Em julho de 2019, numa sessão da Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania, que interpelava o então Ministro da Justiça de Bolsonaro, o ex-juiz Sérgio Moro, o deputado do PSOL Glauber Braga fez uma analogia com o futebol para caracterizar Sérgio Moro como um juiz-ladrão.
Desde esse momento, o termo juiz-ladrão vem sendo constantemente empregado para fazer referência ao papel desempenhado por Sérgio Moro enquanto este estava à frente do juizado que encabeçava as atividades da ultramidiática Operação Lava-Jato.
Embora o emprego dessa expressão tenha se tornado recorrente, neste artigo, gostaria de expor as razões pelas quais considero deveras inapropriado que a mesma continue sendo atribuída ao ex-juiz Sérgio Moro.
Primeiramente, vamos tentar deixar bem elucidado o que entendemos por juiz-ladrão no meio futebolístico.
Para todo e qualquer torcedor, um juiz-ladrão é aquele que se posiciona favorável a uma das equipes envolvidas na disputa, em lugar de fazer uma arbitragem imparcial e aplicar as regras esportivas com equanimidade ao longo do jogo, sem tomar partido por um ou outro dos times envolvidos na contenda. Em outras palavras, o juiz-ladrão no futebol é aquele que adere descaradamente aos interesses de uma das equipes e busca favorecê-la em detrimento de seus adversários.
Visto exclusivamente por este prisma, é certo que Sérgio Moro poderia muito bem ser enquadrado nesta categoria futebolística do juiz-ladrão. Aquilo que já parecia evidente para muitos tão somente em função da maneira como o ex-juiz conduzia os processos da Lava-Jato, passou a ganhar ares de certeza a partir do momento em que as revelações do hacker Walter Delgatti chegaram ao conhecimento público.
Seguramente, depois de que começaram a ser divulgados os arquivos da chamada Vaza-Jato, não havia mais motivos para hesitar em classificar Sérgio Moro como um juiz abertamente engajado com um dos campos da disputa. Na verdade, entre os acusadores do Ministério Público e os representantes da defesa dos acusados, aquele que deveria agir como árbitro neutro e zelar pela aplicação correta das leis, passou a atuar como o mais decidido membro da equipe acusadora.
Portanto, se nos limitássemos a esta parte da analogia, seríamos levados a concordar integralmente com o deputado Glauber Braga em sua equiparação do ex-juiz Sérgio Moro à figura do juiz-ladrão no mundo futebolístico. Sim, Moro não demonstrou sentir nenhum constrangimento por agir como alguém plenamente comprometido com uma das partes, em detrimento da outra. Considerando-se apenas este aspecto, Sérgio Moro poderia, sem dúvidas, ser identificado como o típico juiz-ladrão do futebol.
No entanto, as implicações decorrentes das atividades de um juiz-ladrão no futebol e as do juiz-suspeito Sérgio Moro no mundo político real são muito diferentes. Colocá-las todas em um mesmo pacote seria contribuir para manter no escuro as consequências oriundas do comportamento parcializado levado adiante por Sérgio Moro em todo o desenrolar da chamada Operação Lava-Jato.
No futebol, por mais que a tendenciosidade de um juiz-ladrão acarrete várias situações desagradáveis e acabe gerando enormes frustrações entre os torcedores da equipe prejudicada, suas consequências não costumam ultrapassar os limites do mundo esportivo. Certamente, caso haja esquemas de apostas envolvidos nos jogos em que a manipulação da arbitragem esteve presente, os apostadores também poderiam ser considerados como vítimas por um viés econômico. Mas, via de regra, esses efeitos negativos não se estendem com gravidade ao restante da sociedade.
Vejamos agora, resumidamente, o que a prática enviesada do ex-juiz Sérgio Moro significou para o conjunto da sociedade brasileira.
Ao atuar em consonância com os interesses dos mentores das equipes de acusação da quadrilha que agia sob o codinome de “Operação Lava-Jato”, Sérgio Moro colocou-se decididamente do lado dos grandes grupos do capital financeiro que desejavam retomar o controle político da nação. Como esse capital financeiro operava em perfeita sintonia com as agências de espionagem mantidas pelo imperialismo estadunidense, podemos concluir, sem vacilar, que Sérgio Moro se comportou como um fiel servidor dos interesses daqueles que lucrariam com a inviabilização do Brasil como nação soberana.
E o que trouxe para o povo brasileiro este comportamento de Sérgio Moro no comando do aparato lajatista?
Diferentemente do que caracteriza a atuação de um juiz-ladrão no futebol, os impactos das decisões tomadas por Sérgio Moro se fizeram sentir profundamente em todos os espectros da sociedade. Para uma pequena minoria, os grupos vinculados ao capital financeiro, os latifundiários do agronegócio e aqueles setores e elementos associados aos interesses do grande capital imperialista, os resultados foram mais do que satisfatórios. Esses grupos nunca ganharam tanto dinheiro em tão pouco tempo como vieram a fazer em virtude dos encaminhamentos franqueados por Sérgio Moro.
Porém, no tocante à imensa maioria dos habitantes do Brasil, o que se viu foi uma catástrofe sem paralelo ao longo de toda nossa história. Um dos frutos mais visíveis do desempenho de Sérgio Moro à frente da Operação Lava-Jato foi o ressurgimento brutal, e numa escala nunca antes vista por aqui, da fome e da miséria absoluta. Se as ruas das cidades brasileiras, até mesmo cidades de pequeno e médio porte, estão repletas de gente de todas as idades vivendo ao deus-dará, isto se deve, em altíssimo grau, ao trabalho de Sérgio devotado a erradicar as bases de uma industrialização nacional de caráter autônomo.
Sérgio Moro surfou na crista do movimento que trouxe o Brasil de volta ao grande mapa das nações onde a fome se fazia presente. Todos os esforços que haviam permitido que nosso país fosse incluído entre o grupo das nações que haviam acabado com a fome foram revertidos a partir das medidas que aniquilaram boa parte de nossa infraestrutura econômica e com a eliminação de muitos direitos trabalhistas e sociais que nos haviam custado mais de século para alcançar. E quem despontava à cabeça das ações que promoviam toda essa destruição? Invariavelmente, lá estava nosso Sérgio Moro.
Mas, seria muito injusto de nossa parte se despejássemos tão somente sobre Sérgio Moro a responsabilidade total pelas desgraças que passamos a padecer, ou pelas que se viram acentuadas, em razão de decisões por ele tomadas. Ninguém, menos ainda um sujeito de baixíssimo nível intelectual e pouquíssima cultura como Sérgio Moro, teria condições de arquitetar e pôr em prática sozinho um plano de destruição tão arrasador como o que foi implementado com base nas ações da Lava-Jato.
Se no passado, a direita (e até mesmo a extrema direita) pôde contar com gente dotada de brilho intelectual e de forte poder de oratória (basta recordar nomes como o de Carlos Lacerda, Golbery do Couto e Silva, Jânio Quadros e, até mesmo Paulo Maluf), com Sérgio Moro, as forças do grande capital teriam que levar em conta que o homem que os iria defender ao nível mais elevado era provavelmente um sujeito dos mais incultos e desarticulados entre os que já transitaram por nossos cenários políticos em todas as épocas.
Sérgio Moro jamais teria conseguido dar um passo sequer mais adiante daquilo que sua mediocridade permitiria sem contar com o poderosíssimo grupo de apoio que se gestou em torno de sua atuação. Por trás de Sérgio Moro perfilaram os principais grupos econômicos do país e do exterior. Para ancorar a imagem dessa pessoa visivelmente pouco dotada de capacidade intelectual e com baixíssimo nível de oratória, foi preciso montar a seu redor todo um esquema de proteção e isolamento que, ao mesmo tempo que visibilizava e magnificava suas qualidades fictícias, escondia do grande público sua notória faceta de mediocridade. Para manter elevada a estatura de Sérgio Moro, seria importante deixá-lo de boca fechada o máximo possível e, se tivesse de falar, que só o fizesse sob a orientação e a edição de seus mentores da mídia corporativa.
Como forma de blindá-lo de críticas e análises mais perspicazes, jornalistas de grandes veículos de comunicação chegaram inclusive a publicar livros em que pintavam a figura de Sérgio Moro como a de um grande herói, o protótipo de um paladino da luta contra a corrupção. Montou-se um instrumento de intimidação e sacralização que visava tornar o beneficiário num modelo de correção a ser seguido pela opinião pública.
Entretanto, o trabalho de alavancagem e blindagem da imagem de Sérgio Moro foi tão intenso que acabou por convencer àquele que menos deveria convencer-se disto, em outras palavras, o próprio Sérgio Moro. De tanto ouvir e ver loas a respeito de sua grandeza e infalibilidade, o ex-juiz passou a acreditar nas mesmas e, em consequência, tomou certas decisões que viriam a ser fatais para seu futuro.
Em lugar de manter-se de boca fechada e limitar-se a tomar as medidas esperadas e desejadas por seus patrocinares capitalistas, deixando a divulgação por conta deles, Sérgio Moro acreditou que tinha chegado a hora de ele assumir as rédeas da nação. Foi assim que, enquanto agia para eliminar da corrida eleitoral o candidato que todas as pesquisas apontavam como o virtual vitorioso da disputa (Lula), Moro negociou com seu concorrente (Bolsonaro) sua nomeação para o cargo de Ministro da Justiça, com um posterior redirecionamento ao cargo vitalício de ministro do STF.
Sem contar com nenhuma das qualidades exigidas para o exercício aberto da política, foi um erro trágico, percebido até por vários de seus seguidores, abandonar a magistratura para se transformar no Ministro da Justiça daquele candidato que ele tinha acabado de ajudar a eleger. Em sua nova posição como ministro de Bolsonaro, a mediocridade e a ignorância de Sérgio Moro já não tinham como continuar sendo blindadas. Foi por então que surgiu o mote de juiz-ladrão.
No entanto, como já pudemos esclarecer, fazer uma analogia com o futebol e equipar Moro a um juiz-ladrão é uma grande injustiça para as milhões de vítimas que sofreram e sofrem até hoje as consequências da miséria que se alastrou por todo o país em razão das atitudes tendenciosas deliberadamente tomadas por Sérgio Moro durante o período em que comandava as ações da Lava-Jato sob os holofotes de toda a mídia corporativa do país. Esta é uma daquelas metáforas que, em lugar de ressaltar e dar maior dimensão ao objeto, acaba por suavizar e reduzir a seriedade dos crimes cometidos.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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