Por Vijay Prashad / Globetrotter.
Em 27 de janeiro de 2022, o site de notícias em hebraico Walla publicou parte do texto de um telegrama enviado por Amir Weissbrod – que faz parte do Ministério das Relações Exteriores de Israel – às embaixadas israelenses em todo o mundo. O telegrama alertava os diplomatas israelenses de que na próxima 49ª sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH), que deve começar em 28 de fevereiro, será apresentado um relatório sobre o bombardeio de Israel em 2021 em Gaza. Este relatório aparentemente usará a palavra “apartheid” para se referir à ocupação israelense dos palestinos, de acordo com o telegrama.
Weissbrod transmitiu as instruções de Tel Aviv sobre o relatório preparado por um comitê nomeado pelo CDH aos diplomatas israelenses por meio deste telegrama: “o principal objetivo [para Israel] é deslegitimar o comitê, seus membros e produtos” e “prevenir ou atrasar decisões”.
Após quatro anos de investigações, em 1 de fevereiro de 2022 a ONG Anistia Internacional lançou um relatório de 280 páginas com um título duro: “O apartheid de Israel contra os palestinos”. A Anistia Internacional “concluiu que Israel perpetra o delito internacional do apartheid, como uma violação dos direitos humanos e da lei pública internacional, onde quer que impunha tal sistema. [O documento] avalia que quase toda a administração civil de Israel e autoridades militares, bem como instituições governamentais e quasi-governamentais, estão envolvidas na aplicação do sistema de apartheid contra os palestinos em toda Israel e no Território Palestino Ocupado, assim como contra refugiados palestinos e seus descendentes fora do território”. A Anistia disse ainda que esses atos “configuram o crime contra a humanidade do apartheid, tanto com base na Convenção de Apartheid quanto no Estatuto de Roma”. O ministro de Relações Exteriores de Israel, Yair Lapid, retaliou o relatório ao acusar a Anistia de citar “mentiras propagadas por organizações terroristas”. Prontamente, o governo de Israel acusou a Anistia de antisemitismo. O relatório da ONG proverá materiais fundamentais para a investigação da CDH da ONU.
Uma das questões imediatas em foco na sessão da CDH da ONU será a Operação Guardião das Muralhas de Israel, levada a cabo contra os palestinos em Gaza em maio de 2021. De acordo com um relatório de julho de 2021 da Human Rights Watch (HRW), que investigou três bombardeios israelenses que foram parte da operação “que matou 62 palestinos”, “não haviam alvos militares evidentes nas redondezas [dos bombardeios]”. No seu relatório, a HRW usou o termo “crimes de guerra” para descrever ataques feitos por “forças israelenses e grupos palestinos armados”. Quando os tiroteios e bombardeios cessaram após onze dias, o CDH da ONU aprovou uma resolução, no fim de maio, estabelecendo uma “comissão de inquérito internacional e independente” para investigar os vários crimes no Território Palestino Ocupado, incluindo na Jerusalém Oriental, e em Israel. Navi Pillay, o ex-alto comissário da ONU para os Direitos Humanos e um ex-juiz sul-africano, foi nomeado para presidir a comissão de três pessoas, que também incluirá Miloon Kothari, um arquiteto indiano, e Chris Sidoti, advogado de direitos humanos australiano. A comissão deve apresentar seu primeiro relatório para o CDH da ONU em junho.
A comissão liderada por Pillay é a nona comissão estabelecida pelo CDH para investigar as ações israelenses contra os palestinos. Ela tem um mandato bastante amplo, que inclui o estudo das violações da lei humanitária internacional, de acordo com as “quatro Convenções de Genebra de 1949”, das quais tanto Israel quanto a Palestina são signatários, e a continuação da investigação destes crimes no futuro. É esperado que o relatório de Pillay usará a palavra “apartheid” para definir a política de Israel nos territórios palestinos. Essa não seria a primeira vez que um relatório das Nações Unidas usou esse termo para definir as ações israelenses contra os palestinos. Em 2017, a Comissão Econômica e Social da ONU para a Ásia Ocidental (ESCWA) publicou um relatório preparado por Richard Falk, “ex-relator especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967”, e Virginia Tilley, “pesquisadora e professora de ciência política na Universidade do Sul de Illinois”. O relatório definia a política israelense contra os palestinos como um “apartheid”, conforme a compreensão da lei internacional (em seu relatório de 2014, Falk já havia usado o termo “apartheid”). O lançamento daquele relatório em 2017 levou à demissão da chefe da ESCWA, Rima Khalaf, uma diplomata jordaniana respeitada, após ela enfrentar “pressões do secretário-geral [da ONU] para abrir mão do relatório”.
Hasbara 2.0
Em 2006, o governo israelense criou um Ministério de Questões Estratégicas para essencialmente levar adiante duas campanhas; uma contra o Irã e outra contra o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Esse ministério de hasbara (explicação ou, mais especificamente, propaganda), operou uma guerra de informação que buscou deslegitimar os ativistas do BDS e pintar qualquer um que apoiasse o movimento como um antissemita. Muito em função das críticas pela sua “mão pesada”, o Ministério de Questões Estratégicas foi fechado em julho de 2021 e algumas de suas funções foram transferidas para o Ministério de Relações Exteriores. O telegrama de Amir Weissbrod para o Ministério de Relações Exteriores é, essencialmente, um Hasbara 2.0.
Em 23 de janeiro de 2022, o governo israelense criou um novo projeto – o chamado Concert – dentro do Ministério de Relações Exteriores. Esse projeto, muito bem financiado, levará adiante a missão de um projeto de propaganda anterior, o “Solomon’s Sling” (Estilingue de Salomão, em tradução livre) – “uma Corporação de Benefício Pública (PBC) mas controlada por representantes do governo” –, para polir a imagem de Israel ao redor do mundo, particularmente no Ocidente. O projeto Concert será o meio pelo qual o governo israelense planeja transferir milhões de dólares para organizações não-governamentais e veículos de mídia para garantir que suas reportagens sobre Israel sejam positivas. “Deslegitimação” de quaisquer críticos de Israel é parte da agenda que esse processo busca alcançar.
O telegrama enviado por Weissbrod é parte integrante da Hasbara 2.0. Weissbrod é uma figura experiente, tendo servido como oficial israelense nas Nações Unidas, em Nova York, e como embaixador na Jordânia, além de ter trabalhado em vários ministérios em Tel Aviv. Em 2011, ele declarou ao site Haaretz que os diplomatas da maioria dos países entende a posição de Israel em relação à Autoridade Palestina “a portas fechadas”, mas que eles “não estão dispostos a dizer publicamente o que eles dizem de boa vontade em reuniões privadas com representantes israelenses, o que é muitas vezes enfurecedor”. O que tal duplicidade revela é que esses funcionários estrangeiros, que concordam com Israel “com as portas fechadas”, reconhecem que a opinião pública em seus países é contra a política israelense, mas sabem também que não devem irritar os diplomatas israelenses ou estadunidenses, que poderiam dificultar a vida dos seus países. (Um alto diplomata indiano disse-me abertamente que a Índia normalizou relações com Israel em 1992 porque a ONU disse a Nova Delhi que “o caminho para Washington passa por Tel Aviv”.)
O Estado de Israel reconhece que poucos países no CDH da ONU votarão contra o relatório que provavelmente o estampará como um “estado de apartheid”. O governo israelense tentará fazer duas coisas para prevenir que esse relatório seja publicado: deslegitimar os participantes da comissão, notavelmente Pillay, e solicitar às Nações Unidas o uso de sua posição como membro da CDH para atrasar o lançamento do relatório.
Crimes de guerra
Em março de 2021, Fatou Bensouda, procuradora da Corte Criminal Internacional (CCI), confirmou que seu gabinete havia aberto uma investigação em relação aos “crimes contra o Estatuto de Roma” por parte de Israel e contra os palestinos. Há quatro crimes definidos pelo Estatuto de Roma: o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. Cada um deles é horrendo.
O que Israel teme é que um relatório negativo por parte do CDH da ONU traga evidências para uma investigação da CCI. Em 3 de janeiro de 2022, o ministro de Relações Exteriores de Israel, Yair Lapid, disse a jornalistas israelenses que seu governo teme que nesse ano um conjunto de instituições internacionais tentará retratar Israel como um “Estado de apartheid”. Essas instituições incluem o CDH da ONU, a CCI, a Corte Internacional de Justiça e o Comitê para a Eliminação da Discriminação de Raça.
Na coletiva de imprensa, Lapid chamou a caracterização de Israel como um estado de apartheid como uma “mentira desprezível”. Dois anos atrás, em junho de 2020, no entanto, uma das mais respeitadas organizações de direitos humanos de Israel – a Yesh Din – publicou um relatório com uma conclusão surpreendente: “trata-se de uma declaração difícil de fazer, mas a conclusão dessa opinião é que o crime contra a humanidade de apartheid está sendo cometido na Cisjordânia. Os perpetradores são israelenses, e as vítimas são palestinas”. Tais declarações são anátemas para Lapid e Weissbrod, mas – de acordo com grupos de direitos humanos israelenses (incluindo o B’Tselem) e palestinos (incluindo o Al-Haq e o Addameer), bem como de acordo com a Anistia Internacional e a Human Rights Watch –, são um reflexo dos fatos testemunhados no local, e nenhuma quantidade de Hasbara 2.0 pode apagar isso.
Este artigo foi produzido pela Globetrotter e traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera.
Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. Ele é um escritor parceiro e correspondente-chefe do Globetrotter. É editor-chefe da LeftWord Books e diretor da Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social. Ele é membro sênior não-residente do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros da Universidade Renmin da China. Autor de mais de 20 livros, incluindo The Darker Nations e The Poorer Nations. Seu último livro é Balas de Washington, com prefácio de Evo Morales Ayma.
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