Por Samuel Lima.
Os dados da Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM, 2016), divulgados no começo deste ano não deixam margem de dúvidas à questão: “Em que meio de comunicação o(a) sr(a) se informa mais sobre o que acontece no Brasil?”, as respostas das 15.050 pessoas ouvidas no levantamento foram, pela ordem: 63% (TV); 26% (Internet); 7% (Rádio); 3% (Jornal); e 1% (Outros). Não obstante ter a menor taxa dentre os meios de comunicação tradicional, o jornal impresso é, paradoxalmente, o mais confiável: 60% entre os que confiam sempre, somados aos que confiam muitas vezes. Enquanto isso, as mídias sociais ainda patinam neste quesito: sites da internet (20%); a confiança nas notícias que circulam nos blogs é apenas de 11% e nas redes sociais, 14%.
Vou observar um momento desta etapa avançada do golpe, que agora tem como alvo o ilegítimo ocupante do Palácio do Planalto, Sr. Michel Temer, a partir das capas dos principais jornais impressos do país, em suas edições de 19 de maio, um dia após seu primeiro pronunciamento público a respeito da delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista, proprietários da JBS. Os jornais Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo espelharam posições diversas, no que foram acompanhados pela maioria dos veículos. Resta evidente a falta de consenso entre as frações do capital (financeiro, industrial, rural etc.) que se unificaram para apear Dilma do poder, e que agora não se entendem sobre o rumo que pretendem dar ao governo Temer.
É provável que ainda encontremos, no senso comum, guarida a explicações que passam pelos conceitos de manipulação, dominação de classe, influência ou persuasão. Penso que para entendermos o papel cada vez mais potente da mídia noticiosa na formação da opinião pública, faz-se imprescindível falarmos em hegemonia das ideias na esfera pública. A sociedade consome a informação jornalística nas fontes alimentadas pela mídia secular (nos suportes tradicionais e nos meios digitais), apesar do notável crescimento das mídias alternativas (ou independentes), na internet.
O verbo renunciar figura nas três manchetes, mas há diferenças sensíveis que se desdobrariam, do ponto de vista político-midiático, nas horas seguintes ao primeiro “Dia do Fico” do ainda presidente. Em O Globo, o leitor vai encontrar (na linha de apoio dupla) uma acusação de prevaricação e cumplicidade – Temer ouviu o empresário corrupto relatar “crimes”. N’O Estadão, prevalece uma tensão ao factual, escorado depois num editorial furibundo “denunciando” o “vazamento” – expediente sórdido fartamente utilizado contra os adversários Lula/Dilma, em passado recentíssimo pelo vetusto diário paulista.
Finalmente, a Folha de S. Paulo se lhe oferecia uma “chave” que Temer usaria em seu segundo “Dia do Fico” (no sábado, 20 de maio, à tarde): o mote de que o áudio teria problemas técnicos e seria, portanto, “inconclusivo”. A Folha reagia ao “furo” tomado de seu concorrente carioca (o colunista Lauro Jardim, ex-Veja, agora atuando n’O Globo) dando uma boia de salvação para um Temer “encurralado” (selo da própria Folha). Nessa linha escreveria, dois dias depois, seu proprietário, o empresário e Diretor de Redação Otávio Frias Filho: “Ainda é cedo para dizer que a administração Temer acabou”.
Na disputa acirrada pela narrativa, registro ainda o debate sobre a qualidade da perícia contratada pela Folha (que serviu de base ao segundo discurso de Temer, dia 20, sábado). Nas páginas da Folha, Ricardo Caires dos Santos foi apresentado como “perito judicial pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo”. Santos assegurara para a Folha que havia mais de 50 pontos de edição no áudio da conversa Joesley/Temer.
O mesmo perito, ouvido pela reportagem d’Jornal Nacional (TV Globo) e pelo O Globo, iria dizer outra coisa: “Autor de laudo citado por Temer usou equipamento amador para encontrar supostas edições”. Aos jornalistas do JN/G1, Santos – bacharel em direito e corretor de imóveis – declarou que “seu trabalho é apenas inicial e que qualquer conclusão depende de uma outra perícia. Ele negou que o áudio da conversa tenha 50 pontos de edição, como apontado pela Folha. Segundo ele, são 14 pontos de edição, entre 15 e 20 pontos de corte e diversos trechos de ruído. Mas disse que ele não tem condições de apontar onde estão os pontos de edição”. Por fim, uma informação esclarecedora d’O Globo: “Ricardo Caires dos Santos costuma se apresentar como perito do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas é apenas um prestador de serviços eventual da Justiça, sem nenhum vínculo com o tribunal”.
Outras Capas: Disputa da Hegemonia
Para o saudoso professor e pesquisador Adelmo Genro Filho, o jornalismo é uma forma social de conhecimento, cuja dimensão por excelência é o singular – aquilo que é único, e não se repete. O eixo da singularidade, explorada em várias capas e manchetes, foi a concordância do ainda presidente Temer à compra do silêncio de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, preso em Curitiba.
Numa rápida mirada nalguns dos principais jornais impressos do país, fora do eixo Rio-São Paulo, o que se vê é justamente uma produção social de sentidos que envolve o conjunto imagem-palavra, caras e bocas e trejeitos dos personagens abatidos pela delação dos magnatas do açougue JBS: Temer e Aécio Neves, o senador afastado de suas funções pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). Vejamos algumas dessas capas.
A narrativa evocada pelos jornais Correio Braziliense (CB, Brasília, DF), Estado de Minas (EM, Belo Horizonte, MG) e o Diário de Pernambuco (DP, Recife, PE), três veículos de larga tradição na história da imprensa brasileira, se conecta com a produção social de sentidos consolidada nas páginas da tríade hegemônica (Folha, Estadão e O Globo), embora haja traços específicos em cada um deles – transcendente à informação de que o ainda presidente não renunciara.
O fato destacado pelo CB, por exemplo, é a abertura de inquérito no STF para investigar Temer (e o afastamento de Aécio), sobre duas imagens que se complementam: o senador mineiro fazendo “beicinho” e Temer exasperado… No Estado de Minas, a manchete se conjunta à imagem – “Eu sei o que fiz”, deixando à imaginação do leitor o tipo de lambança praticado pelo ocupante do Palácio do Planalto. Por fim, os lábios crispados de Temer, naquela que considero gráfica e jornalisticamente a melhor das capas que pude analisar: o Diário de Pernambuco alinha, verticalmente a imagem de um presidente abatido pelo “míssil” da delação da JBS, combinando imagens da mobilização no Recife, com uma hierarquia de contexto que vai à possível debandada da base aliada do ainda presidente no Congresso, passando pelo impacto na economia, no cenário internacional indo até a paralisação das votações das reformas (trabalhista e previdenciária).
O professor e pesquisador Dênis de Moraes destaca: “A teoria da hegemonia de Gramsci permite-nos meditar sobre o lugar crucial dos meios de comunicação na contemporaneidade, a partir da condição privilegiada de distribuidores de conteúdos, como proposto por Karl Marx (MARX e ENGELS, 1977, p. 67): “transportam signos; garantem a circulação veloz das informações; movem as ideias; viajam pelos cenários onde as práticas sociais se fazem; recolhem, produzem e distribuem conhecimento e ideologia”. Os veículos ocupam posição distintiva no âmbito das relações sociais, visto que fixam os contornos ideológicos da ordem hegemônica, elevando o mercado e o consumo a instâncias máximas de representação de interesses”.
O processo de conformação de uma opinião pública favorável ao golpe que levou ao impeachment de Dilma Rousseff esclarece, de forma definitiva, o peso que a mídia jogou, desde o anúncio da eleição da ex-presidente, em outubro de 2014. Impedida, sem crime de responsabilidade, por um Congresso de maioria corrupta (e investigada), Dilma tem seu nome associado à corrupção sem nunca ter sido acusada ou investigada. Mas, no rito sumário do tribunal da mídia, no qual os veículos ocupam papel triplo (promotores/acusadores, juízes e júri popular), Dilma é culpada independente de provas, para boa parte da população, hegemonizada pela atuação conjunta das forças políticas e sociais, em fina sintonia com aquilo que Gramsci entendia como “arena da luta de classes, a sociedade civil”. Ou ainda, como escreveu Moraes (fonte cit.), tal arena pública vista como “um campo de dissonâncias, palco de conflitos e duelos, ora para reforçar o exercício da hegemonia, ora para enfraquecer os consensos firmados”.
As capas dos principais jornais impressos do país, aqui brevemente analisadas, refletem, direta e verticalmente, esse esforço para continuar construindo a hegemonia, num processo de golpe inconcluso. Pelo que se pode depreender, passados os primeiros dias após a delação dos irmãos Joesley & Wesley, da JBS, a estratégia é mudar algo para manter tudo como está. Ou seja: Temer será pressionado a sair de cena, para dar lugar a alguém entronizado pelo Congresso Nacional, em eleições indiretas. A condição sine qua non já indicada com clareza pela tríade Folha/Estadão/O Globo é uma só: Henrique Meirelles (ministro da Fazenda) continua, qualquer que seja o sucessor de Temer, para garantir a nefasta política de retirada de direitos e entrega do que ainda resta do patrimônio nacional. O professor Luis Felipe Miguel (UnB) traduziu precisamente, em postagem no Facebook: “O recado é claro: a vontade popular não pode atrapalhar a vontade do ‘mercado’”.
De outro lado, ressurge um movimento de massa unificado em torno de duas bandeiras: Fora Temer e Diretas Já!. A ver as cenas dos próximos capítulos.
Fonte: Objethos