Por Gustavo Basso.
Este relato se refere somente ao que aconteceu diante da lanchonete Puppy, na avenida Paulista 1009, durante as manifestações de 7 de setembro, por volta das 19h. Não caberia contar o que presenciei durante as 4 horas anteriores acompanhando manifestantes por avenida Paulista, 23 de Maio, viaduto Jacareí e praça da Sé.
Acompanhei toda a manifestação dos chamados black blocs, a trabalho para a agência italiana Nurphoto. Depois de 4 horas de caminhada voltava para casa de bicicleta quando cruzei com manifestantes indo para o Paraíso, na faixa sentido Consolação. Foram bloqueados por policiais e decidiram ‘pular’ para o outro sentido, e seguir a marcha. Mas foram bloqueados pelo mesmo grupo de policiais, que os foram empurrando em direção ao bar.
Resolvi guardar a bicicleta na garagem de um prédio vizinho. Quando saí da garagem, corri para a lanchonete, escutando barulho de garrafas, cadeiras e vidros maiores se quebrando. Sinceramente não sei dizer quem começou a agressão, mas sei qual dos grupos teve mais feridos. Cruzei com um manifestante sangrando muito na cara e na cabeça, sendo carregado. Recebi um jato de spray de pimenta que por sorte não atingiu meu rosto enquanto um membro da mídia Ninja era arremessado para o meio da avenida. Dei a volta no cerco e me aproximei da entrada da lanchonete.
Fotografava a polícia retirando pessoas de dentro da lanchonete quando um policial do nada me empurrou, gritando para os outros: “leva este aqui também!”. Depois de ser golpeado nas costas e jogado ao chão pelos cabelos, tentei explicar que era jornalista, que estava trabalhando, registrando as manifestações. Foi inútil.
Comecei a filmar discretamente o que os policiais faziam atrás de nós. Ao meu lado havia pelo menos mais cinco, ajoelhados, de frente para a grade de uma drogaria vizinha. No meio de ofensas, um policial acusava: “nós deixamos vocês se manifestar, mas vocês não sabem fazer as coisas direito”.
Outro policial, de patente maior, passou fotografando um por um: “dá um sorriso pra câmera, baderneiro”. E depois perguntavam: “De quem é a mochila vermelha? De quem é o molotov? É sua? É sua?” Acredito que ainda não acharam…
Quando um soldado notou que eu filmava tudo, pediu minha câmera. Antes de entregá-la, consegui, sob ameaça de ser algemado, tirar um dos cartucho de memória – o que guardava os vídeos. Guardei em um bolso da mochila e deixei que olhasse a câmera. Depois de mexer, um pouco, me devolveu, e levou minha mochila e bolsa de equipamentos ‘para averiguação’, há 2 metros de onde eu estava, onde não conseguia ver o que faziam. Quando me devolveram a mochila, o tal cartão de memória já não estava lá.
Depois de argumentar que o cartão sumiu da mochila, recebi só uma resposta: “depois você volta aí e procura.” E por que não podia procurar agora? “Você está detido, maluco, não entendeu?”. Eu não seria única vítima desse tipo na noite. Já no 2ºDP a câmera filmadora de um manifestante foi tomada, levada para onde ele não pudesse acompanhar e, às vista de alguns – entre eles eu – policiais retiraram o cartão de memória da câmera. Seu vídeo de toda a ação dos policiais dentro do bar não foi mais visto.
Depois das revistas e meia hora ajoelhados, fomos enacaminhados – 21 pessoas, metade menores de idade – para um ônibus, e fomos para o 8º DP, na Mooca, a mais de 6 km de onde a confusão aconteceu. No caminho tratava de avisar sem que vissem que havia sido detido e era levado para lá. Chegando à delegacia, todos os celulares foram confiscados, e partimos para o 2º DP. Por conta dessa desinformação, familiares, amigos e colegas jornalistas demoraram para nos localizar.
No ônibus, conversei com um rapaz com um galo na cabeça. O inchaço ainda iria piorar bastante ao longo da noite. Ele contou que tomava cerveja com a irmã e um amigo quando policiais entraram batendo com cassetetes no rosto dele e da irmã. Ao tentar protegê-la, contou, levou mais pancadas no braço e ombro esquerdos. A irmã foi socorrida, e ele não soubedela antes das 2h30 da manhã, quando deixei a delegacia.
Na minha frente, outro rapaz sangrava bastante da cabeça. Havia levado uma pancada e caiu de cabeça no chão, cortando bastante. O policial diante dele reclamava que sujava o ônibus de sangue.
Na delegacia, os policiais civis não demonstraram nada do sarcasmo e truculência dos militares. Todos fomos qualificados; os menores levados à Fundação Casa para checar antecedentes, só voltaram à delegacia depois das 2h30, segundo o advogado da ONG Advogados Ativistas, que assistiu a todos que não tivessem o próprio advogado (que no caso foi só eu).
Após prestar depoimento os 21 detidos foram sendo liberados um a um. A ‘cerimônia’ só foi encerrar próximo das 7h da manhã de domingo. O dia da independência já tinha acabado; sobrou apenas a ressaca e um coquetel molotov sem dono.
Foto: Evelson de Freitas/Estadão Conteúdo.