Por Alexandra Lucas Coelho.
1. Até à véspera desta crónica, eu desconhecia o que Jean Wyllys disse e escreveu sobre Israel/Palestina. Um desconhecimento algo paradoxal, pensando que Brasil e a ocupação da Palestina são dois universos centrais para mim. Mas talvez por isso mesmo eu tenda a separá-los, de tal modo absorvem, à vez. E, pelo que li agora, Jean foi a Israel e Palestina em 2016, não é algo de que ele tenha conhecimento antigo. Seja como for, só ontem me apercebi do grau de equívoco no que Jean escolheu dizer e escrever sobre o assunto. E percebi então aquela faixa numa manifestação, relacionada com ele, que dizia algo como “NEM FASCISMO NEM SIONISMO”.
Pois é, caro Jean. Nem fascismo nem sionismo, até porque o sionismo deu numa espécie de estado militar hipercapitalista com muito de fascismo, que se tenta vender como democracia, incluindo usar Telavive como bastião LGBT. E as razões que me levam a estar contra a opressão sistemática de milhões de palestinianos são da mesma família das razões que me levaram em Agosto passado, durante a campanha presidencial no Brasil, a entrevistar a transsexual Alessandra Ramos, então assessora de Jean Wyllys, para a última reportagem que publiquei; da mesma família de razões que me levaram a ficar chocada no dia em que Jean Wyllys anunciou que se ia exilar; as mesmas razões que me fizeram apelar a que nos juntássemos na Casa do Alentejo em solidariedade com ele; que pouco antes dessa sessão me fizeram comprar cravos vermelhos no Rossio, de onde vieram os cravos do 25 de Abril; que me fizeram sentar na plateia com esses cravos; me emocionaram ao ouvir Jean emocionado; e me levaram a abraçá-lo no fim.
É sempre a mesma família de razões: para sermos livres. E quando me caiu a ficha do que Jean pensa sobre Israel/Palestina, ao voltar da Casa do Alentejo, e entrar na Net, essa foi a primeira coisa que pensei. Que é preciso estar com Jean Wyllys não apesar do que ele pensa sobre Israel/Palestina, mas pelo que eu e muita gente pensamos sobre Israel/Palestina. Em última análise é possível resumir assim, por mais estranho que isso possa parecer a Jean: estou com Jean porque estou contra a ocupação da Palestina. Estou com Jean tal como estou contra a ocupação da Palestina.
É isso, Jean. E, claro, por isso também gostava que um dia esse seu equívoco se desfizesse.
2. Se tendo a viver separadamente estes dois universos, Brasil e Israel/Palestina, nunca me passou pela cabeça escolher entre eles, deixar um por outro. Temos muito espaço dentro, e o amor abre mais. Amor é bem a palavra. Por isso, de algum modo, é quase um curto-circuito para mim esta intersecção. Que venha alguém, nascido no interior da Bahia, nascido negro, muito pobre e desde cedo gay, alguém que é uma inspiração de luta, de resistência, de beleza, alguém assim, bicho, e venha dizer o que Jean disse sobre Israel/Palestina. Curto-circuito para mim que choro com ele e choro com eles, luto por ele e luto por eles, e em ambos os casos vejo a mesma resistência. A mesma beleza.
Quase como se o Brasil, a Bahia, Jean Wyllys, não merecessem que Jean Wyllys diga o que diz sobre Israel/Palestina. E vice-versa. Porque a luta pela liberdade na Palestina merece um Jean Wyllys, e vice-versa.
Então, Jean, não há como isto não doer. A nós e a você.
3. O que Jean Wyllys disse e escreveu sobre Israel/Palestina são as mesmas sem-noções de muita gente que não conhece os dois lados, ainda que os tenha pisado pontualmente — mas nunca Gaza: não conheço ninguém que tenha estado em Gaza com olhos para ver, coração para sentir, e não saia a pensar que não há nada igual no mundo, há décadas. Não, não é possível alguém estar em Gaza e repetir o cada vez mais obsceno argumento do antisemitismo. Mas também bastaria estar em Jerusalém Leste, na Cisjordânia, entender onde está, o que pisa, ver o muro. Faça-nos o favor, Jean.
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A título de exemplo, dois excertos, publicados por Jean Wyllys há um ano:
“A obsessão de uma parte da esquerda em atacar Israel, a única democracia da região, é suspeita de estar contaminada por preconceitos antissemitas (assim como uma parcela da direita está contaminada de preconceitos islamofóbicos) que, como ativista de direitos humanos, eu acho inaceitáveis. Isso não significa, claro, que muitas políticas do governo israelense de Netanyahu não mereçam ser repudiadas, assim como as de outros governos, mas isso deve ser feito de forma qualificada, com informação e seriedade, não com discursos de ódio, e sem confundir governo, Estado e povo, como muitas vezes se faz.”
Sublinho “única democracia da região” e “muitas políticas do governo de Netanyahu, assim com as de outros governos”. Sério que é este o grau da crítica de Jean Wyllys a um estado que há mais de 50 anos viola todas as resoluções internacionais e mantém literalmente milhões de pessoas aprisionadas há décadas? Um estado violador em série dos Direitos Humanos, essa pauta fundamental para o activista Jean Wyllys? Conhece mais alguma democracia assim, Jean?
Segundo excerto: “Reitero que nossa posição é pela existência e autonomia de dois Estados, na linha dos acordos de Genebra (construídos por ativistas pela paz israelenses e palestinos), e que lutamos pelo fim das violências contra mulheres, LGBTs e minorias religiosas nas ditaduras do Oriente Médio inimigas de Israel, que pouco estão preocupadas com o empobrecimento da Palestina e do seu povo (ao contrário!), e nem por isso são alvo de críticas por parte de membros do PSOL ou dessa esquerda caricata.”
Só um grande desconhecimento do assunto pode levar alguém como Jean Wyllys a falar a sério, em 2018, nos Acordos de Genebra (!) e em solução Dois Estados, quando Israel já invadiu toda a Cisjordânia e Jerusalém Leste com centenas de milhares de colonos, casas, estradas, plantações, estruturas, além do muro, inviabilizando a solução Dois Estados. E quanto às ditaduras do Médio Oriente “inimigas”, não sei que esquerda Jean lê e ouve, mas tem lido e ouvido pouco se não ouviu críticas a elas. Ou à violação dos direitos das mulheres e LGBT.
4. A propósito de direitos LGBT. Já me emocionei numa parada gay em Jerusalém, achei libertador numa cidade tão reprimida em várias frentes, onde no ano anterior um judeu ultraortodoxo esfaqueara participantes. Hoje acho que qualquer parada gay em Israel é flor na lapela de Netanyahu, marketing para a “única democracia do Médio Oriente”, lucrativo nicho turístico, financiador da ocupação (tal como o nicho de turismo cristão). E os colectivos LGBT mais conscientes saberão uma coisa: quem é perseguido, quem conhece a discriminação, não se pode aliar com quem persegue e discrimina outros grupos. Sim, da fundação até hoje Telavive passou de utopia Bauhaus para uma utopia LGBT cega, porque é a utopia dos que não podem abrir os olhos para ver em volta, dos que só podem ficar na praia, na noite, na bolha. Dos que ligam o “foda-se” (versão portuguesa: que se foda). Não é utopia mais.
É também por isso que tantos colectivos LGBT apelam ao boicote do Festival da Eurovisão de 2019. E também por isso que uma audácia queer como a de Conan Osiris só serviria o opressor, caso Conan ganhe, e caso vá a Telavive. Ser resistente LGBT hoje é estar contra a ocupação da Palestina.
5. Tenho muitas notas do que Jean disse na Casa do Alentejo, estive a escrever até já não haver caderno. Boa parte da intervenção já terá saído na imprensa, coincidido com as várias entrevistas que saíram. Mas ainda assim quero terminar esta crónica com o que foi tão forte que me ficou na cabeça, sem olhar mesmo as notas. Não tinha pensado que a crónica seria assim, pensara escrever sobretudo o que Jean disse lá, perante aquela plateia lotada, com tanta gente lá fora que por receios de segurança não pôde entrar a partir do momento em que os lugares sentados esgotaram, que fez fila até aos Restauradores mesmo assim, e ficou a cantar e gritar, que nós ouvíamos lá dentro, a cantar e gritar perante a meia dúzia de fascistóides liderados pelo chefe do PNR. Mais o patético enrolado na bandeira portuguesa, português por fora, brasileiro camiseta Bolsonaro por dentro, que estava atrás de mim, e no fim se levantou, gritou “Bolsonaro!” tentou gritar “Lula ladrão!”, levou pontapés de um indignado, e saiu levado pela segurança, enquanto a plateia gritava “Não Passarão!”
6. Jean começou por contar de onde veio. Veio daquela Bahia interior tão pobre que muitas vezes faltava comida na mesa. Daquele país tão incrustadamente racista, herdeiro da escravatura, que Jean, filho da mistura negra e branca, viu isso desde sempre. Um país onde era possível um menino de seis anos ir à venda, pedir “seis pães”, conjugando correctamente o plural, e por isso ouvir de um homem lá: “Você é educado ou é viado?” Viado é como se zombava de um gay, antes de os gays terem apropriado a palavra a seu bel prazer. Jean tinha seis anos, não sabia o que era viado, mas percebeu que era uma coisa que ele não devia ser. Lição de vida aos seis anos. Depois uma vida para lutar contra isso. Ele pode falar de mérito, porque tudo o que conseguiu foi por mérito, mas também por isso sabe como as quotas são essenciais, e não bastam. Não bastam para atenuar o abismo à partida. E se em Outubro tivemos a tragédia da eleição desse homem que Jean demorou para dizer o nome — quase até ao fim não disse —, também tivemos a luz de várias jovens negras pela primeira vez eleitas, herdeiras de Marielle Franco. E isso aconteceu por causa das quotas, também, que pela primeira vez levaram uma geração às universidades. Esse país novo também é verdade. Também existe, e quer uma esquerda nova, uma esquerda que saiba estar nas periferias, que não seja arrogante, que não despreze o gosto popular. Que não deixe o povo para os neo-pentecostais.
Jean falou de tudo isso, e de como pode levar décadas mas o Brasil vai se livrar dessa era Bolsonaro. E no fim se emocionou ao falar dos amigos que a AIDS levou, e quando alguém perguntou se Lisboa seria uma boa cidade para acolher LGBT Jean disse que não sabia mas que esperava que Lisboa viesse a ser, sim, uma cidade que os acolhesse. E voltou a emocionar-se. Nós também.
É isso Jean. Ninguém oprimido por ser quem é.
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