Por Elissandro Santana, para Desacato.info.
A análise aqui, como se explicita logo no título, se dará em relação a Porto Seguro, importante cidade turística localizada no Extremo Sul da Bahia, mas a situação retratada neste canto do país se replica em várias outras partes e regiões, portanto, a discussão sobre racismo ambiental e degradação ambiental por essas bandas poderá ser compreendida por muitos a partir das perspecticas locais Brasil adentro. Dito isto, para filosofar um pouco, a guisa de comparação, assim como William Shakespeare dizia que “há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”, ouso afirmar, sem medo, que há mais intersecções entre o racismo ambiental e a degradação ambiental do que se imagina em Porto Seguro e no Brasil, ainda que muitos não percebam.
Como não dá para falar de racismo ambiental sem uma ideia básica sobre o que é o racismo, no geral, posiciono-me, com muita frequência, ao abordar este tema, dizendo que o racismo é uma construção secular no país, com tentáculos assustadores em pleno século XXI, e que o racismo ambiental é um desses monstros que nos aterroriza e assombra desde o Brasil Colônia, e que, justamente por isso, precisa ser dissecado, estudado, rediscutido, explorado em todas as nuances a partir dos mais diferentes pontos de vista e vistas de pontos, pois é necessário vencer esse problema enraizado na arquitetura político-econômico-social-cultural-mental brasileira, institucionalizado sem que muitos tomem consciência.
Ainda no tocante ao conceito de racismo, podemos recorrer ao Professor Leonardo Lacerda Campos e à Pedagoga Raissa Santos Soriano, no artigo Práticas educativas no combate ao racismo: discutindo estratégias para a Educação Infantil, para entendermos que racismo se define por um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças e etnias.
Ainda que a análise no artigo mencionado seja em uma perspectiva específica educacional, a partir do referido trabalho é possível fazer uma série de correlações, dentre elas, como se dá o acesso dos grupos étnicos historicamente subalternizados ao espaço escola e, desta forma, relacioná-lo com a discussão sobre racismo ambiental e degradação ambiental em Porto Seguro e em todo o Brasil que estou tentando elaborar.
Continuando a análise, para entender as intersecções entre racismo ambiental e degradação ambiental em Porto Seguro, Bahia, faz-se preciso, de fato, o entendimento sobre os conceitos básicos no que tange ao racismo ambiental e o que é degradação ambiental, e espero que isso já tenha sido compreendido, pois somente a partir desse estado de consciência será possível esmiuçar as relações de causa-efeito e, principalmente, elaborar uma crítica profunda acerca dos elementos geradores e perpetuadores do racismo estrutural que se instalou no país desde a Colônia e que nos afeta até hoje, em latência, mesmo diante do aparato jurídico que criminaliza o racismo em nossa nação.
Já que discutimos, ainda que superficialmente, o que é o racismo, a partir deste momento, será apresentado um conceito simples (por isso mesmo, de fácil compreensão) e, ao mesmo tempo profundo. Tânia Pacheco, importante pesquisadora sobre o tema, em muitas das discussões e publicações defende que racismo ambiental tem relação com injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. Conforme a mesma pensadora, Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. Ainda, conforme Tânia Pacheco, o conceito de Racismo Ambiental nos desafia a ampliar nossas visões de mundo e a lutar por um novo paradigma civilizatório, por uma sociedade igualitária e justa, na qual democracia plena e a cidadania ativa não sejam direito para poucos privilegiados, independentemente de cor, de origem e de etnia.
Apresentado o conceito acima, a partir de agora, é importante conceituar ou, de maneira exemplificativa, entender, que, por degração ambiental, devemos perceber que isto se relaciona, diretamente, com a deterioração do meio ambiente a partir do esgotamento de recursos, da destruição de espaços naturais e desequilíbrios nos ecossistemas em geral.
Na verdade, não é preciso teorizar muito para ter uma noção sobre o que é o racismo ambiental, seus tentáculos e as interrelações entre este câncer e a degradação ambiental no país, basta acompanhar as notícias, relatos e vídeos nos jornais virtual e televisivo, em âmbito nacional ou local, para a comprovação de que, por exemplo, as catástrofes em decorrência das mudanças climáticas e outros desarranjos causam mais prejuízos ou afetam, em maior quantidade, os excluídos ou abandonados pelo sistema ao longo da história. As últimas chuvas na Bahia, em Minas e em outras áreas do país nos dão uma noção concreta de quais grupos sociais mais sofrem e são penalizados pela ausência de agendas políticas de monitoramento de desastres, de planejamento urbano, de regenarão dos espaços e de valorização da vida do povo e de todos os seres que fazem parte dos ecossistemas locais.
Em Porto Seguro, o racismo ambiental começa logo na imagem que se vende somente de parte da cidade para o turismo. Para que entendam, em profundidade, o que estou tentando demostrar, é fácil, basta visualizar nas placas que servem de guia para o turismo em frente a algumas instituições sobre o mapa da cidade em que são apresentados todos os espaços para lazer e diversão na sede e em todo o município. Aparecem todos os espaços assistidos pela gestão governamental local, menos os bairros periféricos, e isso é prática de longa data. Nos espaços em que a presença da gestão é forte, para a imagem de uma cidade bonita e segura, são ofertados alguns dos serviços que não chegam à periferia, ou se chegam não se dão com a mesma intensidade. O turismo apaga ou silencia os outros espaços e isso me impactou assim que botei o pé pela primeira vez na cidade. Isso me fez e me faz questionar até hoje quais os motivos para que isso aconteça e por que poucos se dão conta. Tenho muitas das respostas, mas não paro de querer encontrar outras. Muitos, ingenuamente, até tentam justificar que como em Porto Seguro os espaços de praia são os elementos atrativos, não haveria por que apresentar outros espaços da cidade. Tais posições aparecem na discursiva de diversos atores que se valem do turismo, que estão na gestão pública e até mesmo dos moradores do centro e dos pontos periféricos. Esse argumento é frágil e não fornece explicação coerente-coesa para o fato dos espaços periféricos desaparecem das placas que ficam em alguns pontos estratégicos da cidade, como, por exemplo, em frente a algumas agências bancárias no centro da cidade, em agências de turismo e em outros domínios. Nos diversos mapas, panfletos e outros mecanismos de marketing turístico utilizados pelos que lucram com as atividades do turismo, grande parte dos espaços de vida e de existência no município desaparece, dando a impressão de que Porto Seguro é somente o centro da sede municipal, a orla norte, parte do Arraial d’Ajuda, Trancoso e Caraíva na orla sul. Essa imagética interfere na percepção espacial e geográfica do turista, diante da exclusão-apagamento das outras partes.
Esse apagamento tem raízes no racismo ambiental, é fato, mas poucos ousam discutir a questão e, portanto, quase inexistem análises locais sobre tal problemática.
No que se refere aos lugares apagados, silenciados e esquecidos, as periferias da existência em Porto Seguro, do ponto de vista do planejamento urbano, são precárias em diversos aspectos e essa realidade precariza a vida de seus moradores, diante da pouca presença do poder público em torno de políticas e agendas de planejamento, de urbanização, da oferta eficiente de serviços públicos de saúde, de educação e programas de emprego e geração de renda. Estudos mais aprofundados no campo do recenciamento e grupos étnicos comprovariam aquilo que afirmo em vários de meus textos com análises acerca do racismo ambiental, que para homens negros, mulheres negras e outras minorias (maiorias numéricas no país), em Porto e em outras partes do Brasil, sempre reservarão os rincões mais inóspitos. Sim, reservarão, pois historicamente, as elites conquistam sempre os melhores espaços, os menos frágeis diante das questões ambientais. Para as minorias sociais, especificamente, para a população negra e outros grupos sociais, sobram os espaços mais distantes de tudo e degradados ambientalmente ou que serão degradados em muitos sentidos. Estes locais serão aqueles mais afetados diante de situações climáticas adversas e extremas, pois, muitas vezes estão em espaços de desmatamento, de rios assoreados ou em processo final de degradação, sujeitos a enchentes nos períodos de chuvas volumosas, doenças em decorrência de microorganismos e zoonoses.
Na cidade de Porto Seguro, a concentração da maior parte dos grupos sociais subalternizados se dá nos bairros periféricos em que houve muito desmatamento, há questões sanitárias pendentes e ausência de políticas públicas eficaz-eficientes de urbanização que viabilizem uma vida, no sentido lato sensu, socioambientalmente digna. Em parte desses espaços, a pavimentação de certos pontos ocorreu há pouco tempo e problemas relacionados à segurança (em muitas frentes) estão presentes. Tudo isso é fruto de um projeto que possui raízes históricas.
No município, para uma dimensão mais ampla do problema, certos serviços como, por exemplo, os bancários, na periferia, fora do circuito do turismo, são algo recente e não na quantidade e qualidade que a população necessita. As explicações para a não instalação de agências bancárias, públicas ou privadas, na periferia, sempre se deram com base na narrativa da violência, da delinquência. Para mim, isso nada mais é do que racismo, pois a violência, em todas as suas faces, pode aparecer em diversos pontos geográficos de existência, com raízes profundas em questões que merecem debate. Ataques a agências bancárias se dão em bairros nobres, de classe média em todo o Brasil, por isso, essa explicação nunca me convenceu e acredito que também a grande parte da sociedade local, em especial, os moradores da periferia.
Para uma discussão ainda mais produtiva acerca das inter-relações entre racismo ambiental e degradação ambiental em Porto Seguro, não podemos esquecer o processo de acelerada especulação imobiliária e gentrificação com a retirada de cobertura vegetal natural em partes do muncípio e aproximação cada vez mais dos espaços indígenas, elemento que exerce forte pressão nas áreas adjascentes de preservação e, consequentemente, afeta, diretamente, os povos indígenas. O perímetro urbano chega cada vez mais próximo às aldeias e, com isso, surgiu uma série de problemas que precisarão ser discutidos e resolvidos. Aliás, o verbo composto no futuro deve dar lugar ao presente, precisarão ser discutidos não, precisam ser discutidos, tendo em vista que a situação já exige reflexões complexas e soluções imediatas.
Ademais, cabe sinalizar que, quem tiver a oportunidade de visitar Porto Seguro, deveria fazer um tour pelos espaços de ausência ou de degradação aos quais me refiro e se permitir fazer um comparativo com as partes centrais do município ou dos distritos glamourizados, para a percepção, em profundidade, acerca do diálogo que estou tentando estabelecer sobre o racismo ambiental e a degradação ambiental na cidade.
É importante sinalizar que a destruição ambiental acontece nos espaços utilizados pelo turismo insustentável praticado na cidade, esse é outro de meus objetos de estudo e preocupação, mas, nos últimos anos, tenho me voltado para análises sobre a degradação, a passos largos, no que se refere ao processo de crescimento urbanístico horizontal, em que áreas naturais deixam de existir para darem lugar às moradias dos excluídos em uma cidade que é pensada na atualidade para o turista, como um pacote objeto a ser consumido.
Enfim, são muitos os pontos que poderiam ser discutidos, mas como não quero cansar o/a leitor/a, deixarei para fazer isso em outros textos e ocasião nesta coluna. Por enquanto, deixo essa reflexão com o desejo de que ela gere bastante inquietação, pois este foi exatamente o meu objetivo ao esboçar esta análise.
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Elissandro Santana é Professor da faculdade Nossa Senhora de Lourdes, mestrando em Conservação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável, pela ESCAS – IPÊ, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
Parabéns! Um texto muito eloquente e importante para o extremo sul da Bahia, mas também para toda as cidades turísticas!