabem, às vezes eu vou e volto a pé. Ontem, saí de casa às 15:27 e cheguei no colégio às 17:29. Cheguei com os pés encharcados, porque estava chovendo. A volta foi um pouco mais rápida: saí do colégio às 22:00 e cheguei em casa às 23:32. Nessas idas e vindas, tenho tempo de sobra para pensar no absurdo que é a minha vida, e a vida de outros tantos”.
Prestes a se formar no ensino médio, José Falero concilia as aulas com a agenda lotada de convites para palestras, debates e entrevistas. Na medida do possível, tenta atender a todos. O sucesso advindo de “Os Supridores” lhe rendeu o convite para publicar um livro de crônicas, com previsão de lançamento para o mês de outubro deste ano, também pela Todavia.
Em suas redes sociais informações sobre sua produção literária se dividem com vídeos em que aparece ao lado da mãe, tocando e cantando sambas. Para José Falero, que também se arrisca como compositor, a música é o espaço que mais e melhor permitiu o acesso das classes desfavorecidas no Brasil. “A grande busca da literatura deveria chegar a ser popular como o samba e o rap. Nossas vozes são ouvidas principalmente nesses meios”, afirma. Seu gosto musical inclui Bezerra da Silva, Chico Buarque, Racionais e os compositores da geração de Cacique de Ramos.
Embora, no momento, esteja vivendo “apenas da palavra”, como ele mesmo diz, não descarta a possibilidade de voltar a trabalhar como servente de pedreiro, supridor de supermercado ou porteiro de prédio. “Não dá pra confiar no sistema”, declarou certa vez em outra entrevista. Um ano antes do lançamento de “Os Supridores”, para uma revista eletrônica na qual escreve regularmente, Falero se autodefiniu da seguinte forma: “Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome e toca cavaquinho para não morrer de tristeza”.
Confira a seguir a entrevista que o autor concedeu por telefone à Revista Opera.
“Eu tinha uma revolta e estava tentando organizá-la dentro de mim”
Revista Opera: Vamos começar por sua relação com a literatura. Qual foi o marco zero dessa descoberta?
José Falero: Eu tinha entre 20 e 21 anos quando li meu primeiro livro. Até então eu não gostava. Eu não entendia como é que um livro poderia ser mais interessante do que uma revista de história em quadrinhos, que contém ilustrações; ou de um filme, com áudio e imagens em movimento; ou do videogame, que tem as mesmas qualidades do filme e ainda se pode controlar os personagens. Mas, um dia, minha irmã, leitora ávida, virou pra mim e disse: “Se tu nunca leu um livro, tua opinião não importa. Tu não pode dizer que não gosta de algo que não conhece”. Eu me senti desafiado por esse comentário. Resolvi ler um livro só pra dizer a ela que não tinha gostado. Mas não queria mentir, queria ser sincero. Então, peguei um livro emprestado e foi aí que minha vida começou a mudar.
Revista Opera: E que livro era esse?
José Falero: Um livro do Jack Woods chamado “A Besta-Fera”. O livro abriu minha mente de um jeito que eu não esperava. Não tanto pela história de lobisomem, que me prendeu a atenção, mas pelas possibilidades que o livro me proporcionou. Eu percebi que poderia construir a história dentro da minha cabeça imaginando as cenas, os ambientes, o rosto dos personagens, como se fosse um filme. E só eu poderia fazer isso, mais ninguém. Essa simples percepção trouxe um impacto enorme à minha vida. Meu encontro com a leitura de livros me abriu os olhos para outras questões.
Revista Opera: Poderia dar um exemplo?
José Falero — Num dia eu achava que livros eram chatos e no outro não conseguia mais ficar sem eles. Então comecei a pensar nas coisas fantásticas que deveriam existir no mundo sem que eu as tivesse experimentado por ignorância ou falta de oportunidade. Fui atrás de aprender coisas novas, ampliar meu conhecimento. Tudo o que minha condição social me permitiu experimentar, experimentei.
Revista Opera: Como foi a sua infância? Fale um pouco sobre o lugar de onde você vem.
José Falero: Fui criado quase que a vida toda na Lomba do Pinheiro, que é um bairro periférico de Porto Alegre, localizado na extremidade da zona leste. É uma periferia urbana, mas com ares rurais, tá ligado? Tu está andando na rua e vê mato, vê cavalo, vê galinha solta. Criança, eu andava por tudo lá: cresci subindo em árvore, correndo, brincando livre. Eu passava o dia na rua com outros guris, os adultos não controlavam a gente. Apesar de muito pobre, tive uma infância bem boa até me mudar para a Cidade Baixa, que é um bairro de classe média. Meu pai era porteiro e foi promovido a zelador, então tinha que morar no serviço. Aí ele levou a família. Eu tinha uns cinco anos, fiquei lá até os dez, que foi quando minha mãe se separou do meu pai e voltou comigo e com minha irmã para o Pinheiro. Desde então estou aqui.
Revista Opera: Como você avalia a breve experiência como morador de um bairro de classe média? Isso fez alguma diferença em sua forma de ver o mundo?
José Falero: Foi uma experiência muito rica ter conhecido esses dois mundos. Na Lomba do Pinheiro eu tinha total liberdade, mas vivia numa casinha fodida, feita com retalhos de madeira, que só tinha duas peças: uma que podemos chamar de cozinha — porque era onde ficava o fogão — e outra que era o quarto onde dormia todo mundo embolado: eu, meus pais e minha irmã. O banheiro ficava do lado de fora e era compartilhado com quatro famílias vizinhas. Eram 16 pessoas usando a mesma privada, o mesmo cano de chuveiro, o mesmo resto de sabão. A gente se lavava com aquele sabão grosso, amarelo, que se usa pra lavar roupa, tá ligado? Tu passava aquilo no rosto depois que outra pessoa tinha passado no saco. Era tudo muito precário. Mas na Cidade Baixa era outra parada. Assim que cheguei, tive um choque: “Bah, olha esse lugar, olha essas ruas, olha esses carros…” Eu nunca imaginei que pudesse haver um lugar como aquele, com ruas asfaltadas e limpas, sem restos de lixo jogados no chão, sem esgoto correndo a céu aberto… Por outro lado, foi ruim porque eu não tinha amigos. Eu era o filho do empregado e as crianças ricas não me chamavam pra brincar. E também não tinha como ficar na rua porque era perigoso, tinha muito trânsito, pessoas estranhas… Então, foi um período em que passei muito tempo sozinho, trancado no apartamento o dia todo, saindo apenas para ir à escola. Mas foi uma experiência rica por conta do contraste. Quando voltei pro Pinheiro, voltei sabendo que existiam duas cidades. Foi aí que começou a brotar em mim alguns questionamentos, tipo “por que é que a gente tem que viver nessa precariedade se há outra forma de vida?” Meu senso crítico foi aguçado por isso. O contraste forjou a minha visão de mundo.
Revista Opera: Você diria que a semente da indignação, plantada pelo contraste dessas duas realidades foi a responsável por despertar em ti a consciência de classe, ou ela vem mais tarde, com a leitura dos autores marxistas?
José Falero: Antes de chegar ao pensamento de Marx, eu já olhava pro mundo de um jeito meio marxista, tá ligado? Claro que era espontâneo, sem saber o que era o marxismo. Mas eu já refletia sobre questões que haviam sido analisadas pelo pensador alemão. A indignação com a desigualdade social, que adquiri ao voltar para a Lomba do Pinheiro, veio primeiro. Quando tive contato com a obra de Marx, eu já me sentia familiarizado com a maioria das questões levantadas por ele.
Revista Opera: E como é que você chega ao marxismo?
José Falero: De novo, foi através da minha irmã, que é atriz. Não me lembro bem quando e como se deu isso, mas sei que ela me chamou pra montar com ela uma peça de teatro do Bertolt Brecht. Então, tive que ler Brecht. Seus textos teatrais e poemas foram o ponto de partida. E Brecht me levou a Marx e ao marxismo, um caminho natural percorrido por muita gente, acho. Na real, quando tive acesso a essa literatura, não foi exatamente uma novidade para mim. Como eu disse anteriormente, eu já refletia sobre muitas coisas contidas na obra dos autores marxistas. A diferença é que nunca sistematizei esse pensamento nos moldes acadêmicos, mas ele já fazia parte de mim.
Revista Opera: É possível afirmar que a leitura do marxismo revolucionou a sua vida? Em que medida?
José Falero: Não apenas a leitura do marxismo. Eu diria que a própria prática da leitura potencializou muitos aspectos intelectuais e afetivos que eu não julgava ter. Minha autoestima era muito baixa, eu não gostava da pessoa que eu era. Depois, com a leitura, comecei a me achar inteligente, a gostar um pouco mais de mim. Vi que podia conversar de igual pra igual com qualquer pessoa, tá ligado? A leitura me fez compreender melhor o mundo e isso me deu confiança.
Revista Opera: Da leitura para a escrita. Como foi essa passagem? Em que momento você começa a se descobrir escritor?
José Falero: Primeiro é preciso definir o que é a escrita. Um apresentador de TV que admiro, certa vez, disse que a única função da escrita era registrar no papel a linguagem falada. Discordo dele. Originalmente, a escrita talvez tenha sido concebida para registrar o que se fala; porém, na minha opinião, ela se desenvolveu no decorrer do tempo para chegar a espaços da mente que tu não acessa só com a oralidade. A prática da escrita é fundamental para desenvolver o pensamento.
Revista Opera: Essa me parece ser uma visão bastante original da função da escrita. De que modo escrever ajuda a desenvolver o teu pensamento?
José Falero: As pessoas experimentam o mundo de formas diferentes, é claro. Mas, levando em consideração a minha experiência particular, o ato de escrever potencializa o pensamento, facilita o fluxo das ideias. O fato de eu estar falando contigo agora, por exemplo, faz com que eu não consiga me explicar direito, tá ligado? Me sinto prolixo. Se estivesse te respondendo por escrito, certamente faria uma formulação melhor da ideia que quero defender. Isso porque teria tempo de voltar ao texto, corrigir, substituir palavras e procurar a melhor forma de passar a minha mensagem, de modo que ela fosse a mais clara possível ao receptor. A conversa espontânea dificulta um pouco a comunicação, pelo menos para mim. Eu me comunico melhor pela escrita e este foi um dos motivos pelos quais comecei a escrever: poder me expressar melhor.
Revista Opera: Você tem uma rotina de trabalho com a escrita?
José Falero: Infelizmente, não. Minha vida é uma bagunça. Na verdade, tenho fases. Quando estava desempregado, passava literalmente o dia todo escrevendo: acordava, comia qualquer coisa, começava a escrever e só parava à noite, pra dormir. Quando trabalhava na construção civil, como pedreiro, não tinha energia pra nada: chegava em casa quase morto e só queria me sentar na frente da TV pra assistir uma bobagem qualquer. Atualmente tenho trabalhado só com a palavra: faço revisão de textos, escrevo crônicas, faço palestras e sou assistente de edição numa revista digital de Porto Alegre. Quando me sobra um tempo, tento trabalhar minha obra literária. Mas não tenho uma rotina específica.
Revista Opera: Prefere escrever em algum período específico do dia?
José Falero: Gosto de escrever à noite, mas nem sempre é possível. Gosto do silêncio, de quando estão todos dormindo e ninguém vai me interromper. De preferência, no escuro. Gosto de trabalhar só com a luz do notebook na minha frente. É uma imersão.
Revista Opera: Seu primeiro livro publicado foi “Vila Sapo”. Fale um pouco sobre o processo de produção e a importância dele em tua trajetória.
José Falero: Foi todo um rolê. Eu já escrevia, mas não trabalhava muito bem a oralidade nos meus textos. Um dia, tive uma conversa com o Marcos Oliveira, linguista da Bahia que me abriu a mente para a importância da oralidade na literatura. Pensando em produzir alguns contos para experimentar o recurso da oralidade, escrevi “Um Otário com Sorte” e publiquei no Facebook. Passei, então, a receber muitos comentários e elogios, inclusive de gente desconhecida, como a Dalva Maria Soares (antropóloga e escritora), que viria a se tornar a minha namorada. Dalva começou a me acompanhar por causa desse conto e, depois de um tempo, disse que queria muito me ver publicado. Então me apresentou à Karine Bassi, da editora Venas Abiertas, que adorou o “Um Otário com Sorte”, mas pediu que eu produzisse mais alguns contos pra poder virar um livro. Resumo da ópera: editora pequena, Karine pegou dinheiro emprestado com um amigo para bancar a edição de “Vila Sapo”. Durante meses percorri Porto Alegre com uma mochila nas costas fazendo propaganda do livro e vendendo no boca a boca pra quitar a dívida com o cara que emprestou a grana. Hoje o livro anda com as próprias pernas, não preciso mais sair por aí oferecendo às pessoas. Ele vende bem, tem leitores em várias partes do País. Toda semana pinga um dinheirinho na conta por causa do “Vila Sapo”.
Revista Opera: Por falar nisso, você tem conseguido viver de literatura ou isso é uma utopia?
José Falero: Bem, tenho vivido da palavra. Tudo o que tenho feito desde “Vila Sapo” tem contribuído para isso. Foi por causa desse livro que me convidaram a escrever crônicas remuneradas para a Revista “Parêntese”. Também recebo como assistente de edição em outra revista digital, que também é um trampo associado à palavra. E agora tem “Os Supridores”, que está nas principais livarias do Brasil, teve os direitos vendidos para um projeto de audiovisual e está sendo traduzido para o francês e o inglês. Além disso, tenho sido convidado para participar de um pá de eventos literários, de rodas de conversa, de palestras, e quase sempre me pagam cachê pela participação. Então, sim, tenho conseguido viver da palavra. O que não significa que esteja ganhando muito. Eu ainda moro na Lomba do Pinheiro, numa casa humilde, e tenho que dar duro para pagar os boletos. No momento, acho que estou num estágio que nunca imaginei chegar um dia. Por outro lado, sou pessimista em relação à perspectiva de viver para sempre do que escrevo. Quem vive de literatura no Brasil? Uma meia dúzia de almas, talvez? Acho pouco provável que eu me torne uma delas. Ficaria feliz se acontecesse, é claro, mas não conto com isso.
Revista Opera: Fale sobre “Os Supridores”, um dos livros mais comentados da literatura brasileira este ano. Como você vê a repercussão em torno dele?
José Falero: É muito boa a sensação de ver as pessoas comentando e gostando de algo que tu tenha feito, mas busco manter os pés no chão porque a repercussão positiva me traz mais responsabilidade, tá ligado? Demorei a publicar “Os Supridores” e não foi por falta de tentativa. Terminei uma versão, enviava para as editoras, mas ninguém me respondia. Fiz outra versão e ninguém respondia do mesmo jeito. Foram meses e anos assim. Só na terceira versão é que consegui publicar, pela editora Todavia. Eu não fiz várias versões porque achava que a anterior estava ruim. Foi falta de oportunidade mesmo, eles nem leram. O que ocorre é que tem pautas sendo debatidas hoje que não eram debatidas há dez anos — e isso ajudou, sem dúvida, na publicação e na repercussão da obra. A periferia está tendo certa visibilidade no mercado editorial, existe uma demanda reprimida por autores periféricos.
Revista Opera: Como foi o processo de produção do romance?
José Falero: Demorei anos para concluir a obra porque eu só podia escrever quando sobrava tempo. Escrevia pouco, porque na época estava trabalhando de porteiro no turno da noite e só tinha a madrugada para escrever no serviço. Foi a primeira vez que me pagaram para escrever (risos). Voltei ao texto muitas vezes antes de colocar o ponto final.
Revista Opera: Os personagens Pedro e Marques são supridores num supermercado. Eles foram inspirados em sua experiência pessoal?
José Falero: Eu trabalhei como supridor em três supermercados quando jovem, mas eles não foram inspirados no que vivi. É claro que, que na literatura, tu não tem como fugir da tua própria experiência de vida. Eu não fiz os personagens de acordo com o supridor que fui, mas os subsídios para construir um texto é sempre a tua vida, a forma como tu vê a realidade. Tu pode escrever sobre um astronauta em Marte, por exemplo, que é uma experiência que tu nunca teve e nunca terá; mas o teu astronauta pode falar como teu amigo fala, ou ter o cacoete de um primo teu, ou pode sofrer por amor baseado em um trauma que tu teve no passado. De uma forma ou de outra, a vida das pessoas serve de subsídio para o que elas escrevem, mesmo que o texto saia da boca de personagens que não têm nada a ver com a pessoa que escreveu, entende?
Revista Opera: E quanto à consciência de classe dos personagens? Você se identifica com eles? Quando foi supridor já havia dentro de ti a clareza de que era explorado?
José Falero: Foi ali que me nasceu a coceira de tratar da exploração capitalista num romance. Eu tinha uma revolta e estava tentando organizá-la dentro de mim. Tem aquela história de que o brasileiro não tem consciência de classe, tá ligado? Em alguma medida, isso é verdade. Mas, em outra medida, isso é uma falácia. Inclusive a ideia de que na periferia todo mundo é alienado. Tu sabe que isso não é bem assim. O contexto político horroroso que a gente vive hoje serviu para mostrar que, além de uma elite cruel, temos uma classe média tacanha, egoísta e burra. Falta consciência política em todos os lugares, não só na periferia. Em todos os lugares tu vai encontrar pessoas que não têm uma boa compreensão do mundo. Na periferia tu vai encontrar gente incapaz de refletir o mundo, mas na classe média também, entre os ricos também. Só que, da mesma forma, têm pessoas conscientes em todo lugar. Eu me considero um proletário com consciência de classe, mas não sou o único, tá ligado? Tenho consciência da exploração, das injustiças, mas não sou exceção. Quando eu trabalhava na construção civil, conversava com os operários e via que muitos tinham plena consciência de que eram explorados.
Revista Opera: “Os Supridores” dá voz a personagens periféricos. Por que pouco se sabe sobre a vida na periferia de Porto Alegre?
José Falero: Não é verdade que não se sabe. Quem não sabe? O grosso da população de Porto Alegre sabe muito bem, porque mora lá. Mas entendi a tua pergunta. É que a galera que mora na quebrada é historicamente apartada de certos espaços de poder, destinados à classe média. Então, nesse sentido, não é comum que se veja retratada na literatura. Mas as pessoas têm voz. E na periferia temos espaços onde essas vozes costumam chegar. O pessoal do rap, o pessoal do samba, o pessoal do slam… O slam é uma batalha de poesia falada, que acontece na periferia das grandes cidades. Mano, são centenas de jovens reunidos na rua, recitando poesia, trocando livros. Que movimento literário consegue uma coisa dessas? As pessoas têm voz, só precisam ser ouvidas além da perifa.
Revista Opera: Nos últimos anos, autores da periferia têm sido publicados e merecido algum destaque no mercado editorial. Qual sua avaliação sobre isso?
José Falero: Historicamente, o perfil das pessoas que publicam livros é branco, homem, classe média. Um camarada meu diz que a literatura produzida por essas pessoas se esgotou, não atende mais a demanda, pois o mercado precisa de novos ares. Não sei se concordo totalmente com ele, pois acho que esse modelo já nasceu esgotado. Num país tão diverso como o nosso, é inaceitável que tenhamos tão pouca diversidade no que se publica. Os pretos, as mulheres, a população periférica formam a maioria da população, então há demanda por uma literatura que não apenas representa esta camada social, mas que parte dela. Eu creio também que a visibilidade relativa que temos obtido no mercado editorial se deve à luta dos movimentos, ao longo dos anos. E também às conquistas via políticas públicas que tivemos nos governos anteriores. Hoje as pessoas da quebrada estão se graduando jornalistas, professores, escritores, e suas vozes estão sendo ouvidas cada vez mais.
Revista Opera: Em entrevista recente, você diz que o bolsonarismo seria uma reação a estes avanços.
José Falero: É como o vejo. Os avanços que conseguimos nas duas últimas décadas não passariam despercebidos à nossa elite cruel. Ela não deixaria passar impunemente esses progressos, as políticas inclusivas e tudo o mais. Então, vejo Bolsonaro como um cara que foi plantado ali para fazer o trabalho sujo de destruição do País. Ele é uma reação da elite, porque de outro modo não teria chegado lá.
Revista Opera: Você é mais otimista ou pessimista em relação ao Brasil? Acha que conseguiremos retomar as rédeas do nosso destino?
José Falero: Depende. Às vezes acho que o governo Bolsonaro vai desmoronar sozinho, porque se torna insustentável manter em cargos de gestão tanta gente ruim. É uma mistura de incompetência com mau caratismo. Se fossem apenas mau caráter… Mas são boçais colocados em cargos estratégicos pelo simples fato de serem amigos do presidente ou dos filhos dele. Todo mundo sabe que isso não dá certo nem num mercadinho de bairro. E é isso o que vai acabar acontecendo: Bolsonaro será descartado pela própria elite que o colocou lá, porque vai chegar um momento em que ela também começará a perder dinheiro. Por outro lado, sou pessimista em relação à nossa democracia. Porque, velho, esse cara nunca poderia ter sido eleito. Isso não aconteceria numa democracia sólida — o que me leva a crer que a elite sempre vai dar um jeito de inventar um novo Bolsonaro pra colocar no lugar desse, e assim por diante. Como tem sido desde sempre, aliás. Como pudemos permitir a ascensão do fascismo? O que virá depois? O absurdo do contexto atual me faz pensar que tudo é possível.
Revista Opera: Como você avalia o papel do escritor num país profundamente injusto, desigual e violento, como o nosso?
José Falero: Não me sinto à vontade para cagar regra sobre nada. O escritor e o artista têm uma posição social poderosa, mas que pode servir para muitas coisas, independente do contexto social ou político do país. Expressar a tua visão de mundo pela arte tem muitos propósitos e não existe apenas um que seja o correto. O que procuro fazer como escritor é destacar o absurdo. Num país desigual e violento, como o Brasil, o absurdo foi naturalizado — e eu acho que é preciso desnaturalizar o absurdo, se quisermos construir um projeto de nação. Tu passa por uma pessoa caída na rua, por uma pessoa revirando lixo atrás de resto de comida, por uma criança pedindo dinheiro no sinal… e tu não te importa mais, velho. Isso é um absurdo. Assim como é absurda a violência sofrida pelos povos originários, pelas mulheres, pela população negra. Perdemos a capacidade de nos indignar. É isso o que somos? Desumanos? Então, nesse sentido, coloco meus textos num ângulo que busca provocar o estranhamento e o desconforto, que force as pessoas a refletirem sobre a violência que foi naturalizada. É o que chamo de “destacar o absurdo”.