Revista Cult.- O ensaio “Por ela, por elas, por nós”, das autoras Ana Paula Rodrigues dos Santos Segarro e Cintia Rodrigues dos Santos Mariano, venceu a primeira edição do Prêmio Marielle Franco de Ensaios Feministas. A cerimônia de premiação aconteceu na quarta 27 de janeiro.
Parceria entre a editora Contracorrente e o Instituto Marielle Franco, a iniciativa busca defender a memória e a luta da ex-vereadora por meio do incentivo ao pensamento crítico e feminista no país.
No texto, as autoras refletem sobre o fato de, ao longo da vida, terem sido consideradas negras, em primeiro lugar, e depois meninas, mulheres, profissionais, esposas, mães, humanas.
“Por que somos delimitadas pela palavra negra, que vem antes dos nossos nomes e da nossa existência?”, questionam.Cintia, 36, é designer e professora de Artes, e mora em Campinas. Ana Paula, 38, é engenheira civil e mora em São Paulo. Naturais de Campinas, são irmãs e “parceiras inabaláveis”. Foram escolha unânime do júri composto por Sueli Carneiro, Anielle Franco e Marcia Tiburi.
“O texto fala de experiências vividas que, se forem observadas com um olhar menos aprofundado, podem parecer localizadas e únicas. Mas não são. Estamos falando da sociedade brasileira”, escrevem.
Também participaram do processo de escolha dos textos as autoras Taylisi Leite, Eneida Desiree Salgado, Anna Lyvia Custódio Ribeiro e Nathália França, que selecionaram as finalistas para avaliação do júri.
No período de cinco meses foram recebidos mais de 190 ensaios sobre diversos aspectos do feminismo escritos por autoras – cis ou trans – de todas as partes do país.
“Por ela, por elas, por nós” sai em livro pela Contracorrente no mês que vem. A pré-venda abre no dia 12/02 no site da editora. A Cult adianta um trecho abaixo:
De certo modo, toda mulher negra que consegue se manter viva e sadia mentalmente pode ser considerada muito próspera. Essa condição não foi possível para todas as nossas tias.
Aqui reverenciamos todas elas, em memória e em vida. Às nossas tias que não puderam gozar de saúde mental plena, àquela que faleceu muito cedo e àquela que lutou uma vida inteira, se esforçou para nos brindar na nossa infância com presença, carinho, cuidado e com aquela comidinha gostosa de sabor inesquecível.
Gostaríamos de compartilhar uma história que nos inspirou quando crianças e mais ainda quando adultas. Uma das nossas falecidas tias contava sempre que na escola, quando pequena, havia sofrido insultos racistas por um colega de classe e que na ocasião, como consequência, teria feito o garoto engolir tinta nanquim. Posteriormente, ela se tornou freira. Essa história de infância na escola fala muito sobre ela e sobre sua luta ativa. Passados alguns dias do seu falecimento, a manchete em um jornal da cidade em que ela viveu por muitos anos foi a seguinte: “Pelos negros e pelos pobres”. Recebeu diversas homenagens póstumas. A comoção popular no seu funeral era notável.
Nossa tia, nascida na década de 1940, era há tempos uma feminista negra. Ela quebrou padrões da época enquanto freira missionária. Mudou a sociedade em que vivia. Se embrenhava nas comunidades e lutava por todos os oprimidos, em especial pelas mulheres negras.
Ela falava sempre: “nós somos muito capazes e, além de tudo, lindas”, com uma voz fina, marcante e entoada. Tia, por qual motivo não pudemos acreditar em você na época? Eu sempre quis saber da onde ela tirava toda aquela força. Guardamos com carinho todas as cartinhas trocadas com ela na infância. Guardo também a anja negra que, segundo ela, eu quis levar para minha casa quando tinha três anos de idade. Na ocasião, ela me disse que só me entregaria a referida escultura no dia da minha formatura. Fiquei sabendo dessa história somente vinte anos depois, no dia da minha colação de grau. Até hoje, quando passo por dificuldades, penso na força dessa mulher e me inspiro por meio da bela escultura que ela, com tanto carinho, me presenteou. Essa escultura deverá ser herdada pela minha sobrinha, pois ela, assim como eu, compartilha do mesmo nome da nossa tia freira. É um ato simbólico para você, minha querida sobrinha. Como é importante termos exemplos para nos inspirar.
Nossa tia tinha um conhecimento que não pudemos acessar completamente. E sentimos muito por isso. Será que ela saberia responder às dúvidas que nos inquietavam na adolescência? E quanto às exclusões? Ela saberia dizer por que éramos “olhadas” de maneira diferente? Talvez teria boas respostas. Poderíamos ter discutido muitos outros assuntos com ela. Talvez ela também quisesse apenas desfrutar dos belos momentos de leveza conosco nas poucas oportunidades de encontro presencial, já que não morávamos em cidades próximas. Você se foi tão cedo, tia!
A certeza de que ela escolheu viver conosco somente a plenitude do amor se confirmou quando acessamos um livro que conta um pouco de sua história, intitulado “Tecendo Memórias, gestando futuro: História das Irmãs Negras e Indígenas Missionárias de Jesus Crucificado”. O livro relata as dificuldades existentes para uma mulher negra seguir a vida religiosa na primeira metade do século XX. Naquela época, raríssimas instituições recebiam mulheres negras, e a instituição que recebeu nossa tia havia criado “classes” para o serviço missionário. Segundo consta em Beozzo et all (2009), as mulheres negras que eram recebidas para a vida religiosa eram incluídas na classe intitulada “oblatas” e a elas era destinado apenas o trabalho interno de limpeza, organização e preparo do alimento para que as irmãs brancas pudessem exercer o trabalho missionário. A vestimenta também era diferenciada, para que ficassem assim evidenciados os papéis a serem ocupados.
Questionei se nossa família sabia disso. Nossa tia não contou essa história a ninguém, nem mesmo para sua querida irmã. Questionei meu pai, que ingressou no seminário para ser padre em época próxima, se ele havia passado por algo do tipo. E ele disse que não. Ele, sendo homem, não passou por nada do tipo. Também refleti sobre a diferença dos acessos entre as mulheres e homens na nossa família. Nosso pai, no final da década de 1980, foi o primeiro da família a concluir a graduação no curso de direito. Anos depois, foi sucedido por mais três homens da família que também se graduaram no curso. A primeira mulher que alcançou esse feito o alcançou mais de trinta anos depois que o primeiro, ocasião em que já tínhamos formado quatro dos nossos nessa profissão.
E aí, mais uma vez, constatamos que para a mulher negra tudo é mais difícil. Nesse contexto faz se necessário citar Carneiro (2020):
A mulher negra é a síntese de duas opressões, de duas contradições essenciais; a opressão de gênero e a da raça. Isso resulta no tipo mais perverso de confinamento. Se a questão da mulher avança, o racismo vem e barra as negras. Se o racismo é burlado, geralmente quem se beneficia é o homem negro. Ser mulher negra é experimentar essa condição de asfixia social.
Nessa condição de asfixia, as irmãs missionárias negras lutaram por igualdade no ambiente religioso. Uniram-se. Curaram-se. Processaram suas dores de maneira conjunta e conseguiram conquistar seu espaço. Escreveram, de maneira coletiva, um livro que conta essa história. Soubemos disso tudo há bem pouco tempo. Essa história conversa com a nossa. Conversa com nossa necessidade de falar por meio da escrita, do registro, da denúncia.
Fazendo referência ao nome do livro que conta a história das Irmãs Negras e Indígenas, nós nos sentimos gestadas pela força e pelo futuro que vocês vislumbraram para nós.
E quanto à minha tia, nunca me esquecerei das coisas que vivemos uma semana antes do seu falecimento. Ela estava nos visitando em nossa casa e me disse as seguintes palavras: “Agora você que vai na minha cidade me visitar, pois eu não voltarei aqui”. E entregou-me um livro que continha uma dedicatória com a seguinte inscrição: “A gente se vê de longe com o coração”. Tia, eu jamais deixarei de te ver e de te sentir.
Tão perto e tão longe. Fiquemos atentas às raras oportunidades. Tia, agora estou atenta.