Istambul


Por Miguel Urbano Rodrigues.

Istambul, o tempo parado e o tempo em movimento

Voltar a Istambul quase sessenta anos depois de ter ali  passado  três  dias numa visita superficial  foi para mim, na transição do ano, uma experiencia inédita.

Em permanente choque de emoções , caminhando por veredas da memória,  tentava ajustar  a cada momento ideias ,sensações, imagens numa justaposição difícil de passado e presente.

Imaginação e reflexão chocavam-se na contemplação de um dos cenários mais belos do mundo, transformado pelo homem o longo de 25 séculos.

Respondia com dificuldade a perguntas da minha companheira  que  ainda não nascera quando  descobri Istambul. Hesitava no traçado da fronteira entre o que me tocava quase com intimidade e o que  mudara  ou era novo , desconhecido.

Na velha Istambul, comprimida  entre o Corno de Ouro , o Mar de Mármara e o Bósforo  , o  reencontro  com a cidade  e o tempo foi estranho, inesperado. A  intimidade era afinal, ilusória. O sitio do Hipódromo bizantino era o mesmo. Santa Sofia e a Mesquita de Sultanhamet  apareciam recortadas  num céu azul ,como eu as recordava. O  Topkapi Saray, exibia,como antes  a fachada incaracteristica que  oculta os esplendores   do palácio  onde viviam os sultões otomanos com o seu harém. Sobre as  muralhas esburacadas da antiga Constantinopla, levantadas pelo imperador bizantino Teodósio , voavam corvos  e aves marinhas.

Correndo o olhar pelos  silhares milenares ,enegrecidos pelos anos ,  tudo aquilo  me pareceu estático , imóvel  no tempo.

Mas, à medida que transcorriam as horas, revisitando a Istambul antiga , compreendi que ,embora as pedras, os mármores, os palácios ,as mesquitas ,as igrejas permanecessem imutáveis, me surgiam como obras humanas desconhecidas. O outro, na mudança, era muito mais eu do que a cidade. O jovem que desembarcara no verão de 53  em Istambul e sentira deslumbramento  ao andar pelas  as ruas e praças  que  revia agora  não podia compreender aquilo.

Percebi que fora uma decisao acertada não reler os textos que então  escrevi sobre Istambul no jornal onde trabalhava. Porque  certamente expressaram a visão horizontal  de uma realidade que eu não estava preparado para compreender , projectando-a na profundidade do tempo.

Recordo que há mais de meio século , os turcos me apareceram diferentes do que esperava. Com surpresa registei que a maioria não tinha feições orientais, não diferindo   muito dos gregos no aspecto. Porquê?

Não me perguntara então donde  tinham chegado os antepassados daquela gente, qual a sua mundivencia, como se vestiam , o que comiam. Não tinha esquecido que as grandes  mesquitas imperiais e os  museus  me fascinaram ,mas não  me esclareceram, não abriram portas para  atravessar as muralhas dos séculos rumo  às origens  das pessoas  com quem me cruzava, sujeito e objecto  da Turquia em marcha para um futuro imprevisível.

Istambul tinha menos de um milhão de habitantes quando a conheci. A população da cidade que reencontrei no final de Dezembro  ultrapassou já os 15 milhões. Mas não foi a prodigiosa multiplicação  dos moradores que  me fez tomar consciência de que estava voltando a uma metrópole desconhecida.

A historia factual que eu aprendera,na juventude, alias mal, os nomes das batalhas, dos sultões, as informações sobre os estilos e as datas dos monumentos, o panorama  do Bósforo  não  continham as respostas sem as quais  não me era  possível  começar a entender  Istambul e os que ali  vivem

.

A melancolia turca

Huzun é uma palavra turca derivada do árabe, intraduzível em português. Exprime uma atitude  que difere da tristeza .

Orhan Pamuk, premio Nobel de Literatura , no seu livro «Istambul-Memorias de uma Cidade», define o huzun como  algo próximo da melancolia ,uma suave dor espiritual  nascida de um  sentimento de perda.

Para facilitar a compreensão do intenso sentimento de huzun que Istambul despertou nele desde a infância  afirma que é necessário conhecer a História e as consequências do desmoronamento do Império Otomano (…) e a maneira como essa História  se reflecte nas belas paisagens e nos habitantes da cidade».

Pamuk  não é um saudosista. Intelectual de formaçaao ocidental, ateu, filho de pais abastados, tem os pés bem fincados no século XXI. Isso não o impede de afirmar repetidamente que não seria capaz de viver longe de Istambul, a cidade onde nasceu e que ama com lúcida paixão.

huzun, admito, é compartilhado pelas  elites da Turquia contemporanea.A grande maioria assume-se como europeia e para ela a ruptura com o passado é definitiva. Mas  o juízo critico sobre  uma Historia tormentosa é cada vez mais compatível com o sentimento contraditório de que –as palavras são de Pamuk- «o presente é incomparavelmente mais baço do que o passado».

O turco culto admira profundamente Ataturk e está consciente que sem a revolução que ocidentalizou o pais a Turquia, esfacelada, talvez tivesse deixado de existir como Estado soberano. Mas,  em Istambul, a vida quotidiana , num cenário semeado de monumentos maravilhosos, não permite esquecer que  os antepassados criaram uma grande cultura , herança da fusão de civilizações diferentes  e hostis.

O laicismo lançou  raízes muito profundas sobretudo no exército. Mas no governo está hoje um partido que estimula  o renascimento de um sentimento religioso que, longe da Turquia rural, era pouco identificável. Nas grandes mesquitas  vi poucas fieis ,e os apelos à oração, lançados pelos muezzin do alto dos minaretes,  são ignorados pelas multidões  nas ruas da imensa cidade. Mas «o orgulho turco» volta a ser uma realidade  na nova geração.  É significativo que a popularidade do primeiro ministro Erdogan tenha aumentado muito após a atitude de firmeza assumida perante os crimes do sionismo neo fascista , nomeadamente o ataque pirata à Flotilha da Liberdade.

Santa Sofia

Ao conceber a construção de Santa Sofia,o imperador Justiniano afirmou que ela seria para sempre a maior igreja do mundo. Na sua nave cabem duas catedrais como Notre Dame de Paris . Mas não é a dimensão de grandeza  que nela mais cativa o visitante do século XXI.

Não conheço templo parecido. Ao correr o olhar pela sua deslumbrante cúpula perguntei-me por que capricho o povo lhe deturpou o nome porque a Basílica foi consagrada à Divina Sabedoria e não a Santa Sofia.

Logo ao entrar  senti que o tempo se encurtava. As ultimas restaurações aproximam  o visitante da época da sua construção. Os frescos que haviam sido cobertos de estuque quando foi transformada em mesquita  há quase 600 anos  resplandecem agora,  irradiando mensagens sofridas dos cristãos orientais do século VI.

A modernidade de Santa Sofia perturba. Constantinopla foi criada por Roma, mas a ruptura com a matriz  terá sido quase imediata.  Os arquitectos ,os pintores , os teólogos  bizantinos  distanciaram-se  em tempo brevíssimo da mentalidade e do estilo  imperantes em Roma.

A Basílica de Justiniano transpira alegria , tudo nela visa a aproximar o homem da ideia de deus, como o imaginavam os cristãos primitivos; nas austeras catedrais góticas a dureza ascética esmaga o homem, aponta-lhe o caminho do sofrimento ,porque a vida é um vale de lágrimas e a recompensa ,para os bons, somente chegará após a morte.

As mesquitas imperiais

As mesquitas imperiais de Istambul são aulas de historia da arte .

Os árabes,  ao irromperem em cavalgada na Síria helenizada  , assimilaram  na primeira vaga a cultura grega. Quase simultaneamente, aravessado o Eufrates, descobriram os esplendores  da Pérsia Sassânida. A arquitectura árabe do século VIII nasceu naturalmente como síntese das culturas dos dois grandes impérios orientais da Idade Média  ,o Bizantino e o Persa.

Os Seljucidas,islamizados no Irão, construíram ali  grandes mesquitas e  transmitiram aos Otomanos o gosto pela  arquitectura religiosa.

Para Mehmet II ,Santa Sofia configurou um desafio. O templo  , de prestigio mundial, inspirou os turcos que  aspiravam ao domínio do mundo. O conquistador de Constantinopla  decidiu erguer mesquitas que ficassem para a posteridade ,em grandeza e refinamento, à altura da Basílica de Justiniano.

E  atingiu o objectivo.

As mesquitas imperiais, sobretudo a Suleimanieh e a Sultan Ahmet , hoje património da humanidade, são criações do génio humano  que  transcendem a opção religiosa  dos seus construtores. Não transmitem apenas uma ideia da relação do homem com o Deus ideado pelo Profeta do Islão. Na atmosfera, no mármore e na pedra das abobadas,das colunas,dos capiteis ,no grande silencio das suas naves, sucessivas gerações de muçulmanos,cristaos, budistas, hinduístas , judeus  continuam a   comover-se ,tocados pela   força criadora, a finura, a originalidade , a imaginação dos artistas de vanguarda de uma civilização hoje morta.

Tinha sentido na juventude ,sem o entender, o sortilégio da Suleimanieh . Voltei a ser envolvido  pela magia da mesquita, obra prima do arquitecto Sinan  ao revisitá-la  na velhice . É uma emoção diferente ,mas não menos intensa da que me  invadiu em Santa Sofia ,desacralizada por Ataturk  e transformada em museu.

Escrever sobre ambas inibe-me pela incapacidade de expressar o que nelas há de invisível.

A mesquita Azul, a Sultan Ahmet,   surge-me menos distante  das coisas humanas. As cúpulas sobrepõem-se a abobadas ogivais sustentadas por colunas. As paredes laterais e a cúpula central ofuscam quando as contemplamos. Os 20. 000 azulejos  azuis que as cobrem, os ornamentos florais e as inscrições corânicas  irradiam uma suave tempestade de beleza.

Teophile Gautier, Flaubert, Pierre Loti , Gide e outros europeus escreveram em épocas diferentes sobre as grandes mesquitas imperiais.. Mas é preciso entrar nelas para escutar as suas mensagens mudas.

O  Palácio Topkapi

O Palácio dos Imperadores Bizantinos estava a bandonado e em ruínas quando Mehmet II conquistou  a cidade.

O sultão mandou construir o seu palácio no alto de uma colina donde se domina o ,o  Corno de Ouro e o Mar de Mármara.

O Topkapi,como  arquitectura, não vale nada.Cinco  quilómetros de antigas muralhas cercam um parque de 7 hectares Um conjunto de  edifícios incaracterísticos  construídos  à medida que o harém do sultão crescia encerra pátios que dão acesso a pavilhões  concebidos para  fins muito diferentes.

O interior da maioria dessas construções contrasta com a fealdade  das fachadas . Com raras excepções, é deslumbrante.

O coração do Império pulsou ali até ao século XIX.

O Topkapi era simultaneamente sede do Governo, residência do soberano e dos príncipes imperiais  e  o inacessível labirinto de edifícios do harém onde viviam as mulheres legitimas do sultao,as suas favoritas e concubinas, centenas de pessoas ,incluindo os eunucos  que as vigiavam e impediam o acesso ao  serralho .

Ali se teceram conspirações e intrigas  que desembocaram com frequência em assassínios de sultões, de príncipes, vizires  e altos funcionários  do Conselho imperial .

Percorrer o Topkapi  é  passear pela Historia  do mundo  otomano , acompanhar  a metamorfose das tribos turcas em potencia mundial, o apogeu de uma cultura e a sua decadência.

A série de salas do Tesouro fascina os turistas. Quando as visitei comprimia-se ali gente oriunda dos quatro cantos do planeta. Japoneses, chineses , norte americanos chamavam a atenção pelo assombro   que transparecia dos seus rostos. A maioria sentia-se confrontada com uma realidade inimaginável.

Ignorantes,  com poucas excepções, do passado dos turcos, reagiam com espanto ao que contemplavam.

Não me surpreenderam. Nas salas do Tesouro do Topkapi acumulam-se  peças  de um valor incalculavel.Certamente  milhares de milhões de euros. Somente em Teerão, no museu que exibe os tronos, as jóias ,as coroas de muitas dinastias  persas vi algo parecido.

O ouro, os diamantes, as esmeraldas, os rubis,as pérolas, armaduras ,os alfanges e  elmos  cravejados de pedras preciosas , os mantos e túnicas dos sultões, as tapeçarias imperiais   ferem o olhar . A procedência  desses objectos  é esclarecedora  do fenómeno Otomano . Uns foram produzidos  no país por  artistas turcos; outros  recordam saques dos exércitos imperiais  na Ásia , na Europa, na África; muitos foram oferecidos ao Sultao-Califa por  reis  do Ocidente e do Oriente, da China à França, da Pérsia à Rússia .

Caminhando pelo Topkapi  acompanha-se  a cavalgada agressiva dos Otomanos  por três continentes.

No labirinto do harém  a decoração mural dos aposentos das sultanas e das princesas e o mobiliário  impressionam pela finura, riqueza e imaginação

No recinto amuralhado do Topkapi,  um Museu Arqueológico  mal conhecido  difere dos grandes museus da Europa  porque  o recheio não é constituído por  obras de arte  trazidas de países  estrangeiros  onde foram criadas. No espaço  do Império Otomano floresceram desde a Antiguidade  civilizações  que marcaram a evolução da Humanidade. Na Ásia Menor  para citar um exemplo – as ruínas das cidades gregas e helenísticas , de Efeso a Pérgamo,  representam ,um património cultural tão valioso ou mais do que o da própria Grécia. E esse acervo está  presente no museu de Istambul  em milhares de obras de arte produzidas ao longo dos séculos pelo génio helénico. Vieram de lugares distantes do  Império , da Babilónia, de ruínas de cidades da antiga Assíria, do Egipto ,da Pérsia ,da Arábia, das planícies  do Danúbio e ,obviamente, da Ásia Menor. São  estatuas de bronze e mármore, bustos de imperadores, trabalhos escultóricos representando divindades de múltiplas  religiões, objectos que iluminam a vida quotidiana de povos de  regiões remotas .

Esculpido em caracteres cuneiformes sobre uma pedra amarelada, vi  num escaparate   o original  do Tratado de Kadesh, de paz perpetua , assinado entre o faraó egípcio  Ramsés II e o rei Hattusilii, dos Hititas, uma  civilização enigmática que introduziu o ferro nas espadas e se apagou em circunstancias  obscuras.

A colecção de sarcófagos  inclui um, belíssimo, de mármore branco.  Uma  legenda informa ser o de Alexandre . É talvez a peça do museu que atrai mais a atenção.  Foi trazido de Sidon ,no Libano,mas o interesse que desperta é enganador. Diz-se que foi construído para um rei fenício. A múmia de Alexandre não  se encontra ali. Até hoje  persiste o mistério sobre o local onde foi sepultado o grande macedónio.

Não podiam faltar no maravilhoso museu pedras trazidas das escavações de Tróia. Numa sala aparece um enorme cavalo de madeira inspirado naquele que, segundo a lenda, teria  permitido a conquista da mítica cidade de Heitor, imortalizada pela Ilíada .

Descendo a Istiklal

Os arranha céus de Istambul  apareceram tardiamente  quando a cidade cresceu de maneira explosiva com a chegada maciça de populações da Anatólia.

Os bairros onde surgiram  esses  edifícios  ficam muito longe do centro . A vida da cidade  «moderna» que fez a transição do século XIX para o XX permanece concentrada  no planalto de Beyoglu ,nas ruas que partem da Praça Taksim.  O esforço de europeização acentuou-se  em 1843 quando o sultão Abdulmecit I  mandou construir o palácio de Dolmabahçe  à beira do Bósforo, abandonando o Topkapi.

A grande avenida de Pera  assinalou uma ruptura com a tradição  oriental. Voltei a desce-la há dias, vagarosamente, demorando o olhar nas fachadas  dos grandes edifícios construídos  para as embaixadas .Foi a grande  artéria da modernidade onde surgiram  teatros, liceus , estabelecimentos  de luxo, restaurantes, cafés,  mesquitas e até uma igreja.

Com a República mudou de nome e passou a chamar-se Istiklal. Surgiram cinemas , centros comerciais ,livrarias, bancos, casas de cambio. A qualquer hora do dia, a multidão que por ela circula é densa , parece sempre apressada.  A modernidade não a favorece. A  Istiklal  difere pouco de  avenidas  comerciais de  grandes cidades da Europa ocidental. O ritmo de vida, a paisagem física e humana estão nas antípodas  da velha Istambul,  separada de Beyoglu pelas aguas do Corno de Ouro. O eléctrico da nostalgia , peça de museu carregada de turistas , apareceu-me como ponte fantasmática entre o passado e o presente.

Da Istiklal desci por ruas íngreme para  Galata,   o antigo bairro dos venezianos e genoveses. Percorridas umas centenas de metros, tudo à minha volta ,os sons, as cores, o formigueiro humano,  a velha torre de estilo italiano, me empurrou para outra Istambul e outra cultura.

O Bósforo

O Bósforo é para poetas, novelistas e pintores turcos a alma de Istambul. Mesmo os que não acreditam em Deus, a maioria, usam a palavra para expressar a relaçao intima entre a cidade e o sinuoso e turbulento braço de mar que  separa  a Europa da Ásia .

O Bósforo, mais do que uma massa liquida percorrida por correntes invisíveis aparece-lhes como um ser vivo, quase pensante.   A cor da agua, do verde ao azul e  ao cinza, a luz, a transparência do ar, tudo ali se apresenta em permanente mutação .

Percorri  durante duas horas, numa manhã luminosa de Janeiro , vinte dos seus trinta quilómetros  rumo ao Mar Negro . Viajava num dos  ferries a que os istambulenses chamam vapurs e senti o feitiço do Estreito , cenário de incontáveis batalhas  desde que os povos ribeirinhos começaram a construir toscos barcos.

Os incêndios destruíram nas ultimas décadas dezenas de residências de verão construídas no século XIX nas duas margens ,os yoles das grandes famílias, alguns luxuosos palacetes. Mas os que sobreviveram ao fogo e à ofensiva das empresas imobiliárias abrem janelas para a vida de luxo e ociosidade da classe dominante da época em que o império agonizava.

O Bósforo, serpenteando entre  cabos rochosos, golfos e baías  que emolduram pequenas praias,  muda de rosto ao afastar-se se Istambul. Alguns yoles, transformados em restaurantes e clubes, surgem incrustados em matas tão densas que a luz não penetra no arvoredo.

Não havia pontes no Bósforo quando conheci Istambul. Sob as actuais , a corrente do tráfego é permanente. Somente em Uskudar ,na margem asiática, antes burgo suburbano, vivem agora dois milhões de turcos.

Quando o meu ferry passou sob uma delas, eleAdd Newvei os olhos para o tabuleiro donde chegava o ruidoso concerto  dos motores e tive a sensação que tinha transcorrido mais de um século desde o dia longínquo em que descobri o encanto  do Bósforo dos terraços do Palácio Topkapi.

As muralhas de Constantinopla

Mais de 120 imperadores, de Roma , Bizâncio  e do mundo Otomano exerceram  poder absoluto  sobre a  cidade que se chama hoje Istambul.

Não há precedente para algo comparável na História.

É compreensível que a herança visível do que em 25 séculos foi na grande capital construído, reformado, saqueado, esquecido por povos de culturas muito diferentes  seja talvez única  pela riqueza e heterogeneidade . Na  malha urbana da cidade e  nos seus moradores a turquizaçao  empreendida por Ataturk agiu como um terramoto sobre Istambul , mudando-lhe a fisionomia . Mas a criação de  novos bairros, a ruptura com arquitectura  tradicional , a ocidentalização dos costumes ,do vestuário e do alfabeto não podiam magicamente eliminar  em duas ou três gerações  atitudes hábitos ,o quefazer diário da totalidade da população. Istambul não é a Anatólia rural. Mas os istambulenses pertenciam e pertencem a diferentes classes sociais .

Nas ruas da cidade o antigo véu quase desapareceu . Mas, para se tomar consciência   da ténue fronteira entre o Oriente e o Ocidente  em  amplos sectores da população,  é suficiente visitar  o Bazar das Especiarias , restaurantes populares ou passear pelo Grande Bazar. Este ,com 60 ruas e mais de 4000 lojas ,num único edifício  de tectos abobadados, é o maior  ,mais fascinante mercado do mundo,  uma cidade oriental  que sobrevive ,resistindo, à Istambul ocidentalizada.

A modernização coexiste ali com o passado , a pacotilha com peças de um artesanato requintado , o vendedor do século XXI com o comerciante poliglota e culto  que gosta de discutir o preço de uma jóia ou um tapete entre duas chávenas de chá.

Em Istambul , cidade em que  a densidade de monumentos  surpreende visitantes de toda a Europa, antigos palácios em ruínas, os konak otomanos,   e muros esboroados erguidos há muitos séculos  surgem inesperadamente ao lado de edifícios recentes.

Mas são as Muralhas bizantinas que, para mim, mais do que Santa Sofia ou as Mesquitas Imperiais, transmitem, silentes, a mensagem do tempo imóvel.

Para acompanhar a lenta viagem da cidade pelo tempo em movimento não basta escutar o discurso do guia que informa terem aquelas Muralhas sido construídas pelo Imperador Teodósio no século  IV da Nossa Era.

É preciso percorrer a pé os sete quilómetros do anel interior  da fortaleza que protegia a cidade de ataques vindos do Continente .

Das dezenas de torres iniciais algumas foram restauradas, o que permite  imaginar a antiga imponência do alto paredão de pedra e tijolo.

Mas o panorama que as Muralhas oferecem hoje ao viajeiro é o de uma grandiosa  ruína  que acciona a imaginação.

Durante um milénio resistiram a todos os povos que tentaram conquistar a cidade. Ganharam fama de inexpugnáveis.

Fracassaram ali os assaltos de tribos dos  chamados bárbaros de muitas procedências , de búlgaros e árabes; cederam, finalmente, perante a investida Otomana.

Para mim aquelas  Muralhas são um símbolo de múltiplos significados.

Latinos e gregos viram em Constantinopla a Nova Roma. Mas o nome, artificial, não podia definir uma urbe  ponte entre dois Continentes. Depois, Istambul cresceu  rompendo as fronteiras do tempo como cidade filha de muitos povos e culturas, anunciando a humanidade mestiça de amanhã.

Imagem: Quadro de Ernest Descals

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