Por Shajar Goldwaser.
A ida do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC/RJ) ao Clube a Hebraica do Rio de Janeiro gerou muita polêmica entre nós, judeus brasileiros. A perplexidade decorreu tanto pelas frases racistas que proferiu quanto pela iniciativa de tão relevante instituição da comunidade judaica convidar uma personalidade ligada a um setor de extrema direita que se aproxima do fascismo para discursar e ser amplamente aplaudida pelo seu público majoritariamente judaico. Inconformados, mais de 200 jovens judeus do Rio de Janeiro se juntaram na frente do clube para denunciar a visita do parlamentar em um movimento que assumiu a hashtag #NãoEmNossoNome.
Um dos mais marcantes detalhes do cenário do discurso do deputado é que, atrás dele, aparecia com grande destaque a bandeira de Israel. Não parece raro que aqueles que advogam pelo Estado Judaico aplaudam e elogiem como um “mito” um candidato que propôs cortar fundos de ONGs, armar a população e acabar com demarcações de terras para populações indígenas e quilombolas, afinal todas estas práticas são comuns em Israel.
Um detalhe que chamou a minha atenção foi ver que os jovens que protestavam do lado de fora do clube, mesmo mobilizados por ideais de esquerda e fortemente contrários à presença de Bolsonaro nesse espaço judaico, carregavam a mesma bandeira de Israel presente no palco onde o deputado discursou.
Twiter de Ana Concli @AnaConcli – ”Manifestantes em frente a Hebraica RJ contra presença de Bolsonaro”
Eles cantavam “Judeu e Sionista não apoia fascista”. Para a maioria dos setores de esquerda, existe uma contradição entre “sionista” e “de esquerda”. Historicamente, esses se posicionam solidários à luta palestina e veem o movimento sionista como um dos últimos bastiões da colonização europeia no Oriente Médio.
Quando se conversa com sionistas de esquerda, é comum perceber que em quase todos os aspectos da política eles estão alinhados com a esquerda brasileira. Claro que há aqueles mais radicais e aqueles menos, da mesma forma como existe na esquerda. Porém, quando o assunto se torna a Questão Palestina, surge um grande abismo entre ambos os lados. Isso não é por acaso.
Desde pequenos, nós que somos criados dentro da comunidade judaica fomos expostos à bandeira de Israel e a um bombardeio de informações e apelos emocionais que buscam solidificar uma narrativa na qual Israel surge como a oportunidade para os judeus de atingirem a sua emancipação. Na educação sionista, seja de esquerda ou de direita, a bandeira de Israel é a bandeira da liberdade.
Obviamente que essa narrativa esconde o racismo que o sionismo trouxe enraizado de sua origem europeia e colonial. A partir do momento que Israel se define como democracia judaica exclui a possibilidade de outras minorias se sentirem parte do país.
A constante preocupação em manter uma maioria de judeus à força apenas comprova que, desde a sua origem, o Estado pretende servir a uma população específica. Para isso foi necessário expulsar forçosamente a população nativa palestina que lá habitava. A concretização da ideia de que seria apenas num espaço exclusivo, no qual judeus poderiam encontrar segurança, paz e liberdade, levou à criação de um regime excludente.
Independentemente se é de esquerda ou de direita, o que une a todos os sionistas é enxergar a sua judaicidade como uma característica inata e imutável. Algo com o qual se nasce, e que nunca alguém poderá apagar de sua essência. Nessa perspectiva, ser judeu é uma condição imposta e à qual os judeus têm que se acostumar ao longo de suas vidas. Por isso, apenas na segregação que haveria a possibilidade de ser livre, já que a judaicidade se tornaria implícita e assumiria um lugar secundário.
Novas formas de judaísmo têm surgido pelo globo. São judeus que entendem sua identidade como algo socialmente construído e, portanto, forjado em conjunto e em relação com seus vizinhos. Jovens que não apenas não acreditam na segregação, mas, contrariamente a isso, só conseguem se ver como judeus a partir da troca de valores com outras culturas. Estes jovens, que não precisam de um Estado, acreditam que apenas na convivência plena num país laico e democrático – onde vivam lado a lado com os palestinos, gozando dos mesmos direitos – é que sua identidade judaica fará sentido. Ser judeu pode ser o que bem quisermos, e nossa relação com o mundo pode se construir a partir desta nova identidade.
Em tempos de Bolsonaros, Trumps, Le Pens e outros fascismos ganhando força, Israel torna-se cada vez mais uma referência para esses grupos de extrema direita.
No dia 26 de março, mais de mil jovens judeus saíram às ruas em Nova Iorque para protestar contra o encontro anual do AIPAC (lobby americano pró-Israel) e seu apoio ao governo Donald Trump. O grupo If Not Now, responsável pela mobilização, deixa claro na sua página que sua proposta é ser uma resistência judaica ao novo presidente norte-americano. Nessa manifestação não se viu nem uma única bandeira de Israel, pelo contrário, houve apelos em solidariedade ao povo palestino, ao movimento Black Live Matters e contra a violência policial dirigida a qualquer população.
Twiter de IfNotNow @IfNotNowOrg – ”Young Jews blocking the entrance to #AIPAC2017 to stand up for freedom and dignity for all Israelis and Palestinians! #JewishResistance”
Em tempos de Bolsonaros, Trumps, Le Pens e outros fascismos ganhando força, Israel torna-se cada vez mais uma referência para esses grupos de extrema direita, fazendo cair sua máscara progressista. O projeto do Estado de Israel inspira muito a formulação do pensamento destes políticos. Um Estado onde haja uma maioria planejada, onde o voto se torne irrelevante já que os resultados de todas as eleições estão expressos no próprio nome do regime: Democracia Judaica. No caso de Bolsonaro, basta acessar os registros feitos de sua última viagem ao país feita em 2016 nos quais demonstra como o Brasil deveria se inspirar no caráter bélico e nos sistemas de vigilância e controle impostos aos palestinos.
O que deixa a nós judeus brasileiros de esquerda inconformados vai além do discurso de Bolsonaro em frente a uma bandeira de Israel. O problema real é perceber que, progressivamente, os tradicionais apoiadores do Estado judaico se aproximam do emergente fascismo e vice-versa, deixando a esquerda sionista num limbo cada vez mais explícito entre a esquerda antissionista e a direita pró-Israel. O dilema que vivemos hoje se expressa de maneira clara na ida de Bolsonaro à Hebraica. Será que essa instituição judaica, que é declaradamente sionista, errou ao convidar o deputado para discursar? Ou será que isso era o esperado vindo de um grupo que apoia as políticas segregacionistas do Estado Israel? Talvez tenha chegado a hora de aposentar a bandeira azul e branca. Quem sabe, para atingir a verdadeira emancipação judaica, o que realmente precisamos é nos emancipar da narrativa sionista e de Israel.
Fonte: The Intercept