Janine Ribeiro analisa a resistência científica no Brasil

Cortes brutais solapam a pesquisa no país. Os impactos do Teto de Gastos. As chances desperdiçadas de diplomacia sanitária. Por que educação científica é crucial. Como a comunidade acadêmica impediu que a tragédia fosse pior

Foto: Reprodução/Outras Palavras

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Nesta entrevista, o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Renato Janine Ribeiro, alerta, no Dia Nacional da Ciência – que marca a data da fundação da entidade, em 1948 – para o cenário precário da ciência no Brasil, em meio ao anúncio pelo governo federal de um bloqueio de R$ 2,5 bilhões no orçamento desse ano do Ministério da Ciência e Tecnologia. “Nós estamos em uma situação bastante crítica”, diz Ribeiro.

O Dia Nacional da Ciência esse ano acontece em meio a um contingenciamento anunciado pelo governo federal no orçamento de 2022 da ordem de R$ 2,5 bilhões na área de ciência e tecnologia. Em seguida vem a área de educação, com um bloqueio de R$ 1,6 bilhão e a saúde, com R$ 1,253 bi que não serão repassados. Como a SBPC vêm enfrentando esse cenário?

Essa data foi escolhida justamente porque foi a fundação da SBPC, em 1948. Nesses últimos 74 anos, a SBPC mudou muito, evoluiu, incorporou gente que não fazia parte dela, ajudou muitas sociedades científicas a nascerem. Hoje temos 170 sociedades científicas afiliadas à SBPC. O dia 8 é um grande dia de mobilização, um dia para fazermos atos públicos. Vamos reunir as principais entidades científicas do Brasil para discutir a situação da ciência, seus problemas. Em várias cidades vai haver a Marcha pela Ciência. Então nós pretendemos fazer deste um dia de luta mesmo em prol da ciência, como mobilização para nossa reunião anual, que acontece na Universidade de Brasília, com o tema: independência, ciência e soberania nacional. Estamos pontuando isso o ano todo, que você só pode ter independência de verdade se você tiver educação, ciência, cultura, saúde e preservação do meio ambiente.

Nós estamos diante de uma situação muito grave, de cortes de verbas. Não só para a ciência. O mesmo se dá na educação, na cultura, na saúde, no meio ambiente, nas políticas sociais. Em todas elas nós estamos diante de uma situação muito grave, de cortes de verbas e alocação delas sem critérios.

O bloqueio anunciado pelo governo na ciência e tecnologia afeta principalmente o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Em nota, a SBPC questionou a medida citando a Lei Complementar 177, de 2021, que supostamente protege as verbas do FNDCT de contingenciamento. Como isso se deu?

A lei complementar 177 foi votada no começo do ano passado, vetada pelo presidente e promulgada depois que o Congresso derrubou o veto. Ela determina que não pode ser cortada a verba do FNDCT, mas infelizmente esse assunto está numa lei complementar, que teoricamente é uma lei de hierarquia mais elevada, mas cujo próprio texto diz que partes da lei podem ser alteradas por lei ordinária, que requer um quórum menor. Então ficou uma fragilidade. E no ano passado, no dia 7 de outubro, o governo mandou ao Congresso um projeto de lei que tirava R$ 690 milhões do Fundo que deveriam ir para o CNPq, e pulverizava para outras destinações. Com muita luta a gente conseguiu recuperar R$ 150 milhões, de modo a poder pagar o edital Universal que o CNPq tinha lançado, e o pessoal do CNPq teve que correr contra o relógio para conseguir liberar o dinheiro a tempo para os que tinham sido contemplados com o edital. E agora nós temos isso de novo. Mais uma vez o governo suspende as normas da lei complementar 177. Nós estamos em uma situação bastante crítica.

Estamos completando cinco anos da entrada em vigor da emenda do teto de gastos (EC 95), que vem tirando recursos de inúmeras políticas, inclusive educação e ciência e tecnologia. Quais têm sido os efeitos dessa cronificação do subfinanciamento para a ciência?

É difícil você separar a área de ciência e tecnologia e a pós-graduação, apesar dela ser atribuição do MEC, como é o caso da Capes, e a ciência e tecnologia a gente associar mais ao MCTI, ao CNPq e outras agências de fomento. Mas é difícil separar porque a maior parte da pesquisa feita no Brasil é feita na pós-graduação, e portanto é orientada pela Capes. Quando nós temos uma queda no número de bolsas e uma redução brutal do valor real das bolsas de 2013 para cá, nós temos um desestímulo muito grande à opção por pesquisar. Então a renovação está ficando difícil, você tem pessoas que já tem doutorado, que estão participando de congressos importantes, publicando em revistas destacadas e que não conseguem uma vaga numa universidade. Consegue quando muito uma bolsa de pós-doutorado, que não conta para aposentadoria. São pessoas com mais de 30 anos, formadas, produzindo cientificamente, e que não estão contando o tempo de serviço. Com 15 anos um aluno de escola militar já está contando o tempo de serviço, tanto que você tem generais reformados, com menos de 50 anos de idade. Enquanto isso temos um país que desestimula a pesquisa científica, porque você vai ganhar um bolsa de doutorado, sem direitos trabalhistas. Então esse é um problema que está ferindo gravemente a pesquisa no Brasil.

Com todas as ressalvas que precisam ser feitas ao falarmos de uma pandemia que já vitimou quase 700 mil pessoas no Brasil, mas tendo em vista o papel central que as instituições públicas de pesquisa científica desempenharam no enfrentamento à pandemia, o senhor vislumbra um legado para a ciência a ser preservado daqui para a frente?

Esse papel da ciência foi absolutamente notável, porque permitiu salvar vidas. O Brasil teve uma taxa de mortalidade cinco vezes superior à média mundial. Nós teríamos muito menos mortos se tivéssemos tido uma política melhor de enfrentamento. Mas a ciência ajudou a reduzir esse impacto. Uma pena que o Brasil não tenha investido em uma vacina própria para valer. Houve esforços, mas praticamente sem apoio do governo federal. O caso da UFMG [Universidade da Federal de Minas Gerais], que inaugurou uma pesquisa nisso, mas o apoio foi muito aquém do necessário. Então com isso nós gastamos mais dinheiro porque tivemos que comprar. Fora isso nós perdemos a chance que também teria sido importante de fazermos uma espécie de diplomacia sanitária. Se o Brasil tivesse vacina própria poderia ter fornecido a países mais pobres do que nós, e dessa maneira teria fortalecido seu poder político internacional. Mas não houve interesse nisso.

O que eu acho importante e positivo é que a comunidade acadêmica e científica manteve a luta. Um grande número de cientistas, de pesquisadores, professores mantêm de pé a mobilização. E acho que o papel das sociedades científicas e da SBPC, como seu braço político, é justamente manter acesa essa luta da qual depende o futuro do Brasil. Conseguimos também criar alianças, o apoio de uma fração razoável da opinião pública, sermos escutados pela mídia. Tudo isso eu acho que tem um papel importante. Mas evidentemente nós estamos numa situação de míngua. O Brasil está à míngua. Nós temos uma quantidade grande de focos de pesquisa que estão minguados, com risco grande ou de estagnarem, ou até alguns deles de morrerem. No conjunto, eu acredito que nós estamos conseguindo manter a comunidade com uma disposição à luta. Isso é o que neste momento eu acho mais importante.

Um dos grandes desafios em nível global para a ciência tem sido o chamado o negacionismo. Na pandemia isso se expressou pelos movimentos antivacina, por exemplo. Como a SBPC vê esse problema? Quais as estratégias para combatê-lo e o papel do Estado?

Nós temos que fortalecer não apenas a divulgação científica, mas a educação científica também. Temos que fortalecer o espírito científico, que não é apenas o espírito de quem está num laboratório e quem está fazendo uma tese, é o espírito de quem acredita em evidências e em argumentos. Temos que fazer com que acabe esse espaço enorme das fake news. Temos que ser capazes de convencer as pessoas a não acreditarem em mentiras, esse é um ponto crucial.

 

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