Investir em ciclovias e no uso de bicicletas

    Por Clóvis Montenegro.

    Quando eu era criança na pequena e pacata cidade de Florianópolis, aprendia-se na escola que Joinville era a “Manchester Catarinense”. Era uma alusão à cidade inglesa que foi o berço da Revolução Industrial, como está nos manuais de história. Dizia-se com orgulho que todos os carros brasileiros não saiam das fábricas sem pelo menos uma peça produzida na Fundição Tupy.

    Cresci ouvindo que Joinville era também a “cidade das bicicletas”, pois sua geografia plana proporciona às suas dezenas de milhares de operários o uso deste agradável meio de transporte. O controle dos capitães da indústria sobre o governo local viabilizou investimentos para que formasse uma malha de ciclovias, para facilitar o deslocamento dos operários de suas casas aos locais de trabalho.

    Quando fui morar em Joinville, em abril de 1990, encontrei lá as suas ciclovias intactas e os mesmos milhares de operários industriais usando suas bicicletas. A situação econômica estava mudando, e a abertura das importações de automóveis agravou as dificuldades da Fundição Tupi. Era uma face perversa do aumento do número de montadoras de automóveis de passeio no Brasil.

    Aquele feudalismo industrial de outrora viveu um efetivo desmoronamento. A Consul foi vendida para o grupo norte-americano Brasmotor, o grupo Hansen se esfacelou e o controle do mercado local de planos de saúde privado pela Unimed virou fumaça. Nesta época formou-se uma elite sindical autônoma, com interesses próprios, e emergiu uma mobilização popular nas associações de bairros.

    Hoje a cidade de Joinville, como todos os demais municípios brasileiros, ganhou um prefeito “novinho em folha”. Tudo bem que o senhor Udo Doehler não é exatamente uma novidade na vida dos joinvilenses, mas sempre a entrada de uma pessoa no governo de uma cidade cria expectativas. Como perguntar não ofende, e dar conselhos também não, dou um conselho de graça: resgatem a capacidade de uso e de deslocamento com bicicletas pela cidade.

    Estou em Amsterdam, nos Países Baixos, para uma breve temporada de estudos na Universidade Humanística de Utrecht. Os guias turísticos apresentam os costumes locais, e destacam o hábito de pedalar. Todo mundo pedala: crianças, jovens, homens, mulheres e idosos. Vai-se de bicicleta para a escola, para o trabalho, para as compras, para os encontros, para as baladas.

    Olhando a paisagem urbana de Amsterdam recordei da história de Joinville, que também era uma cidade de bicicletas. Faz quarenta anos que o mundo enfrentou o “choque do petróleo”, mas parece que nada aprendemos. O Brasil investiu no transporte individual automotivo, usuário de combustíveis fósseis. Os governos federais do PT têm caprichado na isenção de impostos para as montadoras.

    Joinville e Amsterdam têm em comum o fato de serem cidades no nível do mar. Em Joinville os mangues foram ocupados pelas populações mais pobres, em busca de empregos na indústria e de equipamentos públicos. Em Amsterdam os charcos foram controlados pela construção de canais. Ambas correm riscos com o aquecimento global, o degelo das calotas polares e a elevação das marés.

    O senhor Udo Doehler pode colocar Joinville de outro modo no mapa mundi, se investir em ciclovias e no uso de bicicletas. Ouço dizer que a qualidade do transporte coletivo local (uma concessão pública!) não é boa, e os preços das suas tarifas são tema de conflitos. A ilusão dos tapetes pretos de asfalto também parece ter esgotado a sua capacidade de cooptar a simpatia dos cidadãos. Resta uma volta ao passado como futuro.

    Quando assumi a secretaria de Saúde do município na última gestão do senhor Wittich Freitag (em janeiro de 1993), coloquei na minha sala de trabalho uma ampliação gigantesca da foto de uma menina loira atrás do aro de uma bicicleta vermelha, feita pelo grande amigo Paulo de Araújo (na época trabalhando no Diário Catarinense). A foto tinha um tom forte entre laranja e vermelho, e tinha muito a ver com a imagem que fazia de cidade.

    Olhando para o passado e para o meu Brasil varonil, daqui de Amsterdam, fico pensando no quanto precisamos investir no controle do uso dos recursos naturais. A humanidade não pode mais seguir obstinada no desenvolvimento econômico como condição para a melhoria da qualidade de vida. Isso é falso. Chega de enganar os trabalhadores brasileiros de que eles precisam comprar carros de passeio cada vez mais novos para demonstrarem sucesso pessoal.

    O Instituto de Planejamento Urbano de Joinville se orgulhava de copiar as boas soluções do seu semelhante de Curitiba. Só que aparentemente não conseguiram ir mais longe do que os corredores de ônibus com terminais de integração. Quem sabe não vale a pena fazer como Amsterdam e produzir suas próprias soluções, que servem de modelos par os outros. O Brasil precisa de bons modelos de organização da vida urbana.

    Não funciona fazer ciclovias cosméticas, daquelas que vão do nada a lugar algum. Ciclovias precisam estar articuladas com estacionamentos para bicicletas e ter um pequeno marco regulatório de uso. Além disto, precisam estar integradas a outros meios de transporte como caminhadas, bondes, ônibus e barcas. Os carros de passeio precisam ir para o fim da fila entre as opções urbanas.

    O morador de Amsterdam se orgulha do seu “cavalo holandês” de duas rodas. O cidadão de Joinville pode voltar a se orgulhar de viver na “cidade das bicicletas”. Seria bem mais do que uma fantástica solução local, com redução do consumo de recursos: pode ser a construção de um exemplo sólido para os demais brasileirinhos. Lula era torneiro mecânico e talvez sonhasse em ter o seu “carrinho”, mas 35 anos depois das greves dos metalúrgicos do ABC não podemos continuar pensando neste sonho como destino. É um abismo.

    *Médico. Pesquisador em Ciência da Informação, pós-doutorado pelo Instituto Brasileiro de Informações em Ciência e Tecnologia.

    Fonte: Chuva Ácida.

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