Jesus, a religião e o uso da razão. Por Jair de Souza.

“Retrato falado” de Jesus feito pelo especialista Richard Neave para a BBC

Por Jair de Souza.

Entre os que militam em política no campo popular de esquerda, sempre esteve presente a questão do papel da religião nos processos de transformação social. Por isso, ao abordar este tema no presente texto, não estamos fazendo nada que já não tenha sido feito no passado.

Entretanto, o que deveras esperamos que venha a ser uma novidade é a maneira como pretendemos analisar e sobrepesar os aspectos mais relevantes do sentimento religioso em contextos de lutas em favor das causas do povo trabalhador.

O primeiro ponto que convém que deixemos evidente é que toda e qualquer crença religiosa só deveria ser aceita como eticamente válida se seu objetivo básico for a busca do bem para o conjunto da humanidade. Isto quer dizer que nenhuma religião que se dedique a pregar e defender pensamentos ou ações que atentem contra a ética do bem geral mereceria ser tomada como modelo a ser emanado e seguido em sua plenitude, sem contestação.

Partimos do princípio de que a convicção na existência ou não existência de um ser supremo, criador e regente de tudo e de todos, a quem chamaríamos de Deus, não se constitui no ponto mais relevante, até mesmo para o próprio ser supremo em quem se crê. Explicando: para aquele que incorporaria todas as qualidades associadas à bondade, o que de fato deveria ser a essência de sua preocupação só poderia ser o desejo e a determinação de garantir que as ações e os pensamentos dos humanos se desenvolvessem com o propósito de fazer prevalecer seus postulados, que não poderiam ser outros que os da prevalência da justiça, da bondade e da solidariedade entre todos, sem discriminações arbitrárias.

Em vista disto, é condição sine qua non que esse ser supremo ao qual estamos comprometidos a seguir seja fundamentalmente bom e justo. Em consequência, isto implica que seria incompatível que ele tivesse como sua preocupação central o propósito de garantir a devoção total e exclusiva a sua própria figura, e sim almejar um apego real de todos às causas por ele simbolizadas. Em outras palavras, por ser justo e bondoso, ele nunca se deixaria levar por um sentimento tão egoísta e mesquinho a ponto de considerar que nada teria validade pelo mero fato de não haver sido executado em seu nome, ou seja, toda prática do bem estaria sempre intrinsecamente associada a ele.

Também, por outro lado, seria lógico entender que ele não toleraria nenhuma maldade, por mais que seu praticante invocasse seu nome ao cometê-la.

Assim, diante da hipótese de que tenhamos de nos submeter a um juízo final após nossa morte física, não nos parece fazer nenhum sentido nutrirmos receio de que a crença ou não crença na existência de Deus venha a ter algum peso significativo em nossa eventual condenação ou absolvição.

Os motivos para esta convicção são muito fáceis de entender. É que não seria eticamente aceitável que alguém que em vida tenha se dedicado a praticar o bem não seja reconhecido como tendo de fato dado provas de ter sido fiel aos desígnios do supremo ser da bondade. A maior demonstração de concordância com este Deus da bondade só poderia ser a prática efetiva do bem.

Sendo assim, entendemos que nossa preocupação prioritária deveria sempre ser a de fazer o bem, e não em nome de quem isso esteja sendo feito. É neste contexto que Jesus adquire enorme relevância. E isso se deve a que temos em sua figura um dos exemplos mais cristalinos de que é possível manter sentimentos religiosos sinceros sem precisar violentar nosso senso da razão e da ética.

Em todas as instâncias constantes nos relatos de sua vida, Jesus sempre atuou em plena sintonia com sua crença religiosa e aquilo que sua capacidade de raciocinar coerentemente lhe orientava. Por isso, ele não hesitou em ressignificar várias das passagens do Velho Testamento quando sua razão lhe deixava patente que não seria correto que os escritos fossem seguidos acriticamente ao pé da letra em quaisquer contextos.

Dentre os vários exemplos da ressignificação feita por Jesus a pontos até então considerados como verdades absolutas pelos seguidores do judaísmo podemos citar a afirmação de que os judeus eram o povo escolhido de Deus, ao qual uma determinada terra estaria reservada com exclusividade.

Apelando para o uso de sua razão e coerência, Jesus jamais poderia concordar com a ideia de que Deus fosse tão racista e sem sentimento a ponto de atribuir valor absoluto a uma questão fortuita, como a de nascer em um ou outro grupo étnico ou nacional, para merecer privilégios não concedidos a todos. Por isso, ele logo se deu conta da imensa injustiça que estava embutida naquela interpretação do Antigo Testamento. Aceitá-la como válida seria admitir que Deus pudesse ser um discriminador racial tão perverso e insensível, assim como injusto.

Exercendo sua grandiosa capacidade de raciocinar e ponderar, Jesus concluiu que aquilo nunca poderia ter vindo mesmo de Deus. Seria tão somente mais uma das deturpações que os humanos costumam praticar e atribuir a Deus, como forma de eliminar ou suavizar as resistências de seus adversários diante de suas espertezas.

Deve ter sido devido a isto que Jesus se empenhou em elucidar a questão com toda clareza. Assim, ele nos esclareceu que a pertinência ao povo de Deus não se derivaria de nenhum privilégio em função de ser originário de um ou outro grupo humano. O fator determinante para fazer parte deste povo escolhido dependeria, primeiramente, do engajamento de cada um de nós na luta pela construção de um novo mundo, mais justo e solidário. Em outras palavras, para Jesus, o povo escolhido se formaria a partir de nossa própria escolha em seguir o caminho do bem por ele traçado, e não por termos nascido neste ou naquele grupo.

O certo é que Jesus nunca se deixou levar por aquela compreensão de que se algo está escrito nos textos ditos sagrados, ele deve ser aceito e defendido como verdade absoluta e eterna, sem nenhuma contestação.
Esta inspiração no exemplo do comportamento de Jesus é de enorme valor nos tempos atuais, em que temos inúmeros casos de atrocidades sendo praticadas com a anuência de muita gente que se diz cristã com base na argumentação de que se está respeitando o que consta nos textos bíblicos.

O caso do monstruoso genocídio em curso contra o povo palestino é um dos mais abomináveis exemplos que podemos citar de interpretações contrárias ao espírito de Jesus. É muito doloroso encontrar pessoas que usam o nome de Jesus para justificar os crimes horrendos que estão sendo cometidos pelas forças militares do sionista Estado de Israel contra o humilde e desamparado povo palestino.

Nenhum cristão de verdade pode dar seu aval a tanta crueldade e perversidade. Nestes momentos de muito sofrimento e dor, com tantas crianças sendo massacradas por um dos exércitos mais bem armados do mundo, é imperativo que o nome de Jesus sirva para ajudar aqueles que de verdade precisam de seu apoio justo e misericordioso.

Se você é um seguidor sincero de Jesus, é importante ter sempre em mente que Jesus representa acima de tudo o valor da bondade, da justiça e da solidariedade. Não permita que oportunistas caçadores de fortuna continuem recorrendo ao uso de seu nome para apoiar crimes dignos do senhor das trevas, já que eles nada têm a ver com Deus, e muito menos com Jesus.

Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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