Janelas Abertas

Por Fernando Evangelista.

Os dois estavam lado a lado no avião. Nunca tinham se visto. Foi ele quem puxou a conversa:

? Tenho medo da decolagem.
? Eu tenho medo da aterrissagem, ela disse.

Durante os 50 minutos do trajeto, entre São Paulo e Florianópolis, ela contou que era bióloga, mas queria ser escritora e ele disse que era engenheiro e gostaria de continuar sendo engenheiro, construindo casas e prédios.

Foi paixão à primeira vista. Em oito meses estavam casados, no civil e no religioso. A lua de mel foi no Chile, terra que ela sonhava conhecer desde que descobriu a poesia. Ele aceitou o destino, mas preferia um país europeu.

No primeiro dia em Santiago, caminharam da Avenida República até a Praça das Armas e de lá até a praça onde está o Palácio La Moneda, sede do governo. Era uma manhã ensolarada de abril, com a cordilheira quase totalmente encoberta pelas nuvens.

? É uma emoção – ela disse – estar na terra de Pablo Neruda e Violeta Parra.
? Legal – ele resmungou – mas onde fica o restaurante?
? Terra de Victor Jara, Salvador Allende…
? Tô morrendo de fome.

Vinte anos depois, ela ainda se lembraria daquela cena. Seria a primeira, das infinitas incomunicabilidades entre eles. No começo, ela pensou, a diferença não incomoda porque tudo é novo e, por isso, fascinante. Com o tempo, entretanto, as diferenças viram irritação, depois mágoa, finalmente apatia.

Quando se sentia sufocada, ela abria as janelas de sua casa e, lá de cima do sexto andar, pensava em Rubem Braga, velho amigo, que adorava abrir uma janela à procura de assunto. Ela não procurava assunto – há tempos largara a pretensão da literatura – era apenas como se quisesse ter certeza de que o mundo ainda estava ali, de que as pessoas continuavam vivendo e caminhando.

Nunca deu bom dia para o sol, nem boa noite para a lua, essas bobagens ela nunca fez, mas gostava de repetir mentalmente uma frase que ouvira de seu avô, um otimista incorrigível, muitos anos antes: “o ser humano nasceu para ser feliz”. Ela pensava isso do fundo do coração porque ela ainda acreditava nisso.

Acreditava mesmo, apesar da vida que queria ter e não teve, dos projetos inacabados e dos sonhos interrompidos, das respostas que gostaria de ter dado e não deu, das perguntas que gostaria de ter feito e não fez. Porém, era inteligente o suficiente para perceber que a sorte, vez ou outra, também lhe fazia companhia.

Um pouco antes de dormir, depois de um pesado dia de trabalho doméstico, tendo feito várias coisas para cada um dos três filhos, lembrou aquela manhã da lua de mel, da cordilheira completamente encoberta pelas nuvens e percebeu que aquilo, de alguma forma, era a metáfora do amor que eles sentiam um pelo outro.

Sim, porque se a rotina desgastara o casamento em algumas coisas, nunca foi suficiente para matar o amor. E o amor, ela refletiu, é como a cordilheira, está sempre ali, mas às vezes não se vê. Pensando nisso, consciente do romantismo bobo, sorriu um sorriso terno e apagou as luzes e os dois dormiram abraçados, como nas primeiras noites.

Na manhã seguinte, lá de cima do sexto andar, ela observa a cidade cumprir a rotina: o casal passa de mãos dadas, o estudante corre apressado com a mochila nas costas, o senhor de cabelos brancos lê um jornal no ponto de ônibus e um fotógrafo, talvez diletante, faz fotos das pedrinhas da calçada que formam estranhos desenhos no chão.

Se a vida é mesmo feita de pequenos encantamentos, as cenas daquelas manhãs são o seu encantamento maior. Vê um pipoqueiro com o seu carrinho indo em direção à porta do colégio, três meninas cochicham inconfidências e dois homens, bem atrás, caminham lado a lado.

Deteve-se nesses dois homens. Um parece policial militar: continência, ordem, farda, hierarquia, bravura, obediência. O outro é um engravatado, com um terno caro, uma espécie de uniforme civil com brasões genealógicos.

Sem mais nem menos, o engravatado, o elegante, chutou um cachorrinho que dormia no meio-fio. Chutou por chutar e aquela agressão foi como se ela tivesse sido despertada de um sonho ruim e acordasse numa realidade ainda pior. A única frase que lhe veio à cabeça foi: “O ser humano, este animal, é um infeliz”.

Sentiu tanta raiva, tanta dor, que correu para o banheiro para lavar o rosto. Precisava da água fria para colocar as ideias no lugar. Não gostou do que viu no espelho. Quem era aquela mulher que tentava ser simpática, tentava ser feliz, tentava seguir em frente? No espelho, talvez pela primeira vez, a vida estava toda lá, em cada ruga do seu rosto.

Chegara ao limite. Ligou o computador e escreveu o dia inteiro, sem parar. Fez a mesma coisa no dia seguinte e no outro. Voltara a escrever depois de 20 anos. Desde então, ela continua abrindo janelas e se encantando com o mundo, mas entendeu que ver o mundo de cima, embora inspirador, era também cômodo e um pouco covarde. Não iria mais se esconder.

Ela compreendeu que para escrever é necessário ver a vida que passa sob a janela, porém é necessário tocá-la, e não importa se ela assusta e queima. É necessário lidar com os imprevistos e com as frustrações, com a angústia e com a dor, e seguir caminhando sem entender a lógica, porque não há lógica nenhuma.

Para escrever é preciso algum ceticismo, mas sem cinismo e, acima de tudo, é preciso sentir uma necessidade profunda de gritar, como alguém que está se afogando e quer ser salvo.

A literatura tornou-se a sua janela e ela decidiu que vai deixá-la aberta, sem medo do vento ou da vista, porque tudo lhe interessa e lhe fascina, inclusive um sujeito elegante chutando um cachorro ou um simples e fora de moda gesto de amor.

Imagem do Palácio de la Moneda de: euqueroeviajar.blogspot.com

 

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