Como a vanguarda da modernidade econômica, social e tecnológica do planeta, o Japão não podia deixar de ser uma potência culturalmente imperialista. A utopia neoliberal, o manequim de vitrine do devir capitalista no século XXI, se torna a principal influência não apenas cultural, mas econômica, social e tecnológica entre juventudes, gerando o otakismo.
Não podia ser diferente que em um país que sofre de um grande abismo comunicativo entre os adultos e a tais juventudes, seria produzida uma quantidade estrondosa de arte sobre, para e por juventude e seus anseios. Mesmo estando em um contexto cultural extremamente específico como o arquipélago asiático, produtos como audiovisual, música e videogames são massivamente exportados pro mundo todo, na maioria das vezes com acessos por meios marginalizados como a internet graças à ignorância de distribuidores e produtores ocidentais quanto ao espírito do consumismo.
Se um dia já se sonhou ser francês ou britânico por Hardy e Beatles, hoje se sonha usar um seifuku. O japonês domina as artes da faixa etária mais baixa, de seus escapismos (moe slice of life) até seus medos (denpa).
Desde a grande explosão da animação japonesa nos anos 80, e, principalmente, das grandes crises sociais japonesas dos anos 90, a cultura jovem do país tem produzido inúmeros fenômenos culturais que denotam com habilidade o estado de espírito do jovem universal, sendo um desses fenômenos a explosão ressonante que foi o filme Battle Royale (Kinji Fukasaku – 2000), lançado apenas um ano após a publicação do livro bem-sucedido do jornalista Koushun Takami que inspirou a produção.
É difícil rastrear todo o impacto cultural da polêmica franquia (que ainda se estende pra duas séries em quadrinhos e um segundo filme), mas conseguiu, além de ser um sucesso comercial e inspirar uma gama de produtos subsequentes (incluindo todo um gênero de jogos eletrônicos com o mesmo nome e o acusado de plágio Jogos Vorazes, além de outros filmes ocidentais), permanecer relevante e retornável entre o público otaku 20 anos após sua estreia. Compreensível, visto a maneira prática com que traduz as angústias, ânsias e fixações não saudáveis de seu público-alvo.
Trata-se de uma história do dito formato sabaibukei, enredos em que a morte é uma possibilidade iminente em algum tipo de jogo, maldição ou negociação similar do protagonista com um universo exterior, um reflexo claro tanto da ansiedade sobrevivencialista que atinge o adolescente moderno frente às realidades capitalistas quanto de uma proximidade mórbida com o perigo, o pensamento e a probabilidade da morte ou do fracasso, causada pelo constante choque com a brutalidade do mundo. Basta ver, por exemplo, o impacto íntimo dos assassinatos e ataques terroristas noventistas na arte japonesa, sobretudo no anime, que geraram, por exemplo, o formato denpa, histórias em que o motor principal da ação e progressão são a paranoia, a desconexão e a alienação social.
Em Battle Royale, uma sala de aula é escolhida pra batalhar até a morte em uma ilha. Apenas um aluno pode sair vivo e vitorioso do torneio, comandado por um professor sádico. O festim violento que se segue não é apenas físico, gráfico, mas principalmente emocional. A parábola ao individualismo neoliberal põe à flor da pele todas as emoções, pulsões e instintos de sobrevivência de diferentes e diversos alunos procurando sobreviver, escapar, formar alianças, matar, morrer. Uma série de esquetes sangrentas extremamente bem coreografadas expondo toda a humanidade envolvida mostrando destinos e passados, amizades e inimizades. A tragédia da vida forçadamente egoísta, da carnificina do mercado de trabalho, que se esconde risonhamente no fim da inocência pós-juventude escolar é mostrada sem medo aqui, produzindo extremos transgressores pelos quais seu público anseia como retrato da própria condição, sendo a busca por este uma característica muito protuberante na arte adolescente moderna. O retrato da condição se torna mais importante que o retrato do ideal ou das saídas possíveis, porque não existe ideal nem saída no fim da história. Até o escapismo, como se vê no slice of life japonês, não é de uma realidade alternativa, mas de uma deformidade irreal, “fofinha”, da realidade presente, mais uma espécie de retorno ao útero do que assassinato do pai.
O filme não gasta com floreios estilísticos. Tudo é duro e seco. Atuações, fotografia, montagem, roteiro. Os personagens têm toda sua humanidade construída nas cenas de tensão extrema de poucos minutos que antecedem suas mortes, sem muito mais que 7 minutos introduzindo o esparso universo em que se passa o enredo. Tudo a que ele se propõe é entregar metáforas congeladas prontas pra servir (pôr no micro-ondas por 2 minutos, serve de 3 a 4 pessoas), instantaneamente legíveis, nada sutis e sem espaço pra muita inventividade, o que eu julgo como fator importantíssimo pro sucesso da obra. Milagrosamente não deixa de ser inteligente, e trabalha com os objetos que tem na mão com grande maestria teatral, construtiva quando pode, didática quando precisa. A meritocracia disforme nas armas sorteadas, a forma com que a carnificina é anunciada por um vídeo instrutor infantil e fofinho subestimando a inteligência do público, o professor se apoderando dos biscoitos da aluna. Metáforas usadas pra explorar uma gama de temas muito necessários à juventude: relações intergeracionais, suicídio, individualismo, tudo dentro da moldura de uma crítica anticapitalista bem clara.
Battle Royale vê a escola como fábrica de peças substituíveis que servem apenas ao mantimento de uma máquina construída pelos mais velhos, da qual a única saída fica no abandono do individualismo, ao mesmo tempo que não é ingênuo de acreditar no pacifismo infantiloide, pelo contrário. É subproduto de uma ânsia por extremos, no árido cenário pós-Fukuyama herdado por aquela sala de aula e muitas mais.
“No fim, eu fico feliz de ter encontrado um amigo”
Existe algo em Battle que pra mim o distancia do mar de niilismo existencialista e falta de esperança que assola a arte massificada japonesa, e jovem no geral. Battle Royale não é uma insinuação à letargia, desistência ou submissão. É uma insinuação persistente à rebelião inconformista, que vê a vida como valorizável e humana, digna de ser salva em vez de apenas dejetos descartáveis do “inferno que são os outros”. É no fim, uma das poucas obras humanistas que Nihon produziu nos últimos 20 ou 30 anos. Uma boa influência pros alunos desesperançosos.
Pode não ser a maior imagem já pintada do sofrimento impotente juvenil, mas com certeza é uma das que mais entendem os mecanismos internos das mentes que consomem tais imagens, o que elas buscam na arte e na imagem. Segue sendo um famoso “filme de ensino médio”, rito de passagem no consumo cultural otaku internético. E, sem dúvida, uma das obras mais grandiosas nesse gênero.
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Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.
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