Por Lamia Oualalou. Qual é hoje o principal problema da França? A dificuldade de adaptar o bem-sucedido modelo socioeconômico do Estado Providência à crise econômica e ao envelhecimento da população? A crise política na nação que inventou a Revolução, dois séculos atrás? Nada disso. Basta ler a imprensa francesa para perceber que, para a maioria dos políticos e dos intelectuais, o principal problema é o papel do Islã na sociedade e sua suposta incompatibilidade com valores democráticos.
É neste contexto que surge o livro “Pour les musulmans”, (“Para os muçulmanos”), publicado pelo jornalista e escritor Edwy Plenel. “Está se criando uma ‘questão muçulmana’ na França, tal como se criou a ‘questão judia’ há mais de um século”, explica Plenel, que foi diretor do diário Le Monde antes de lançar, em 2008, o Mediapart, primeiro jornal on-line do país. Sendo um dos jornalistas mais importantes da França, o livro provocou um intenso debate sobre a discriminação sofrida pelos muçulmanos. Leia a entrevista abaixo.
Opera Mundi: O senhor não é um especialista das religiões, então o que o incentivou a escrever este texto em defesa dos muçulmanos franceses?
Edwy Plenel: O propósito deste livro é protestar contra o fato de que nossos compatriotas de cultura, de origem ou de crença muçulmana sejam designados em bloco como uma ameaça e uma agressão. Eles viraram o bode expiatório principal no debate público francês. A minha ideia é obrigar a pensar aqueles que já não estão mais chocados de ouvir declarações chamando o Islã de “problema de civilização”. Existe, de parte do mundo da academia, da mídia e da política, um silêncio absurdo. Ninguém defende os muçulmanos contra discursos muito violentos, que podem levar a gestos também violentos de discriminação.
OM: No livro, o senhor faz uma comparação com a defesa que o escritor francês Émile Zola fez dos judeus, no final do século XIX. O senhor acha que os muçulmanos estão numa situação similar hoje na França?
EP: Émile Zola ficou famoso no mundo inteiro pela carta destinada ao presidente da República que ele publicou no diário “L’Aurore” em janeiro de 1898, para defender o Capitão Dreyfus, sob o título “J’accuse” (Eu acuso). Descobri que, 20 meses antes, ele tinha escrito outro artigo chamado “Pour les Juifs” (Para os Judeus) no jornal Le Figaro. Na verdade, é naquele momento que Zola se transforma em um militante engajado. Até lá, era um escritor que ficava longe das batalhas políticas. Além disso, o sucesso da série “Rougon-Macquart” fez dele um homem rico, convidado em todas as festas da elite parisiense. Mas é justamente nestes salões que ele ouve Maurice Barrès e outros intelectuais declararem que “Dreyfus é culpado, por ser judeu”. De repente, Zola entra no debate público com um alerta contra discursos de discriminação ordinária que estão sendo aceitos por todos. Hoje, tenho o mesmo objetivo. Não estou dizendo que a França de 2014 está na mesma situação que nos anos 1930, e não vejo o nazismo em cima de nós. Mas comparo a situação de hoje com aquela do final do século 19, quando se instalou o ordinário da discriminação.
[Famoso artigo de Émile Zola e frase célebre do escritor francês: ‘eu acuso’]
Se alguém tivesse contado para Barrès, por exemplo, o genocídio judeu que aconteceria 40 anos depois, ele nunca teria acreditado. Mas aconteceu, baseado em ideologias que ele ajudou a propagar. É justamente para evitar que o pior aconteça que é preciso evitar a engrenagem inicial da discriminação. Basta lembrar como, em toda a Europa, pessoas cultas e inteligentes encaravam, com a maior naturalidade, os judeus como um perigo.
Eles representavam o poder do dinheiro, mas também o risco do comunismo – chamado naquela época de “judeu-bolchevismo”. Hoje, da mesma maneira, os muçulmanos são vistos como uma ameaça que junta o poder econômico (simbolizado pelo gás, o petróleo e fundos de investimentos árabes) e uma “internacional da violência” personificada por grupos como Al Qaeda e Estado Islâmico.
OM: Os muçulmanos viraram os judeus de ontem?
EP: Não é que o anti-semitismo desapareceu, longe disso. Mas depois do genocídio, não é mais aceitável nos discursos. O alvo virou os muçulmanos. A “questão muçulmana” hoje, como ontem a “questão judia”, justifica a instalação de um mecanismo que acaba atacando todas as minorias. Atrás da islamofobia aparece a negrofobia, a homofobia, etc… O maior perigo, para uma democracia, é esquecer que ela não pode ser só a regra da maioria. Uma democracia viva cuida do respeito às minorias e a diversidade.
OM: O senhor acha que esta islamofobia é uma doença francesa ou que contaminou toda Europa?
EP: É claro que a xenofobia e o racismo estão presentes em toda Europa, mas acho que existe uma especificidade francesa. Ao contrário do que os brasileiros podem pensar, não é a crise europeia que provocou o surgimento da extrema direita na França. Aliás, se sabe agora que a França foi o laboratório intelectual das ideologias mais perigosas na Europa, embora seja a Alemanha que decidiu aplicá-las.
OM: Quando surgiu esta “questão muçulmana” no debate público francês?
EP: Eu diria que esta deriva começou há trinta anos, com a crise econômica, que coincide também com a aparição do Islã político, sob a forma da revolução iraniana. Cabe lembrar que, naquela época, a França participava de maneira muito ativa do armamento de Saddam Hussein na sua guerra contra o Irã. A raiz ideológica desta “questão muçulmana” vem então de um momento geopolítico interno e externo.
Com a crise, o desemprego e a incapacidade tanto da direita como da esquerda de encontrar soluções, os políticos apelam às velhas armadilhas do poder, cuja estratégia é incentivar o povo a entrar em guerra contra si mesmo. O lema é “Povo, existe um inimigo dentro de você”, o que permite evitar qualquer discussão sobre as elites políticas e econômicas e a verdadeira questão social. Desta maneira, o povo se concentra nas divergências (culturais e religiosas), esquecendo que, na realidade, todos sofrem dos mesmos problemas: das condições de trabalho precárias à moradia cara. Nisso, a esquerda tem uma responsabilidade importante, porque ela aceitou esta guerra de identidade e de religião, esquecendo da sua verdadeira agenda, que é de conquistas políticas e sociais.
OM: Mas defender o Estado laico não é um imperativo também?
EP: Na mídia, este papo começou em 1989, quando o maior semanário da esquerda, “Le Nouvel Observateur”, publicou uma capa contra o uso do lenços islâmicos nas escolas. Depois disso, em 2004 foi votada uma lei (com a unanimidade da direita e da esquerda!) proibindo a entrada nas escolas das meninas usando lenços. Isso provocou o afastamento de muitas alunas. E, desde 2011, existe uma circular do Ministério da Educação nacional recomendando a exclusão das mães usando lenços nas portas das escolas, na rua mesmo. Vocês percebem o absurdo? Há 25 anos que a França enfrenta problemas democráticos, econômicos, sociais, ecológicos, e durante todo este tempo, os intelectuais consideram que o verdadeiro tema é a proteção do Estado laico. Isso já não mais laicidade, é “laicismo”, ou seja, um tipo de integralismo.
Há 25 anos que a sociedade francesa ouve que o muçulmano deve esconder suas crenças, como se o Estado laico significasse a desaparição da religião do espaço público, mas não é bem assim. Num Estado laico, a religião é um assunto pessoal e privado, o que não significa escondido. Aliás, as procissões católicas foram sempre bem toleradas, sem ser vistas como ameaça.
OM: Como explicar esta diferença de tratamento entre os signos externos do catolicismo, bem vistos, e a intolerância em relação às manifestações muçulmanas?
EP: Eu acho que o que está em jogo é a questão colonial. Demoramos muito, mas, finalmente, o Estado francês reconheceu sua responsabilidade no massacre dos judeus, acabando com o antissemitismo histórico. Hoje uma pessoa pode ser judia e francesa, não é mais visto como uma contradição. No entanto, nunca resolvemos a questão colonial, com a dominação que a acompanha, e a percepção de ter uma cultura e uma civilização superiores. Para os franceses, pessoas que vêm de África ou do mundo árabe devem borrar todas as suas especificidades para se integrar à sociedade, como se a identidade francesa fosse uma norma única que deva ser copiada. Aliás, acho que é um problema de cultura política: desde a monarquia absoluta de Louis XIV, passando por Louis-Napoléon Bonaparte até o sistema presidencial atual, a França tem um problema com a diversidade e a pluralidade.
OM: É uma situação estranha, já que é um dos países europeus que mais recebeu imigrantes na história…
EP: É verdade. É por isso que chamo a França de “América da Europa”. A diferença, porém, é que a França não tem o imaginário da América. Em vez de ver a pluralidade das origens e das culturas como uma força, ela a considera uma ameaça. Uma situação única que está sendo desperdiçada. Eu acho que esta “questão muçulmana” reverbera também a relação da França com o mundo. Tenho a sensação de que estamos correndo o risco de nos cortar do mundo, de deixar de ser esta nação atrativa que participou ativamente da construção das universalidades.
OM: A Frente Nacional, partido de extrema-direita, chegou na primeira posição nas últimas eleições europeias. Existe uma possibilidade de ter um presidente de extrema-direita em 2017?
EP: Este acidente político pode acontecer sim. Como é provável que regiões ou departamentos sejam conquistados pela Frente Nacional. Para mim, a extrema-direita não é um problema por si só. É uma família intelectual que sempre vai existir, explicando que nós não nascemos iguais, que os homens são superiores às mulheres e algumas nações e civilizações superiores a outras. Hoje, se eles podem ganhar, não é porque têm mais argumentos, mas sim, sobretudo, o resultado das ações dos políticos de direita e de esquerda.
O presidente Nicolas Sarkozy tem uma responsabilidade histórica. Foi ele que legitimou a ideologia de extrema-direita com seus discursos sobre a “identidade nacional” e a importância da “origem”. É uma tragédia, porque, na França, a direita demorou muito para romper com as ideologias racistas. Foram necessários o genocídio judeu e a Segunda Guerra Mundial para que isso acontecesse, e que fosse inscrito, pela primeira vez na Constituição francesa, que a República do país não aceita discriminações baseadas na origem, na raça ou na religião.
E agora temos a imensa surpresa negativa que no mandato de François Hollande, que esqueceu todos seus compromissos de campanha, provocando uma desilusão e uma desmobilização consideráveis. Até o primeiro-ministro Manuel Valls, questionado o ano passado sobre os principais desafios para a França daqui a 2025, disse que seria “compatibilizar o Islã e a democracia”. Neste âmbito, já que direita e esquerda têm o mesmo discurso que a extrema-direita, o povo prefere votar no original, não na copia.
OM: O Ministério do Interior reconhece que mais de mil franceses deixaram o país para se dedicar à “jihad” em grupos armados na Síria, no Iraque e em outros países. O senhor acha que esta “islamofobia” pode ter efeitos na radicalização dos jovens muçulmanos ou recém-convertidos?
EP: Sem dúvida. Naquele maravilhoso artigo de Zola no qual me referi antes, ele percebe o risco que esta política do medo desemboque numa profecia: “Repetindo todos os dias que existe um perigo, acabamos criando-o; a medida que mostramos um espantalho para o povo, acabamos dando luz a um mostro real”. Quando a discriminação vira algo ordinário, ela provoca reflexos de orgulho que podem levar à perdição. Os jovens têm ideais, eles acreditam no sacrifício. É isso que vemos com todos estes jovens franceses que se engajam na “jihad”. Eles se converteram em busca de um ideal, frente a uma sociedade do desemprego, do consumo, do cinismo e da competição. E para uma minúscula minoria deles, eles vão cair na violência e no terrorismo.