Eu já não sinto mais raiva. O que me toma diante das manifestações daquele que hoje está Presidente da República, é uma profunda tristeza.
Uma profunda tristeza pelo povo brasileiro, pelos meus sobrinhos e pelo futuro dos meus alunos. Por outro lado, como professor de História, sinto pesar sobre mim uma responsabilidade ainda maior. Afinal, é preciso compreender também que sempre estivemos silenciosos demais, comedidos demais, temerosos demais. O povo negro, os povos indígenas, as populações tradicionais de modo geral, as mulheres, os homossexuais, as pessoas com deficiência, os pouco escolarizados e também os não escolarizados, todos estes sempre sentiram na carne a força da exclusão e do preconceito. A violência do Estado sempre subiu os morros e chutou as portas dos casebres, sem mandado, sem lustro no vocabulário. A imprensa sempre soube colocar a cara do vagabundo na tela e proteger os nomes das famílias de bens.Ocorre que agora a brutalidade alcança também os de fino trato, e o pacto civilizatório está sob risco. O Brasil das migalhas se transforma no Brasil das fardas rotas, dos coturnos apertados. É o país do enxovalho, das milícias e da barbárie.
Todo dia, quando paro no semáforo em Florianópolis, deparo-me com pessoas idosas vendendo toda sorte de produtos. Setenta, oitenta anos. Mal conseguem manter em pé seus corpos. Tento imaginar suas histórias, de onde vieram, o que já fizeram. Quantos deste jamais sonharam um futuro de miséria! Quantos destes criaram suas famílias e em algum momento do passado também já estiveram atrás de um volante, aguardando o semáforo abrir e observando os miseráveis lutando pela sobrevivência! E eu, e você, e meus sobrinhos que hoje brincam e aprendem as coisas que julgamos sérias e importantes, onde estaremos todos nós em vinte, trinta, quarenta anos? Saberemos lamber nossas feridas?
Eu não sei para onde caminhamos. Há quem diga que o mundo vive um daqueles momentos de ruptura que pode nos levar a outra coisa, e por isso surgem estes que apostam no apocalipse como moto para uma nova realidade. Ocorre, entretanto, que seus métodos e suas palavras são muito velhos. Velhos e perigosos! Por outro lado, nossa necessária indignação diante do escatológico que verte da boca do nosso presidente, assim como das bocas de outros líderes de Estado pelo mundo, não pode nos cegar para o passado e para aqueles que sempre estiveram na mira da violência. As liberdades de comer e de viver devem ser tão importantes quanto as de dizer, de ensinar e de amar. A liberdade da mesa e do culto não têm hierarquia. Nosso presente é consequência também daquilo que cegamos e negamos. Não é simples assim, porém estamos aqui, com medo, acuados e gritando para nossos espelhos. E é necessário quebrar os espelhos e olhar nos olhos do outro. Olhar nos olhos da miséria e também nos vermos ali, marcados de estigmas e cobertos de pústulas.
Hoje a notícia que me assombra é o presidente escarrando na memória de um pai morto pela ditadura. Todo filho deveria ter preservada a memória de um pai, qualquer que seja o pai. Ontem foi a homenagem pública e oficial a um torturador que seviciou uma mulher em nome do Estado. De repente o alvo era o jornalista estrangeiro e agora é o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Como no poema de Eduardo Alves da Costa, já roubaram nossas flores, mataram nosso cão e logo arrombarão a porta da nossa casa, como já arrombam as portas das tantas casas daqueles que nunca quisemos ver. Então antes que arranquem a voz da nossa garganta, que saibamos gritar. Gritar e lutar. Apesar da tristeza, desta enorme tristeza que nos toma.
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