Por Caroline Nunes e Nadine Nascimento, para Alma Preta Jornalismo.
Arte, voz, música, e rodas de formação antirracista. É esse o trabalho da Ocupação Cultural Jeholu, movimento que há quatro anos busca levar, principalmente, consciência racial para a população negra. Segundo a Iyálorixa Educadora Wanda Cristina Araújo, conselheira da ocupação, o grande diferencial da Jeholu é o caráter diverso de seu quadro de conselheiros e da operativa política, dando à ocupação um caráter inter e transdisciplinar.
“A ocupação prioriza e valoriza as ações do terreiro como um instrumento pedagógico, cultural e social. A valorização da ancestralidade na formação social, cultural, espiritual, afetiva e política das comunidades afrodiaspóricas, colocando-a como fundamento estrutural para constituição de estratégias anticoloniais”, pondera a conselheira.
O coletivo atua em três eixos: político, afetivo-pedagógico e artístico, com atividades desenvolvidas, ininterruptamente, desde sua fundação. No primeiro eixo, atua o Conselho Político, responsável pela articulação e incidência política institucional junto ao governo e ao terceiro setor e pelo caráter formativo da ocupação, além de propor as diretrizes dos processos de formação e estabelecer os termos da luta antirracista.
Por meio do conselho, reúnem-se, atualmente, uma rede de mais de 12 comunidades tradicionais de matrizes africanas, os terreiros, e suas lideranças.
No eixo afetivo-pedagógico, é também função do Conselho Político e da Coordenação Pedagógica atuar na organização e produção de rodas de conversa e ciclos formativos, na busca por estabelecer uma rede de afeto e acolhimento de pessoas atravessadas pelo racismo, além de contribuir com a formação para a luta antirracista e o despertar da consciência racial.
Já no eixo artístico, o núcleo Samba Du7ete, com rodas de samba liderada por mulheres, propõe-se a resgatar a memória e identidade de personalidades da história do samba de São Paulo, Rio de Janeiro e o repertório de origem dos terreiros.
Há também, no mesmo eixo, o núcleo Voz Negra, que se propõe a discutir o protagonismo dos corpos negros na ópera e na música de concerto, estabelecendo o diálogo entre arquétipos da ópera e das tradições de matrizes africanas. E, por fim, criado em 2020, o núcleo Corpo e Movimento, que traz a linguagem antirracista para o corpo na dança, atuando também nos espetáculos dos outros núcleos da ocupação.
“Promover o estado de presença, insistir no silêncio corporal possibilitando a escuta atenta ao vocabulário do corpo, experimentar frases de movimento, repetir partituras coreográficas no prolongamento do gesto, do canto que entoa e expande, e também no atabaque, que dá pulso e proporciona temporalidade do que diz o corpo. Esses são os critérios que na minha opinião, diferenciam a ocupação cultural Jeholu de outras iniciativas”, salienta Iyá Wanda.
Jeholu: a riqueza de Obaluaiê
Fundada pelo jornalista, ativista e Babá Egbè Felipe Brito, a Ocupação Cultural Jeholu se desenvolve tal qual a pedagogia utilizada nos terreiros. Tem como patrono Jeholu, o senhor das pérolas, epíteto de Obaluaiê, orixá a quem se recorre para inúmeras coisas, entre elas, a busca da cura de enfermidades físicas, mentais e espirituais.
“É um título que representa a riqueza de Obaluaiê. As pérolas são justamente as pessoas que estão inseridas no contexto da Ocupação Jeholu, lembrando que a pérola se dá dentro da ostra, a partir de um grão de areia que entra, incomoda, e é expelido como pérola. Então, é a tentativa de transformar as dores do racismo em acolhimento”, pontua o diretor geral Felipe Brito.
Para o maestro e diretor musical da Ocupação Jeholu, Luiz de Godoy, a partir do ponto de vista do artista, a ocupação reúne bailarinas e bailarinos, sambistas, cantoras e cantores de música lírica, o que agrega valor ao movimento e mistura influências culturais de maneira inusitada.
“Nós artistas gostamos de acreditar – e temos de acreditar – que nossa arte é tão importante quanto o ar que se respira, o pão que se come. Só que este idealismo cai por terra quando se trata de corpos pretos, estes sempre mais propensos a um mata-leão que lhes tire o ar, estes tão mais expostos à precariedade, à fome”, enfatiza.
Luiz completa que neste sentido, fazer parte de uma ocupação que, para além de todo o espaço artístico, engloba um conselho político ativo, que vai lidar com problemas que vão desde a população carcerária até a busca de um espaço para a realização de concertos, é algo motivador, que oxigena os membros em geral.
“Na Ocupação Cultural Jeholu a gente pode fazer arte com compromisso social verdadeiro, a gente discute os problemas do nosso quilombo, planejando ao mesmo tempo a forma de se conseguir mais cestas básicas para distribuir e a forma de alcançarmos mais público preto com nossas vozes líricas. E assim, nos permitimos novamente o idealismo ao que temos direito! Sem ele não há arte, nem tampouco revolução”, pontua.
Arte antirracista
Para o maestro Luiz de Godoy, a cultura sempre serviu como uma espécie de “regulador” das interações humanas, pois resiste a governos descabidos, a golpes ilegais, a interesses ilegítimos. “A cultura brasileira é negra, assim como a maioria do nosso povo. É preciso gritar isso aos quatro ventos! Pois ainda somos mais conhecidos pela bossa nova do Rio, Zona Sul, do que por toda a música que veio antes e depois dela”, pontua.
Felipe Brito salienta que a discussão política através da arte é uma das formas de inserir o antirracismo na sociedade no geral. “Jeholu nasce justamente em um contexto de um dia antes de uma das maiores manifestações em defesa das tradições de matrizes africanas em São Paulo, que foi contra o recurso extraordinário que visava proibir o abate animal-religioso”, explica.
Força e alegria são os combustíveis para tal aquilombamento, voltado a enaltecer a cultura negra e valorizar a ancestralidade afrodiaspórica no Brasil, utilizando de ferramentas artísticas e culturais para seguir em frente rumo à disseminação do antirracismo. É o que pondera a Iyalorixá Adriana Toledo, conselheira política da Jeholu. Para a líder religiosa, a reflexão levantada pela arte é um passo importante para a modificação de pensamento racista e engrandece a intelectualidade da negritude.
“É uma luta árdua que enfrentamos cotidianamente como pessoas, pretas e ativistas intelectuais de terreiro. Sim, intelectuais de terreiro, pois a Ocupação Cultural Jeholu agrega um Conselho Político que considero um espaço fundamental no enfrentamento ao racismo estrutural, racismo religioso e, consequentemente, ao aumento assombroso da violência religiosa que nós povos de terreiro vimos enfrentando nos últimos anos”, pontua a conselheira.
“É um espaço de reflexão constante quanto às formas de utilizarmos as tecnologias ancestrais dos povos de terreiro, e os os valores nelas contidas, para o enfrentamento ao racismo, na proposição de construção de uma política de bem viver para todos. Nesses espaços pensamos saúde e acolhimento, educação antiracista, empoderamento dos povos de terreiro, além de pronto posicionamento nas pautas cotidianas. A arte é o jeito preto de fazer política”, completa.
Cultura negra é acolhimento
O historiador e doutor em Humanidades Renato Santos Aguessy, conselheiro político e coordenador pedagógico da Ocupação Cultural Jeholu, avalia que a adesão ao presidente Jair Bolsonaro (PL) pela sociedade é uma das principais dificuldades encontradas pelos movimentos artísticos em geral, mas especificamente para a cultura negra, LGBTQIAP+ e de terreiros.
“A política do conservadorismo, desse alinhamento do que há de mais conservador no cristianismo e neopentecostalismo, é anti-políticas de promoção da igualdade racial e do combate à intolerância religiosa. Ou seja, por vários motivos a gente causa raiva nessa gente”, pondera.
O diretor da Jeholu, Felipe Brito, destaca que o que diz Aguessy é verdade: manter-se como um coletivo político antirracista em um momento pandêmico, que atua em terrítórios como a Cracolândia, em São Paulo, e que se propõe a levar cultura e arte a partir das bases das comunidades de matrizes africanas é desafiador.
“Até porque a gente lida com um processo de manutenção coletiva sem nenhum subsídio que venha do Estado, ou que seja outro que não as fontes dos nossos recursos. Então, é importante destacar que para além dos desafios, a cultura negra é a do acolhimento”, enfatiza.
“Quilombos de resistência, em que o primeiro passo é o acolhimento, é o treino do ouvir empático, é o auto-reconhecimento no outro, na história do outro. É a percepção de nós enquanto seres coletivos”, completa Luiz de Godoy.
“O futuro é o caldeirão de Exú fervendo de ideias”
O coordenador pedagógico da Ocupação Jeholu Renato Aguessy pontua que o futuro do movimento cultural é o próprio caldeirão de Exú “fervendo de ideias”. E isso só é possível, segundo ele, graças ao ensinamento ancestral dos terreiros, em que uma rede de apoio possibilita que as coisas possam ser feitas. Para Aguessy, a missão do coletivo visa mais prosperidade intelectual e cultural do que a preocupação com financiamentos.
“Nós nunca precisamos de dinheiro de ninguém para fazer as nossas atividades. A gente sempre fez tudo do jeito que o povo faz: um ajudando o outro. Quando falta aqui, um outro completa. E quando o outro completa aqui, a gente sabe que depois a gente tem que agir na base da reciprocidade. Assim sempre foi a cultura negra no Brasil”, ressalta.
Iyá Wanda, por sua vez, avalia que a cultura é dinâmica, cíclica e o saber dos mais velhos valoriza modos de subjetivação essenciais para vivência e convivência em solo colonial. “Diante disso, no futuro, a mobilização para a construção de estratégias de organização do povo preto é a possibilidade real de experimentar modos de vida que desconstruam as práticas racistas e estruturais”.
Luiz de Godoy, maestro da Ocupação Cultural Jeholu, diz ainda que a ideia doravante é cavar espaços para os cantores e cantoras para, desta maneira, gerar a atenção necessária aos jovens negros que sonham com uma carreira lírica, “de preferência, sem que isto tenha que ser uma ousadia”.
“Meu plano com o Núcleo Voz Negra é ver o quilombismo se multiplicar! Expandir as possibilidades de formação antirracista pra que mais pessoas tenham acesso aos conceitos que tanto nos ajudam a organizar as ideias, a dar nomes aos bois, a separar vítima de algoz”, ressalta.
“Seria lindo podermos contar com uma estrutura que contemplasse a formação artística daqueles que chegam até nós com toda a vontade, todo o material, mas sem recursos! E em meio a todos estes planos há sempre muita ideia de música que a gente quer levar pro palco. Ideias não faltam”, finaliza.