Sem escolas e creches funcionando, crianças e adolescentes que chegavam a passar o dia fora de casa hoje estão isolados.
A quarentena, adotada conforme orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a propagação do novo coronavírus, também tem grandes chances de ter causado um aumento dos casos de violência contra crianças e adolescentes.
Essa é a avaliação da diretora-presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, em entrevista à BBC News Brasil. Segundo Temer, o afastamento das crianças e adolescentes da escola durante o isolamento rompeu o principal canal de denúncias usado por elas para relatar a violência: o professor.
“Dados do Ministério da Saúde dizem que mais de 70% dos casos de abuso infantil acontecem dentro da residência. O professor é um adulto que pode perceber esse tipo de situação, seja por uma marca física, por uma mudança no comportamento ou até mesmo por uma denúncia da criança. Sem ele, hoje essas vítimas estão impossibilitadas de se encontrar com alguém fora do ambiente familiar”, afirmou Temer.
Doutora em direito pela PUC-SP e ex-secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo, Luciana Temer afirma que a dificuldade ainda maior para denunciar em conjunto com o isolamento cria um ambiente de desproteção muito maior para a criança. Ela disse ainda que nem toda vítima de violência faz a denúncia, muitas vezes por medo.
As vítimas mais novas, segundo a especialista, têm até mesmo dificuldade em compreender que estão sofrendo abuso. De acordo com Temer, muitas crianças sentem desconforto ao serem tocadas por um adulto de maneira que não estão acostumadas, mas não sabem que aquilo é uma violência.
“Quando a escola fala sobre sexualidade, respeitadas as devidas idades, você cria um gatilho para que a criança conte a própria experiência. Quando a professora explica o que são as partes íntimas, onde pode pegar, ela se dá conta da violência que está sofrendo”, explica a presidente do Instituto Liberta.
Confinados com o agressor
Temer disse que o ambiente familiar cria uma “relação óbvia de desproteção” para a criança que sofre abuso. Segundo ela, isso é agravado porque a mãe, que em tese deveria proteger a criança também está submetida à violência geralmente cometida pelo marido contra as duas.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de mulheres agredidas no Estado de São Paulo cresceu 44,9% em março de 2020 em comparação com o mesmo período de 2019. Foram 9.817 casos registrados neste ano contra 6.775 no mesmo período do ano passado.
Para Temer, esse aumento da violência reflete uma maior submissão feminina durante a pandemia.
“O isolamento, somado a outras questões, facilitou o crime. Houve um maior consumo de álcool, de pornografia, e isso é um gatilho para violência sexual contra criança. Quando você tem sites pornográficos que incentivam relações sexuais entre pais e filhas, padrasto, você cria uma bomba-relógio”, afirmou.
Educação e canais de denúncia
A Secretaria Municipal da Educação de São Paulo criou o site do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem para que estudantes possam ter atendimento psicológico à distância durante a quarentena. O portal é interativo e o aluno poderá ter acesso, gratuitamente, a informações e até conversar com psicólogos e psicopedagogos de diversas escolas da cidade.
Dependendo da conversa com os especialistas, o estudante poderá inclusive ser encaminhado para outras áreas e até mesmo fazer denúncias.
Luciana Temer, que também ajudou a desenvolver esse programa, afirmou que a rede pública municipal desenvolveu outros meios para possibilitar que as denúncias sejam feitas pelas crianças e adolescentes. A reportagem omitiu a estratégia para que ela não seja prejudicada.
Um grupo de artistas, ativistas e outros profissionais lançaram a música “Ninguém Mexe Comigo!” no YouTube para conscientizar crianças e adolescentes de forma lúdica sobre o que pode ser considerado um abuso e como denunciá-lo. A canção, composta pela cantora Bruna Caram foi inspirada no livro infantil Não Me Toca, Seu Boboca, de Andrea Viviana Taubman.
“Estou feliz em fazer parte deste projeto porque a Ritoca, a personagem do livro, vai chegar ainda mais longe com seu grito”, afirmou Taubman.
Durante o videoclipe, idealizado pela designer e ativista Paola Bellucci Ortolan, surgem ilustrações que ajudam a criança a identificar e relatar um abuso.
A canção é acompanhada por Marcelo Jeneci na voz e sanfona, Alice Bevilaqua de Castro com violino e conta com a interpretação de libras da Roberta Almeida. A música foi lançada na segunda-feira, 18 de maio, por ser o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
No mesmo dia, o Instituto Liberta lançou o documentário Um Crime Entre Nós, que faz um alerta sobre a exploração sexual infantil no Brasil. O filme conta com depoimentos de pessoas como Drauzio Varella, Gail Dines (socióloga e especialista na indústria pornográfica) e artistas como a youtuber Jout Jout e o apresentador Luciano Huck.
O Instituto Liberta foi fundado em 2016 por um membro do Giving Pledge (organização filantrópica de Bill e Melinda Gates, nos EUA), combate a exploração e abuso sexual no Brasil, em parceria com diversos órgãos. O filme completo pode ser baixado na plataforma Videocamp.
Como saber que uma criança é abusada na quarentena?
Longe do ambiente escolar, onde é feita a maior parte das denúncias de abuso sexual infantil, Luciana Temer disse as crianças precisam contar com a ajuda de um adulto fora do ambiente familiar para contar suas angústias. Essa pessoa também pode monitorar a criança e perceber alguns sinais de violência sem mesmo que a vítima precise contar.
“Eu faço um apelo para que vizinhos e familiares ficarem atentos, na medida do possível, se a criança tiver um comportamento estranho. A família está fechada, mas tem um vizinho que escuta agressões, tem uma tia que tem contato distante e percebe. É um chamado de responsabilidade de todos nós, principalmente quando a criança está mais confinada”, afirmou.
Ela disse que não sabe como é possível resolver esse problema de outra forma, mas que o importante neste momento é evitar que o problema cresça ainda mais durante o isolamento e que esse aprendizado também se estenda para depois da quarentena.
“É uma situação muito grave e que não é excepcional da pandemia. Os números da violência são muito assustadores há anos. Precisamos fazer o Brasil a falar disso com indignação. Essas situações se naturalizaram porque somos um país machista e o corpo feminino e infantil não são respeitados”.
Quem perceber alguma atitude suspeita de abuso infantil pode fazer uma denúncia pelo Disque 100 ou acionar diretamente a polícia pelo 190.