Manifestação dentro do Terminal Central
Por Miguel Neumann.*
O Ministério Público do Trabalho ajuizou ação sobre o direito à liberdade sindical dos trabalhadores do transporte coletivo de Joinville. Os réus, como não poderiam deixar de ser, são o próprio Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros de Joinville, a Gidion e a Transtusa. É um segredo compartilhado por todos que o sindicato sempre teve ligação umbilical com as empresas. A novidade da ação, todavia, consiste em realizar uma pesquisa a fundo sobre o assunto, como ninguém mais poderia fazer, reunindo uma extensa diversidade de depoimentos que comprovam o descompromisso do sindicato com o bem estar dos trabalhadores bem como o caráter antidemocrático da Gidion e Transtusa ao controlá-lo por meios indiretos.
O objetivo desse texto é apresentar os pontos que me parecem mais significativos da ação em uma linguagem popular e, com isso, contribuir com a reflexão a respeito do modelo de transporte coletivo que desejamos que vigore nos próximos anos em Joinville, sobretudo por estarmos em um contexto de licitação, portanto crucial para o futuro imediato de nossa cidade. Um modelo que significou e significa a perseguição, humilhação e demissão de trabalhadores que desejam gozar do seu direito elementar à organização deve perecer e dar lugar a uma organização de transporte que permita, contribua e facilite esse processo de autoorganização dos trabalhadores.
Antes de iniciar propriamente a apresentação da ação vale dizer que ela é pública e está disponível, por meio de requerimento, na sede do próprio Ministério Público do Trabalho. Ela encontra-se sob o número 0001338-13.2013.5.12.0028 e pode e deve ser acessada por aqueles que têm interesse em mais do que uma exposição parcial – que é aquilo que esse texto pode oferecer.
Patrões do Transporte e Patrão-Prefeito Udo Döhler
Sobre a ação
A ação divide-se em três partes. A primeira busca caracterizar o sindicato atual dos trabalhadores de transporte como um “sindicato amarelo”; a segunda reconstitui as ilegalidades que orientaram as últimas eleições do sindicato em 2013; e, por fim, a terceira parte constitui o pedido da promotoria frente ao juiz. Sigamos, em linhas gerais, essa estrutura1.
Sindicato amarelo, conforme citado na própria ação, é quando “o próprio empregador estimula e controla (mesmo que indiretamente) a organização e ações do respectivo sindicato obreiro”2 (p. 2). A promotoria, conforme doutrinadores do direito, também afirma que o setor mais propenso a práticas antissindicais é o empregador, tratado como “infrator potencial da liberdade sindical” (p. 4). Nesse sentido, a ação declara:
“No setor dos réus, tal propensão se faz sentir sobremaneira. Afinal, o que mais empresários do ramo do transporte coletivo urbano poderiam desejar, além do monopólio do serviço por décadas sem licitação? (…) Infelizmente o Ministério Público do Trabalho verificou que para além da mera ‘propensão’ das empresas em influenciar o sindicato, o que existe entre os réus é uma verdadeira promiscuidade de relações, perniciosa a toda a categoria profissional e, certamente à sociedade joinvilense. Por conta dela, as empresas controlam as reivindicações dos trabalhadores e, em troca, a diretoria do sindicato se perpetua no poder” (p. 4)
Esse é o resultado da ação apresentado de modo preliminar. Resta mostrar o processo que permitiu ao MPT chegar a essa conclusão.
E o processo teve início com a denúncia de um cidadão trabalhador que alegou que sua candidatura à Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) foi fraudada. Carlos1 apresentou listagem com a assinatura de 59 pessoas que votaram nele, muito embora no edital com o resultado houvesse apenas trinta votos favoráveis a sua candidatura (pp. 4-5). Segundo Carlos, sobre a fraude,
“acredita que isso ocorreu porque tinha uma ligação com um trabalhador que cogitou formar uma chapa de oposição para as eleições do sindicato desse ano [2013] e também porque o depoente fez uma campanha forte para que seus eleitores de fato fossem votar e votassem nele. (…) no mesmo dia em que o depoente foi dispensado também foi dispensado o Sr. João, apenas porque este comentou que o que aconteceu com o depoente estava errado e que acreditava que a contagem de votos tinha sido fraudada” (p. 5).
Como nota a ação, “a estabilidade empregatícia garantida ao membro da Cipa eleito pelos empregados faz com que essas comissões funcionem como potenciais nascedouros de líderes da classe trabalhadora” (p. 5), e, por isso mesmo, é estratégico para as empresas que cortem o “mal pela raiz” atuando na demissão daqueles que a ela se candidatem. A ação ainda nota que nas atuais Cipas da Gidion participam trabalhadores de grande confiança da empresa, como um controlador operacional, logo convenientemente promovido a supervisor de negócios, um instrutor operacional e uma assistente de RH. Notável como em uma empresa de transporte coletivo não há motoristas cipeiros.
O trabalhador com quem o sr. Carlos tinha ligação era o Sr. Élcio. O testemunho de Élcio dá conta de que
“foi dispensado sem justa causa pela empresa; que era cipeiro e seu mandato iria até o final deste ano; que ajuizou reclamatória trabalhista questionando isso; que a empresa não alegou nenhum motivo para dispensá-lo, apenas disse que teria que dispensar alguém e que havia chegado a vez do depoente; que acredita que foi dispensado por ter participado de uma reunião em Blumenau com o sindicato daquela cidade que ajudaria o depoente e outros sete trabalhadores a compor uma chapa de oposição para as eleições do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros de Joinville; que cerca de 15 dias após sua participação nessa reunião o depoente foi chamado a comparecer na matriz da empresa quando o sr. Jacson e o sr. Skill, ambos supervisores, informaram ao depoente que sabiam de sua participação em referida reunião e indagaram quais outros trabalhadores haviam participado. (…) como a empresa na verdade não sabia ao certo quem estava articulando a oposição, dezenas de outros trabalhadores foram dispensados, apenas por falsas suspeitas” (pp. 5-6).
O sr. Élcio foi, antes de sua demissão, realocado para o terminal do Nova Brasília, de menor visibilidade a fim de facilitar sua exclusão da empresa. Até aí teríamos um depoimento isolado se não fossem todos os seguintes que confirmam a mesma prática antissindical promovida pela Gidion e Transtusa. Outro ex-trabalhador, o sr. Ismarildo, acredita “na verdade [que] o Sindicato não é dos trabalhadores; que diz isso porque os trabalhadores que lá comparecem para fazer qualquer reclamação contra a Empresa são dispensadoos depois de alguns dias” (p. 6). Uma testemunha que optou pelo anonimato contou ao MPT que reclamou ao Sindicato certos direitos que, no seu entender, seriam negligenciados pela Gidion. O representante do sindicato confirmou, via telefone, que, de fato, tais direitos eram sonegados, o que prontamente ensejou a pergunta, por parte da testemunha anônima, se o Sindicato nada faria. Conforme seu depoimento, afirmou “queo represente do sindicato então desejou saber qual era o empregador do depoente e a identidade deste; que o depoente se negou a dizer; que o representante do sindicato então pediiu para que o depoente fosse até o sindicato a fim de conversar pessoalmente sobre o assunto; que o depoente respondeu que não iria se fazer presente para não ser identificado, pois sabia que se fosse identificado pelo sindicato estaria na ‘na rua’ no dia seguinte; que o representante do sindicato riu” (pp. 9-10).
Fatos isolados e singulares? Não parece ser o caso. Instrutivo a esse respeito é o depoimento do sr. Sebastião, ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos, que, citado em depoimentos, teve participação na formação de uma chapa nas eleições de 2006, na qualidade de representante local da Central Única dos Trabalhadores. A eleição de 2006 ocorreu apenas após ação pública (explicarei o caso adiante). Sebastião contou que parte do esquema de permanência do atual grupo no poder do sindicato deve-se não apenas a mecanismos tipicamente repressivos, o mais alto deles a demissão, mas também ocorre através da cooptação de trabalhadores. Disse ele:
“(…) nessa condição [de representante da CUT] foi procurado há pouco mais de 06 (seis) anos por alguns trabalhadores das empresas Gidion e Transtusa que pediram assistência para criar uma chapa de oposição para concorrer nas eleições do Sindicato dos Trabalhadores no Transporte de Joinville; que passou a orientar esses trabalhadores sobre como deveriam proceder para criar uma chapa sem deixar que o nome de seus integrantes transparecesse para as empresas, pois no meio sindical é consabido que o fato de a empresa conhecer os nomes de pessoas que pretendem participar da eleição pode vir a trazer prejuízo para estas; que teve contato, nessas orientações, com o Sr. Valdecir, empregado da Transtusa, e o senhor Probato, empregado da Gidion; que antes do registro da chapa a Transtusa ofereceu ao Sr. Valdecir, o qual então tinha estabilidade por ser CIPEIRO, a coordenação do terminal norte, isto é, propôs-lhe uma promoção; que o sr. Valdecir aceitou isso; quanto ao sr. Probato, os componentes da então ‘situação’ do Sindicato profissional lhe deram oportunidade de participar de sua chapa; que com isso esses trabalhadores acabaram por abandonar a ideia de compor uma oposição; que soube que os demais trabalhadores que pretendiam compor a chapa de oposição acabaram por ser dispensados pelas duas empresas (p. 10).
No entanto não basta cooptar e demitir, é ainda preciso intervir ativamente no processo. Segundo ainda Sebastião, seu testemunho indica que quanto à eleição de 2006 “soube que as empresas providenciaram o pagamento das mensalidades sindicais de todos os trabalhadores componentes de seu quadro administrativo; que efetivamente presenciou micro-ônibus das empresas chegando no sindicato de onde desembarcaram trabalhadores administrativos para votar” (p. 11).
A ação é mais rica que essa pálida seleção de depoimentos. No entanto, parece a partir deles ser possível caracterizar com segurança o status de “sindicato amarelo” do sindicato dos trabalhadores de transporte de Joinville. A epígrafe inicial da ação pública correlaciona corretamente o direito à liberdade com a efetivação da democracia como um todo. A negação desse direito a um setor significativo da sociedade joinvilense constitui uma afronta a toda sociedade; os direitos não podem, ou não devem, ser suspendidos no interior do espaço de trabalho. Pois esse é justamente o caso, caso invisibilizado em razão do poder econômico das empresas rés amparadas por um sindicato que não cumpre com sua função mais básica de representação política. E porque essa insatisfação, embora grandiosa, permanecia ainda invisível? Há aproximadamente dois anos trabalhadores da Transtusa tentaram criar uma associação meramente recreativa. Isso foi o suficiente para a demissão de vários deles. A ação relata: “Com efeito, à época houve denúncia sobre o tema perante a Procuradoria do Trabalho, mas como o denunciante se negou a informar nomes de participantes do movimento, por temer represálias da empresa, o inquérito acabou arquivado por falta de provas” (p. 14). Um trabalhador esclarece a razão de toda essa insatisfação permanecer, em grande medida, ainda invisível: “indagado pelo Procurador o motivo de ninguém ter procurado o MPT na época, considerando que havia até investigação sobre os fatos, o depoente afirmou que provavelmente isso ocorreu em razão do receio dos trabalhadores de serem dispensados e não conhecerem a possibilidade de solicitar sigilo de sua identidade, pois se soubessem disso vários viriam depor, já que todos são revoltados com a promiscuidade entre as relações da empresa com o Sindicato profissional” (p. 14). Estamos diante de um poder fundamentalmente autocrático que a partir do espaço de trabalho cria um clima político de medo em parte importante da sociedade.
O clima de medo vinculado à possibilidade da perda do emprego na empresa privada impossibilitou por grande tempo uma visão de conjunto equilibrada sobre a situação dos trabalhadores por parte do poder público e da maioria da sociedade. Todavia, no interior da empresa a situação apresentava-se clara, a ponto de a investigação promovida pela Procuradoria chegar a estar com depoimentos em demasia: “De todo modo, além das 08 (oito) testemunhas até então ouvidas, foram ouvidas outras dezesseis (16) pessoas. Todos os depoimentos convergem com o quadro de manipulação do sindicato pelas empresas e de direcionamento das eleições pelos réus. A dado momento eram tantos o trabalhadores que compareciam na Procuradoria para depor, motivados por sua revolta com as eleições, que se passou a dispensar as oitivas (esses outros depoimentos foram colhidas às vésperas e durante as últimas eleições sindicais, ocorridas em agosto/2013)” (p. 11).
Vista em sua especificidade interna, a situação dos trabalhadores de transporte em Joinville é, por si mesma, absolutamente lamentável. Mas se vista em termos comparativos? A ação pública, com esse fim, passa a investigar os acordos coletivos de trabalho (ACT) de Joinville e Florianópolis com o propósito de aferir, em outra localidade, geograficamente aproximada de Joinville, qual a situação dos trabalhadores de lá e cá. A ação avalia 33 pontos de vantagens, direitos e obrigações das categorias em comparação – os valores são referentes à data da ação. Antes de citá-los, vale lembrar, como se não fosse suficiente, que a tarifa em Florianópolis é ligeiramente menor que em Joinville. Dos 33 pontos citados em cinco deles Joinville proporciona melhores condições aos trabalhadores que em Florianópolis, a qual, por sua vez, supera Joinville em vinte e cinco outros pontos, sendo dois deles “equivalentes” e um deles indefinido (por uma razão a ser comentada adiante). Entre as vantagens de Florianópolis encontra-se o salário normativo (cerca de R$450 superior ao de Joinville); o tíquete alimentação (superior em R$140), a existência de participação nos lucros (inexistente em Joinville); a possibilidade de adiantamento de 40% do salário (inexistente em Joinville); a duração do trabalho fixada em 6h30min diários (em Joinville são 44h semanais); o fato de o motorista não possuir a dupla função de vender passagens (sabemos, em Joinville isso ocorre há mais de dez anos); adicional noturno de 30% (em Joinville é de 20%); salário no contrato de experiência idêntico ao piso (em Joinville o valor é de 90% do piso); a previsão de descontos salariais de 10% do piso, ou da franquia, sobre danos em veículos (em Joinville a cobrança dá-se de forma ilimitada); não há previsão que motorista, ou mesmo cobrador, cumpram a função de limpeza no interior dos veículos (em Joinville, ao contrário, essa função também cabe ao motorista). A ação pública é precisa ao definir que “Em alguns pontos o ACT de Joinville parece mais um regulamento empresarial do que um instrumento de negociação coletiva” (p. 15).
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Intervenção sobre a fachada da Transtusa: Futura Empresa Pública de Transporte
Esses são, em linhas muito esquemáticas, os argumentos que permitem à ação concluir que o sindicato é, de fato, “amarelo”, patronal, contrário à reivindicação dos trabalhadores. A segunda parte da ação civil pública trata de analisar as eleições ocorridas em agosto de 2013, com a ressalva de que “o histórico antidemocrático do sindicato réu já vem de longa data. Ao cabo do mandato da diretoria anterior, por exemplo, em 2006, as eleições só foram realizadas por ordem do Juízo da 1ª Vara do Trabalho, acolhendo pedido do MPT” (p. 21). Formalmente, o estatuto antidemocrático do sindicato permitiu a extensão do mandato dos burocratas em questão, na medida em que permitia que, na vacância de 50% dos cargos e sem suplência, seria possível escolhê-los via assembléia extraordinária e prorrogar em seis anos (!) o mandato. A Vara do Trabalho, a par da evidente manobra, declarou esse ato de efeito nulo e obrigou o chamado de novas eleições.
Não é uma afirmação destemperada e fora do bom senso dizer que as eleições do sindicato em 2013 foram um golpe antidemocrático sobre a categoria de trabalhadores do transporte. Golpe esse financiado diretamente pelas empresas Gidion e Transtusa. A explicação dessa asseveração é simples. Essa manobra ocorreu em vários atos os quais tentarei reconstituir. A partir de janeiro de 2013 os benefícios advindos da associação ao sindicato, do corte de cabelo a plano de saúde, através do pagamento de mensalidades, passaram a não mais ser descontados da folha de pagamento e vieram a ser integralmente pagos pelas empresas. Ou seja, os serviços oferecidos pelo sindicato passaram a ser financiados pelas empresas rés. Vale lembrar que o Acordo Coletivo de Trabalho proíbe que as coisas assim ocorram (p. 22). Mesmo aqueles que jamais foram sindicalizados puderam usufruir dos serviços do sindicato. Aos incautos, aparentemente, uma benfeitoria das empresas frente a seus funcionários. Conforme a ação, “a cláusula ‘Dos Benefícios’ do acordo coletivo de trabalho firmado entre os réus (…) servia-lhes como instrumento de incentivo à associação, pois previa a concessão de uma série de benefícios pelas empresas, mas apenas aos trabalhadores associados ao sindicato profissional. As poucas vantagens previstas no acordo coletivo aos trabalhadores residiam justamente nessa cláusula e desse modo, praticamente todos os empregados se associavam ao sindicato (e tinham as mensalidades descontadas de seus salários)” (pp. 22-23).
Qual a razão da mudança dessa metodologia – pagar individualmente para ter os benefícios em oposição às empresas pagarem – precisamente em ano eleitoral? Essa aparente “benesse” nada mais era que uma tática de esvaziamento do número de filiados objetivando o maior controle da burocracia sindical em vistas de se garantir a vitória nas eleições. Sim, tratou-se da diminuição significativa do número de filiados, da redução drástica do número de associados. Parece insano um sindicato reduzir seu número de filiados, justo aqueles que lhe garantem a manutenção econômica e política. Todavia, quando a representação política se autonomiza das bases e quando seu financiamento não se dá mais pelo desconto dos trabalhadores, mas sim por meio do bolso dos patrões não há nada de estranho nisso. A ação emenda: “O que se fez, então, foi providenciar a desassociação em massa dos trabalhadores no ano das eleições, mediante suspensão dos descontos das mensalidades sindicais” (p. 23).
Para garantir a legalidade formal desse ato, o sindicato afixou edital, sem qualquer publicidade, comunicando que os benefícios seriam mantidos e quem desejasse permanecer associado deveria procurar o sindicato. A questão é urgente: ora, se os benefícios estavam mantidos, para que se manter associado, que vantagens isso podia trazer ao trabalhador? Permanecer associado garantiria um direito fundamental: o direito de votar e ser votado. Nesse momento, porém, esbarra-se na constituição histórica do sindicato amarelo do transporte:
“Mas, no contexto das espúrias relações existentes entre os réus, acima referidos, quem procuraria o sindicato para manter sua associação? Ora, os benefícios haviam sido estendidos para todos os empregados, ainda que não associados, e desse modo o único interesse do trabalhador em manter sua associação seria a participação nas eleições. Assim, os trabalhadores já sabiam que se procurassem o sindicato para manter sua associação (e poderem participar das eleições) seriam sumariamente dispensados pelas empresas (sob algum pretexto, obviamente), pois ficaria claro para os réus que o interesse do trabalhador era participar do sindicato. Como resultado prático, manteve-se a qualidade de associado apenas daqueles comprometidos com as empresas e a atual direção do sindicato, de modo que apenas eles puderam compor chapa, votar e elerger-se” (pp. 23-24).
A ideia disseminada cirurgicamente a fim de enganar os trabalhadores era de que a empresa estaria “pagando as mensalidades”, quando na verdade ela pagava os benefícios, porém com a maioria tendo sido desassociada – o que não era claro a categoria, tendo em vista que o edital que promoveu a desfiliação não foi devidamente publicizado. O processo todo ocorreu às costas dos trabalhadores. A ação conclui, com bastante destaque, que o objeto da manobra era o “evidente intuito de DIRECIONAR AS ELEIÇÕES” (p. 24).
Há vários depoimentos que jogam luz sobre o caso. O caso da sra. Maria parece um dos mais drásticos pois nela a indicação da constituição de prova material sobre o ocorrido. O sr. Elcio citado anteriormente, afirmou que a sra. Maria não deu-se por satisfeita com a desfiliação de modo que “procurou o sindicato para pagamento das mensalidades e este não aceitou; que a Sra. Maria fez isso porque não poderia ser dispensada, já que estava afastada do emprego recebendo benefício do INSS; que se fosse outro trabalhador sem estabilidade fatalmente seria dispensado pela empresa, pois o sindicato teria comunicado à empresa a intenção do trabalhador” (p. 9). A própria sra. Maria disse que “o Sindicato não vem prestando assistência para a depoente e inclusive esta atrasou quatro mensalidades e compareceu ao sindicato para fazer o pagamento em atraso mas o sindicato, na pessoa do Sr. Rubens Müller, não aceitou; (…) que enviou uma carta para o sindicato manifestando o seu interesse em pagar em atraso as mensalidades mas a carta retornou com o AR com a anotação ‘RECUSADO’ e a assinatura do Sr. Rubens Müller” (p. 7). A testemunha apresentou no Ministério Público do Trabalho a carta, ainda fechada, com a assinatura do sr. Rubens Müller.
Diante desse quadro, será possível estimar em números o quanto significou essa desfiliação em massa a fim de garantir, de modo arrivista, a vitória nas eleições? Segundo a ação, “apenas a segunda ré (Gidion) descontou dos salários a mensalidade sindical para 700 empregados em janeiro de 2012 ao passo que, já por ocasião das eleições, havia apenas 86 (oitenta e seis) associados aptos a votar, conforme documentos apresentados pelo sindicato réu no inquérito (…). Em um ano, o quadro de associados foi reduzido em cerca de 95%” (p. 26).
E isso tudo ainda não basta a fim de determinar o alcance do atentado à liberdade sindical promovido por empresas e sindicato. Questões outras, ainda que “menores”, demonstram o descompromisso com a democracia. O edital estabelecia que duas das três urnas de votação seriam itinerantes e estariam localizadas nos principais locais de trabalho (a outra estaria na sede do sindicato). Todavia, as duas urnas supostamente itinerantes permaneceram fixas nas sedes das empresas, segundo o próprio presidente do sindicato, em manifesto desrespeito ao edital (p. 29). O edital publicado no jornal A Notícia, ao dar aviso da existência das eleições, dizia ainda que o edital resumido encontrar-se-ia na sede do sindicato, o que, por sua vez, desrespeita o regulamento eleitoral. Regulamento esse desrespeitado quando também deveria estar expresso os locais de afixação ou trânsito das urnas e seu respectivo horário. Há ainda outra irregularidade, de maior porte. Acompanhemos a reconstituição de uma testemunha anônima:
“que foi procurado por um colega para montar uma chapa para participar das eleições do sindicato; que tendo aceito, passou a auxiliar na montagem dessa chapa, inclusive abordando colegas para convidá-los; que a chapa efetivamente foi formada com 20 (vinte) integrantes e estes estavam aguardando a publicação pelo Sindicato do edital de abertura do prazo de inscrição de chapas para a eleição; que vários dos integrantes estavam adquirindo jornais “Notícias do Dia”, “A Notícia”, “Gazeta de Joinville” e o “Jornal de Santa Catarina”; que no entanto souberam ontem que o edital foi publicado, o prazo para a inscrição já terminou e as eleições ocorrerão nesta sexta-feira dia 30/08 sem que nenhum dos integrantes tivesse visto a comunicação; que isso ocorreu porque a publicação foi feita em legras (sic) pequenas, fora da parte de publicações legais (Seção de Esportes) em um fim de semana e sem cabeçalho de identificação do sindicato (…)” (p. 29).
Publicação em letras miúdas, sem cabeçalho e na seção de esportes, portanto não na tradicional parte das “publicações legais”. Aqueles que, eventualmente, furaram o bloqueio e tentaram pagar suas mensalidades sofreram ainda um desestímulo por parte do sindicato. Convincente a esse respeito é a transcrição de uma conversa telefônica entre um trabalhador e um secretário do sindicato no qual há uma evidente má vontade em que o trabalhador deixe seu pagamento em dia a fim de poder participar do suposto processo democrático (pp. 32-33).
Os pedidos da ação
A ação civil pública solicita que as eleições do sindicato em 2013, na qual proliferaram toda a sorte de denúncias, sejam anuladas. Diz a ação: “Deve ser reputada NULA a eleição promovida no dia 30/08/2013 para a diretoria sindical do sindicato réu e ILEGÍTIMA é a diretoria que se fez eleger, devendo esse MM. Juízo assim reconhecê-la e decretá-la, cassando todos os atos porventura praticados após aquele pleito. Ainda, impõe-se a reparação do mal causado pelos réus, de forma ampla e a inibição de prática futura de ilícitos da mesma espécie” (p. 36).
É claro, entretanto, que o sindicato não é o único responsável por toda a situação. Há ainda as empresas que patrocinaram o golpe antidemocrático. Dado o dano moral coletivo causado ao conjunto da sociedade – “Os ilícitos são gravíssimos, redundando em prejuízos nefastos para milhares de trabalhadores e toda a sociedade joinvilense e auxiliando, certamente, na fruição de vultosos lucros pelas empresas” (p. 39) – é necessário que ele seja reparado. A ação lembra, por um lado, do fato de as empresas possuírem um capital significativo e, por outro lado, sua condição ilegal: “O grande porte econômico das empresas rés é fato notório na cidade de Joinville. Aos graus superiores de jurisdição, todavia, cumpre esclarecer que elas são, há muitas décadas, detentoras do monopólio (sem licitação, diga-se de passagem) do transporte coletivo de passageiros de Joinville (…)” (p. 39). Por isso, o Ministério Público sugere que a indenização ao prejuízo causado pelas empresas seja definido em dez milhões de reais.
Há ainda a importante menção a respeito da proteção das testemunhas, em especial a Sra. Maria, até a época do ajuizamento afastada da empresa, e que quando de sua readmissão ela não deverá ser demitida.
A ação ainda não teve um resultado final.
Escracho quando Moacir Bogo (Gidion) recebe título de Cidadão Honorário
Democracia e transporte público
A ingerência das empresas rés no sindicato de trabalhadores do transporte é tamanha, contínua e organizada de tal modo que deve nos levar a perguntar pelas suas motivações mais profundas. Quais as razões que levam as empresas e sindicato a um acordo tão uníssono em vista do massacre dos trabalhadores?
A ação civil pública oferece várias sugestões. Não há dúvida, no entanto, que a ampliação da margem de lucro seja o objetivo primário – a comparação com Florianópolis é eloqüente a esse respeito. A desorganização e desmobilização deliberadamente produzidas pelo sindicato são altamente benéficas a fim de que os trabalhadores tenham seus direitos e vantagens reduzidos em favor dos dividendos das empresas. Como é claro ao longo da ação, as empresas não apenas reprimem – embora seja essa sua tática prioritária –, mas também cooptam, chamam para si trabalhadores com eventual potencial de organização para cargos diretivos. Nesse sentido, o atual sindicato nada mais é do que uma espécie de casta de ex-trabalhadores que guarda pouca ou nenhuma semelhança com o restante da categoria profissional. A atuação coordenada junto à direção da empresa os transmutou em fiéis guardiões dos patrões.
Do ponto de vista dos usuários de transporte, no entanto, qual o significado e importância dessa ação civil pública? Na verdade, toda a importância. A necessidade de unificar os interesses entre trabalhadores e usuários é uma questão de longa data no interior dos movimentos sociais que lutam contra os aumentos de tarifa e transporte público, os quais ganharam bastante notoriedade desde junho de 2013 – muito embora sejam bem mais antigos do que essa periodização possa supor.
Em Joinville, quando da primeira audiência a respeito da licitação do transporte, em 30 de janeiro de 2012, a Frente de Luta pelo Transporte Público lançou um manifesto com vários pontos a fim de balizar a discussão em torno da modificação do transporte. Desde aquela época – e nesse ponto Udo Döhler e Carlito não apresentam quaisquer diferenças – a iniciativa do poder público caminhava na manutenção do transporte privado, custeado por tarifa individual, de baixa qualidade e salários e condições de trabalho aviltantes aos funcionários. Além de a FLTP propor mudanças substantivas no modo de arrecadação a fim de custear o transporte (priorizando impostos progressivos e, eventualmente, uma mensalidade), um dos pontos buscava contemplar a questão da organização sindical. Explicitamente a FLTP reivindicava liberdade de organização para os trabalhadores das empresas de transporte. É evidente, porém, que a luta é muito mais antiga e essa menção é apenas ilustrativa, mas demonstra a disposição de que trabalhadores e usuários devem se somar a fim de terem mais força política. Diante disso, a ligação entre os usuários de transporte e os trabalhadores deve ser efetivada. A condição para isso é a continuidade do processo de autoorganização dos trabalhadores do transporte – como a própria ação civil diz, numa quase organização de “guerrilha”, clandestina e cuidadosa – somada às iniciativas do movimento social por redução de tarifas e por transporte público com tarifa zero.
A ação civil pública da Procuradoria do Trabalho é uma contribuição fundamental não apenas para a discussão localizada do problema de trabalhadores de uma determinada empresa. Na verdade, essa ação civil pública proporciona o ensejo de discussão a respeito do modelo de transporte coletivo que desejamos, pois, como bem argumenta a ação, o atual modelo significa níveis de exploração desmedidos dos trabalhadores e falta de liberdade sindical. A transformação necessária é mais crucial: é necessário superar o modelo privado que, por se apoiar na lógica do lucro, tem como seu corolário a destruição da organização verdadeiramente sindical dos trabalhadores. E, com isso, o debate avança para o modelo de sociedade que efetivamente construímos, se apoiado na negação de direitos elementares aos trabalhadores cidadãos ou não. Nesse sentido, a ação civil pública 0001338-13.2013.5.12.0028 presta serviço e confere honra à luta de todos aqueles que não se conformam com a arbitrariedade do poder econômico de duas empresas e seu braço sindical sobre a maioria da sociedade joinvillense. Por isso é possível dizer que essa ação civil pública é mais um passo na longa caminhada por uma vida sem catracas.
*Militante do MPL-Joinville.