“Jogo e Teoria do Duende” – FG Lorca. Por Michel Croz.

Por Michel Croz.

Transcriação ao português: Verónica Loss.

A conferência que Lorca escreveu, estando a bordo do transatlântico Conte Grande, e que proferiu na Sociedade Amigos da Arte, no ano de 1933 em Buenos Aires, é um claro exemplo da sua poética hermética e transcendente.

Lorca explica o seu entendimento da arte como provido de um mistério que lhe é essencial. Trata-se de algo inefável que é parte da poesia, mas também do resto das disciplinas artísticas, e faz com que estas sejam irredutíveis a uma mera explicação. Nas suas próprias palavras, a respeito do duende:

“só se sabe que queima o sangue como um trópico de vidros, que esgota, que recusa toda a doce geometria aprendida, que quebra os estilos, que se apoia na dor humana que não tem consolo…”

Proveniente do flamenco, o duende é um conceito fundamental para entender a arte espanhola. Esta pequena resenha trata de buscar a idéia do duende nas palavras de Federico García Lorca.

O duende normalmente está associado com a cultura flamenca, mas Lorca o define como um conceito artístico universal.

“A velha bailarina cigana, A Malena! Exclamou um dia, escutando tocar a Brailowsky, um fragmento de Bach: “Escuta! Isso tem duende!”

“E Manuel Torre, o homem de maior cultura no sangue que já conheci, disse, escutando ao próprio Falla, seu Nocturno del Generalife, esta esplêndida frase: ‘Tudo o que tem sons negros tem duende. Estes sons negros são o mistério, as raízes que penetram no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial na arte.'”

Manuel Torre, (Manuel Soto Loreto) foi um lendário “cantaor” cigano. Mesmo sendo analfabeto, tinha uma sabedoria profunda de sua arte. Lorca diz que o duende é idêntico às notas escuras, ou à força da música de Paganini.

“Sons negros disse o homem popular da Espanha e coincidiu com Goethe, que faz a definição de duende ao dizer de Paganini, expressando: “poder misterioso que todos sentem e que nenhum filósofo explica.”

A cor preta (ou às vezes escura) é um dos símbolos favoritos de Lorca que significa o duende.

“Anjo e musa vem de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas (Hesíodo aprendeu delas). Pão de ouro ou dobradura de túnicas, o poeta recebe normas no seu bosquezinho de louros. Em troca, ao duende há que despertá-lo nas últimas moradas do sangue.”

Igual que outros muitos artistas, Lorca se baseia profundamente na cultura grega, ao mesmo tempo que é vanguardista e necessita renovar a arte. É interessante ver que Lorca atribui novos papéis ao Anjo e à Musa que se afastam do convencional como resultado da sua nova interpretação. Agora o Anjo simboliza a graça e a inspiração (da poesia de Garcilaso), a Musa é a inteligência (da poesia de Góngora), e o duende vem de dentro.

Segundo Maria Laffranque, a especialista em Lorca, o duende é a dor mesma, é a consciência dolorosa e não resignada, do mal e da desgraça. O duende não vem se não há possibilidade de morte.

Anjo e Musa fogem com violino ou compasso, e o duende fere, e na cura desta ferida, que não fecha nunca, está o insólito, o inventado da obra de um homem.”

No processo de revelar a realidade profunda através da poesia, Lorca sempre recusou qualquer estética realista que se opusesse à idéia da “interpretação”, porque a referência literal à realidade claramente não era suficiente para a poesia, e necessitava a ajuda de metáforas para simbolizar e interpretá-la. O duende, por seu caráter mortal, faz com que as artes estejam unidas para comunicarem-se mais facilmente, desse modo a poesia se converte em algo transcendente.

“A virtude mágica do poema consiste em estar sempre enduendado para batizar com água escura a todos os que o olham, porque com duende é mais fácil amar, compreender, e é seguro ser amado, ser compreendido, e esta luta pela expressão e pela comunicação da expressão adquire às vezes, em poesia, um caráter mortal.”

Como indicam as citações, o duende não tem nada a ver com a classe social, nem com a nacionalidade, nem com a educação. Também não se pode adquirir-lo estudando ou treinando. É algo muito humano que talvez corra no nosso sangue, mas que apenas se desperta. Segundo Lorca, a arte autêntica só acontece quando se reúnem os três elementos: a sabedoria, a inspiração e o duende.

“A Menina dos Pentes”, por exemplo, é uma sessão narrativa que funciona como núcleo da conferência. No marginal e escuro espaço de uma caverna em Cádiz.

Ali se teriam reunido os protagonistas deste episódio: um pecuarista, uns abatedores, uma prostituta e um “hombrín-aficionao”, todos eles a cavalo, entre a veracidade biográfica e a invenção artística. Segundo um dos editores, este episódio comp?e o quadro em que Federico encontrou:

“os vínculos que precisava para ligar simbólicamente sua reflexão sobre as artes e o duende a três tópicos fundamentais da sua obra poética e dramática: a fecundidade, o sangue e a morte.”

Para finalizar esta resenha ou artigo, cito um argumento do prólogo do livro “Impressões e Paisagens” (1918) que nos dá uma idéia clara da estética lorquiana.

“A poesia existe em todas as coisas, no feio, no lindo, no repugnante: o difícil é saber descobri-la, despertar os lagos profundos da alma. O admirável de um espírito está em receber uma emoção e interpreta-la de muitas maneiras, todas distintas e contrárias.”

 

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