Por Francisco José Castilhos Karam*.
As promíscuas relações entre a revista Veja e Carlinhos Cachoeira e Demóstenes Torres foram tratadas, entre poucos veículos de comunicação, pela revista Carta Capital, edição de 9 de maio de 2012. Na capa, a chamada “Veja & Cachoeira, jornalismo a pique”. Em qualquer investigação de jornalistas sobre o jornalismo, sobretudo quando a investigação recai sobre mídias que investigam outras de oposição ao governo, sempre pesa uma acusação: o “chapa-branquismo”. Ou seja, os investigadores jornalistas são “porta-vozes” do governo ou afiliados ideologicamente a ele. É um tema paradigmático.
Há mais de 20 anos, Peter Desbarats (1990) observava, diante do cenário planetário, que os jornalistas, precisamente aqueles que examinam tanto o governo e as empresas públicas, desenvolveram uma “alergia profissional” a qualquer sugestão de serem investigados e transparentes. É como se o jornalismo, as empresas e os jornalistas estivessem fora do Estado…e acima dele. É como se não houvesse relação entre Jornalismo e Poder privado… e não houvesse Poder privado dentro do Estado.
Para Marc-François Bernier (2004), “a sociedade tem inteiramente o direito de reclamar prestação de contas não somente dos depositários da soberania política ou econômica, mas também dos depositários de direitos, privilégios, liberdades e responsabilidades vinculados à informação dos cidadãos”.
O princípio de “imputabilidade” que os jornalistas invocam para forçar outros atores sociais a serem transparentes é aplicável a si mesmos, no sentido de participarem do “tribunal da opinião pública”, como gostam de dizer empresários jornalísticos que argumentam o sagrado direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa e ao direito social à informação. Com a revista Veja seria diferente? Tal como nas ditaduras, e com sinal contrário, também a mídia e o jornalismo, assim como os militares, são “intocáveis”? São “incriticáveis”?
Conforme Bernier, a “imputabilidade” é um elemento da legitimação dos jornalistas. Como “representantes” do público – e com uma espécie de “contrato social” dado pela Modernidade -, “deveriam render contas, além de sua responsabilidade, também de suas liberdades e privilégios”.
Se as relações de Veja comprometem a veracidade e a verificação informativas e podem se estender para ramos da delinquência, é preciso investigar e, à medida em que aparecem fatos relevantes, divulgar. Não é assim que se deve fazer no jornalismo? Ou seria diferente? Quais os prejuízos sociais da ausência de investigação?
Argumentar que a investigação das relações de Veja com a delinquência é subserviência ao governo é também desconsiderar a existência, cada vez mais, do Estado por trás do Capital. O projeto editorial da revista pode comprometer sua credibilidade e prestar um desserviço ao cidadão e à democracia, na qual o jornalismo é importante para manter a vitalidade pública. Não existem mais governos que não tenham relação com o âmbito privado, ou seja, com instituições privadas. Quando há subsídios para o papel-jornal, por exemplo, é imposto que deixa de ser recolhido pelo Estado e que poderia ser direcionado à Educação e à Saúde. Ou seja, o custo de tais áreas sai “do seu bolso”, como costumam dizer alguns jornalistas e apresentadores de televisão. É também “do seu bolso” que saem dinheiros públicos para empresas da mídia, como o ressarcimento por despesas com a propaganda eleitoral “gratuita” – que pouco tem de gratuita-, seja com o “perdão” fiscal à dívida com o INSS ou via socorro do BNDES ao endividamento financeiro midiático.
Porque então não se investiga efetivamente e com repercussão tais aspectos? Seria “chapa-branquismo” ou seria apenas, no discurso contra tal investigação, apenas a utilização do chamado “interesse público” para esconder interesses privados? E quem investiga, faz “chapa-branca” ou investiga o próprio funcionamento do Estado? E, claro, investiga as próprias empresas nele contidas, incluindo as jornalísticas, que não vivem sem ele… o Estado?
A delinquência é um dos grandes ramos lucrativos inseridos no Estado, como o narcotráfico, a corrupção e a venda de sentenças. E o jornalismo delinquente … não pode ser investigado?
Referências
Bernier, Marc-François. Éthique e Deontologie du Journalism. San Nicolas (Québec): Las Presses de l’Université Laval, 2004
Desbarats, Peter. Guide to Canadian News Media. Toronto: Harcourt Brace Jovanovich, 1990
*Docente da UFSC e pesquisador do objETHOS
Fonte: http://objethos.wordpress.com/