Por Alceu Luís Castilho.*
Não se trata de algo inocente, como sabemos. Chamar uma ocupação de “invasão” tem consequências graves para a luta política. Para a disputa por espaços. A favor de quem detém o poder, e a favor do nivelamento por baixo, da banalização das verdadeiras invasões. Invasões = assaltos. Uma coisa feia. Um abuso. Violência.
(Como, invadir não significa exatamente assaltar? Deem um Google em “Invadir” e “assaltos” ou “assaltantes” e vejam como as palavras estão estatisticamente associadas.)
Ocupação = um ato político. Quando um grupo – e não um bando – se apropria de algo sem dono, ou abandonado. Ou ilegítimo.
Não se trata de uma concepção revolucionária. É adotada pelo aparato jurídico democrático, neste esboço de democracia que temos – a serviço do sistema econômico. Burguês. Capitalista. Ordem e progresso. A aceitar a singela ideia de que existem ocupações. E que elas são legítimas.
E, no entanto, nosso jornalismo putrefato insiste em classificar ocupações de “invasões”. Mesmo que desembargadores (não revolucionários, e sim desembargadores, formados na USP, nas PUCs), desembargadores legalistas constatem que ocupações são… ocupações. Um direito. E não um crime.
Está acontecendo isso em São Paulo. Um desembargador impediu a reintegração de posse sonhada pelo governo paulista: a de mais de uma centena de escolas (nesta terça-feira, 151) ocupadas por estudantes do ensino público. Adolescentes. Ele disse, o desembargador disse: são pacíficas. São legais.
(Sim, dirão que há desembargadores que autorizam reintegrações súbitas de posse. Mas são senhores tão sisudos que não possuem TV em casa e, portanto, não ficam sabendo da violência policial contra pobres. Os jornalistas, não; sabem bem como é.)
Mesmo assim, lemos, na Folha, o jornal das Diretas Já e do apoio à ditadura de 64: “Invasões”. Como se fosse uma criança birrenta. “Eu quero, quero que seja invasão, entendeu?” Atirando a maturidade às favas. “Invasões, invasões”. A palavra invade os textos jornalísticos até que se chegue a algo próximo da verdade.
A VERDADE
Ora, ora, ora. A verdade. A ideia de que estudantes “invadam” escolas para que estas continuem funcionando desafia qualquer percepção racional remanescente, qualquer resquício de bom senso. Esbofeteia Aristóteles e São Tomás de Aquino. “Invadir” escolas onde… eles estudam. Para que mesmo? Para… para que não sejam fechadas.
Esse jornalismo autista não se rende. Adolescentes fazem manifestações pacíficas – como constatou o tal desembargador – e são classificados pelo jornalão de plantão como “invasores”. Seres perigosíssimos, portanto, concluirá o leitor um pouco mais desatento. (E são milhares. São filhos de eleitores. São filhos de PMs.)
Mas o leitor se empodera cada vez mais e desconfia que esse jornal seja impreciso, ou parcial, ou mesmo… violento. Tipo: um invasor da gramática. Um assassino da lógica. (Enquanto isso, os estudantes vão lá e ocupam. Ocupam, ocupam. Dão um nó no governador paulista exatamente porque… ocupam. Movem seus peões e desafiam o rei.)
Ocupar = reivindicar. Tomar a cena urbana como um espaço em disputa. Melhor repetir: não assaltantes com um revólver em punho roubando, ameaçando, pilhando. E sim grupos organizados dizendo que não, que não é qualquer arbitrariedade — qualquer injustiça – que se possa aceitar. Reivindicando aquilo que lhes pertence.
E aí vai lá um intrépido repórter para a ocupação. O repórter estudou, ele foi à faculdade, ele (em boa parte dos casos) é sensível, perspicaz. Quase arguto. E até escreve: “Ocupa”. “Ocupação”. “Ocupou”. Mas vai lá o editor birrento a serviço do patrão teimoso e escreve: “Invade”. “Invasão”. “Invadiu”. “Invasores”.
E com essa confusão semântica anacrônica temos, claramente, um grupo que sonha com uma democracia melhor (ah, esses radicais gregos) demonizado por uma elite que se orgulha de pregar uma democracia para poucos: uma plutocracia. Um mundo onde os oligarcas consolidem – ou mesmo celebrem – a desigualdade.
A DESIGUALDADE
A desigualdade: ela é constatável. A ONU, o Ipea (em governos tucanos ou petistas), o IBGE… tantos. Todos admitem que haja desigualdade. Lembro-me de Mário Covas, de quem o governador paulista era vice, definindo a desigualdade – e não a pobreza – como causa da violência. Em um Roda-Viva, nos tempos em que aquela roda era viva.
Por causa da desigualdade (calma, calma, estamos simplificando) alguns optam pela violência. São poucos. Outros tantos optam pela disputa política. Pacífica. De várias formas. Por exemplo: ocupando. Pensem nos sem-teto. Querem moradia. Próxima do trabalho, com licença. (Repararam como não se trata ainda de demanda comunista?)
Eles veem prédios desocupados no centro. Perpetuados por rentistas – desses que saem em passeatas chamando trabalhadores de vagabundos, miseráveis de desocupados. Rentistas = aqueles que vivem de renda. Que julgam razoável prédios inteiros serem destinados a baratas, e não trabalhadores, com IPTU a preços aprazíveis.
(Há também a especulação imobiliária, a gentrificação. A cidade como mercadoria.)
Esses movimentos organizados preferem fazer o quê? Enfiar um estilete no pescoço gordo dos senhores rentistas ou senhores especuladores? Não. Eles são pacíficos. Mas não passivos. Preferem… ocupar. Mandar uma mensagem aos vendilhões, não somente fazer a disputa por espaço. Dizer ao poder público (e a quem ali passe) que eles existem e têm direito à moradia.
Direito à moradia. “Mas que coisa da Revolução Cubana, do Foro de São Paulo, só pode ser coisa de bolivariano”. Só que não: foi um direito garantido por uma Constituição. Constituição = um documento promulgado em 1988 assinado por Covas e FHC, por Serra e por Aécio, no tempo em que esses senhores eram de centro-esquerda. (Há quem não acredite. Mas eram.)
E, por isso, sem-teto e sem-terra ocupam. Ocupam, inclusive, áreas públicas surrupiadas por empresas, terras da União invadidas por corporações, terras devolutas disfarçadamente engolidas por proprietários espertalhões. Griladas. Ocupam, esta é a palavra – porque (este é um esboço de curso didático para jornalistas distraídos) não são invasores.
Esses sem-terra, por exemplo (sem-terra existem), são filhos e netos de camponeses, indígenas e quilombolas expulsos do campo. Num êxodo rural movido também a violência, por jagunços e fazendeiros invasores. Povoados foram queimados. Padres e sindicalistas foram mortos. História elementar do Brasil. (O Brasil todos conhecem.)
Esses bisnetos de Canudos, da escravidão e das etnias trucidadas respeitam as leis da Física e dizem: precisamos morar em algum lugar. Mais do que isso: gostaríamos muito de uma terra para plantar, talvez criar umas galinhas. Quem sabe com um rio por perto. (Enquanto as mineradoras e hidrelétricas não acabem de vez com nossos rios.)
Eles são milhões de pessoas. Alguns, mais politizados. Informaram-se (no mencionado arcabouço jurídico burguês) e perceberam que a ocupação é um recurso legítimo. Os mais detalhistas constataram que a fabricante de sucos X e a empresa de celulose Y invadiram terras públicas. E o que fazem? Conciliadores que são: ocupam.
Mas lá vai nosso editor teimoso, nosso dono de jornal (apenas coincidentemente também proprietário de terras) e publica diariamente, semanalmente, mensalmente brutalmente, que eles in-va-di-ram, que eles são (concluirá o leitor) pessoas perigosas e malvadas, que não, que não pode, que assim não dá, vejam quanta violência.
E assim, dia após dia, jornal após jornal, infâmia após infâmia.
UM ESCLARECIMENTO
O curso intensivo-relâmpago para jornalistas não conterá noções mais elaboradas sobre grilagem, sobre capítulos inteiros da história do Brasil, evitará cenas fortes (no processo de expulsão dos camponeses tivemos pessoas empaladas, bebês atirados à parede, os miolos saíam de suas cabeças), conterá apenas o mais aceitável.
Bem devagarinho. Para que cada editor entenda. Até aprender. Ocupação = ocupação. (Atenção: essa palavra diz respeito a quem está no andar de baixo. Ricos não ocupam.) Invasão = invasão. Feio. (Pode ser feita por pobres ou por ricos. Desconfia-se que seja mais grave quando perpetuada por quem tenha seu cantinho para chamar de seu).
*@alceucastilho)
Foto de capa: Roberto Parizotti/ Comunicação CUT.
Fonte: Outras Palavras.