Por Lívia Albuquerque, para Desacato.info.
Com a aproximação do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o debate acerca da interrupção voluntária da gestação ganha destaque. O tema é colocado de forma central na luta pela emancipação feminina no mundo. No final do ano passado, na vizinha Argentina, foi aprovada no Senado a lei que regulamenta a possibilidade de a mulher interromper voluntariamente uma gestação. Ou seja, se uma argentina não quiser levar adiante uma gravidez, poderá recorrer ao serviço público de saúde do país, para interrompê-la, caso se encontre nas primeiras 14 semanas de gestação. É a legalização – colocar em termos legais – das condições formais necessárias para se fazer valer o direito que se visa proteger, qual seja o de a mulher decidir sobre a sua procriação. O acontecimento foi considerado uma grande vitória do país, cujas restrições eram bem semelhantes às do Brasil atual, onde só se pode interromper a gestação legalmente em 3 situações: fetos anencéfalos, risco à vida materna ou estupro.
Em nosso país, a discussão política mais sistematizada e recente foi a provocada pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017. A ação vislumbra a descriminalização da interrupção da gravidez se realizada durante o primeiro trimestre de gestação, ou seja, caso seja feito até a 12ª semana, o ato não deveria ser considerado crime. A petição inicial da ADPF, em 62 folhas, traz dois casos estrangeiros – um nos Estados Unidos e um na Alemanha -, com o intuito de analisar o direito comparado. A peça inicial destaca a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a autonomia, a não discriminação das mulheres pela criminalização do aborto, os diretos à vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura, à saúde e ao planejamento familiar. A argumentação da petição é desenvolvida em uma linha que determina o modelo de país democrático e desenvolvido que o Brasil poderia e deveria ser, respeitando todo um rol de direitos e princípios fundamentais das mulheres. O prazo de 12 semanas foi o marco colocado na ADPF, que vai ao encontro do histórico do entendimento da própria corte, como foi decidido nos casos da ADPF 54 e do Habeas Corpus 124.306/RJ. A ADPF 54 trata da possibilidade de escolha por interromper a gestação em razão da anencefalia do feto, que não poderia ser titular do bem jurídico da vida, em razão da má formação do tubo neural. O HC 124.306 criou um precedente para a descriminalização da interrupção antes da formação do sistema nervoso central, cujo marco se dá nas 12 primeiras semanas. O Supremo Tribunal Federal promoveu audiência pública com especialistas e membros da sociedade civil, com duração de 2 dias em agosto de 2018. Atualmente, os autos estão conclusos com a relatora, ministra Rosa Weber, e a ação não foi julgada.
A linha política da ADPF 442 é a mesma da parte majoritária da esquerda brasileira, que utiliza a história do direito comparado para encontrar a opção para o Brasil, tentando transplantar uma saída jurídica de países com realidades diferentes da brasileira. A escolha de casos paradigmáticos dos Estados Unidos e da Alemanha para constar na petição inicial demonstra a clara influência das discussões do feminismo europeu e/ou norte-americano para aplicação à situação concreta brasileira. Por aqui, a maioria da esquerda trata das questões das mulheres sob a ótica do feminismo importado e desconexo com a realidade do país. Então, além de os dramas estarem sempre divididos em pautas fragmentadas, também são mal compreendidos. Certamente, países imperialistas, que estão no centro do sistema global onde o Brasil ocupa posição periférica, possuem questões a enfrentar que não coincidem com as deste país. Para os países centrais, o sistema jurídico-burguês, o Estado de bem estar social e a democracia burguesa funcionam em grande medida. Quando o capital precisa se adaptar, encontra saídas. Porém elas não serão as mesmas que funcionarão para os países periféricos tal qual o Brasil é, onde há necessidade de mão de obra desempregada e sub empregada, super exploração do trabalho e servidão, e a dignidade humana assume contornos sub humanos. Não à toa, são os países do continente africano, os latino-americanos e os do Oriente Médio que possuem as restrições mais rigorosas para que uma mulher interrompa sua gestação.
Assim, a peça inicial da ADPF 442 encontra ressonância nos pareceres do STF sobre o tema da interrupção da gestação. Vide a decisão do ministro Marco Aurélio referente à ADPF 54, onde está destacada a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em oposição ao direito de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integrariam, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. No parecer do ministro Luís Roberto Barroso referente ao HC 124.306, é mencionado que os países democráticos e desenvolvidos não tratam a interrupção da gestação durante o primeiro semestre como crime. O jogo de palavras é muito bem construído, mas as categorias jurídicas expostas não refletem as demandas mais urgentes da classe trabalhadora brasileira. Há desconexão com suas necessidades imediatas, porque princípios jurídicos que nunca saíram do papel para a sua vida concreta continuarão sendo apenas criação literária, caso a disputa continue ocorrendo somente no campo jurídico abstrato.
Admitir a nova interpretação constitucional que passa a permitir legalmente a interrupção voluntária da gestação até as 12 semanas, como a arguição requer, aparenta ser um avanço significativo no que se considera a gama dos direitos das mulheres. De fato, sem ser considerado crime, os dados acerca da interrupção voluntária da gravidez seriam mais fidedignos que os atuais e a realidade poderia ser melhor estudada. Também, mulheres e profissionais que são presos por essa razão seriam poupados do encarceramento. No entanto, é preciso estar claro que a opção brasileira seria diferente da proposta concretizada na Argentina em dezembro passado: não estão em discussão oficial os detalhes legais que serão exigidos para que a mulher brasileira possa recorrer ao sistema público e interromper a gestação que não deseja prosseguir. A ação se limita ao campo da descriminalização do ato, e não adentra no campo da instrumentalização do processo de legalização em si. Os dados estimados já são suficientes para este ser um problema pensado dentro de uma estratégia mais ampla do tema saúde da mulher ou dignidade da pessoa humana. A questão do encarceramento decorrente da tipificação penal atual, apesar de cruel e ultrapassada no tempo, não representa em si mesma um número tão significativo para fazer desta uma pauta prioritária, se isolada do conjunto de ações necessárias para tratar da vida humana, sobretudo das mulheres, dentro do país.
A figura da mulher que recorre voluntariamente à interrupção da gravidez, no senso comum, é a de uma adolescente, sem fé religiosa, com alta rotatividade de parceiros sexuais e que não quer ter filhos, utilizando-se do aborto para método contraceptivo. Ocorre que, conforme demonstrado no levantamento apresentado na audiência do STF, o perfil real é o da mulher trabalhadora comum. A maioria das interrupções é realizada por mulheres de 20 a 29 anos, com crença religiosa, que possuem um companheiro e já têm filho(s). Se da região sul e sudeste, essa mulher utilizava método anticoncepcional, que, por ter falhado, levou-a à gravidez. Ou seja, a mulher brasileira que busca a interrupção da gestação está no período da vida reprodutiva de maior fertilidade, declara-se de alguma religião, possui parceiro estável e já conhece os dramas da maternidade. Essa mulher recorre à interrupção como última medida de planejamento reprodutivo. Outro dado que não pode ser ignorado, embora não surpreenda de assim acabar sendo, é o que aponta para os maiores riscos decorrentes do aborto recaírem sobre as mulheres mais jovens, com baixa escolaridade e menos renda, que são negras, pardas ou indígenas, e que residem nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste. Portanto, não se pode ignorar os sinais que conduzem ao cenário de vulnerabilidade social provocado pelos ditames da sociedade do capital, cuja lógica mundial se reproduz internamente no país.
A ADPF 442 ser o principal instrumento político-jurídico atual sobre a interrupção voluntária da gravidez representa falha no trato do tema. O pedido pela descriminalização do aborto como forma central de luta pelas mulheres ignora as razões materiais que levam ao ato e que continuarão existindo ainda que o pedido seja acatado. As mulheres continuarão a interromper suas gravidezes de forma insegura e a criar seus filhos sob muita pressão, com o peso quase exclusivo dessa responsabilidade. Mais ainda, não se terá tocado no ponto de que, na realidade brasileira, o aborto inseguro figura atrás de outras principais causas de morte materna. Hipertensão (pré-eclâmpsia e eclâmpsia), hemorragias, infecções e demais complicações no parto ou pós parto matam mais mulheres que o aborto inseguro neste país. No mundo, 99% das mortes maternas ocorrem em países em desenvolvimento. Ou seja, nos países desenvolvidos, a morte materna não é um problema do tamanho que é aqui, onde 9 em cada 10 casos desses poderiam ser evitados, caso não houvesse a péssima assistência no pré-natal, no parto e no pós parto. Tal fato fica evidenciado, inclusive, na análise dos dados referentes à Covid-19. Nada menos que 80% das gestantes no mundo, vítimas fatais da doença, são brasileiras. Se nos outros países as gestantes não compõem um grupo de risco, isso não se aplica às gestantes brasileiras. Mais uma razão para se refletir com bastante honestidade sobre a prioridade política a ser dada no que toca às questões da mulher dentro do território nacional. Mais uma oportunidade para compreender a ineficácia da importação das pautas de lutas dos “países desenvolvidos e democráticos”, cuja realidade é bem diferente deste país subdesenvolvido.
É oportuno lembrar que a esquerda brasileira não reivindica a forma cubana de ter alcançado determinados marcos em favor das demandas sociais das mulheres. No país caribenho, desde 1965, as mulheres do país podem optar por interromper uma gravidez se a decisão ocorrer até as 10 primeiras semanas de gestação. Não foi uma transformação legal que ocorreu em virtude de Cuba querer entrar no patamar dos países desenvolvidos e democráticos, seguindo o movimento feminista europeu e estadounidense. A real razão de, já nos primeiros anos após sua revolução, o país precisar estruturar seu sistema público de saúde para acolher as mulheres que desejassem interromper sua gestação é o comprometimento com as causas reais dos problemas sociais que vão se apresentando (ou já estão apresentados). Se a sociedade fracassa com os indivíduos a ponto de uma mulher não querer prosseguir sua gravidez, a sociedade que precisa se modificar e encontrar uma forma de acabar com esse problema. Se as mulheres estão recorrendo à interrupção, o governo socialista enxerga o acontecimento, entende suas causas e traça um plano de ação. Cuba identificou que após uma revolução, destruidora das bases da sociedade da época, e sua reconstrução sobre novos paradigmas, teria que dar conta da profundidade das mazelas de sua população. A nova construção ainda precisaria lidar com desafios herdados do antigo sistema. A legalização da interrupção voluntária da gestação não foi uma medida isolada ou central. Estava atrelada aos objetivos de saúde de todos os indivíduos, onde se incluem as mulheres: atendimento primário; assistência específica durante a gestação, o parto e o pós parto; conscientização sobre saúde sexual e reprodutiva – inclusive acerca dos riscos e prejuízos que o aborto ocasiona na vida da mulher. É o combate das condições materiais desfavoráveis, pela revolução posta, e não o enfrentamento meramente moral e jurídico.
No estágio atual da sociedade, aliás, é preciso estar com a consciência crítica muito afinada uma vez que se adentre no campo da luta por direitos. A luta jurídica, muito consolidada como alternativa, é a busca por proteção formal. A concepção jurídica de mundo é um clássico burguês. Na transição do feudalismo para o capitalismo, onde o dogma e o direito divino foram substituídos pelo direito humano – e a Igreja, pelo Estado -, as relações passam a ser fundadas no direito. Os trabalhadores com melhores condições econômicas, ao se aproximarem um pouco mais da parte de cima da pirâmide social, conseguem fazer algum uso das leis, porém elas têm caráter de classe, da classe que as elaborou, pois foi pensando em garantir suas condições que ela aperfeiçoou o Direito enquanto ciência. A classe trabalhadora sempre irá precisar de igualdade social para completar a igualdade jurídica constituída pela sociedade burguesa, uma vez que suas condições de vida não estão (e não tem como estar) contempladas com suas especificidades na lei e no direito. Assim, ao contrário das mulheres burguesas – cujo mecanismo de reivindicação é esse, o dos movimentos feministas em geral -, as mulheres trabalhadoras almejam transformações materiais, e a proteção legal é apenas uma consequência de um fato já posto. O caminho jurídico é fortalecedor de falsas dicotomias, enquanto a real e a maior de todas elas é deixada fora do debate político. Então, insistir na disputa direitos da mulher X direitos do feto e não se discutir sobre as condições que estruturam o modo de produção (trabalho assalariado que se opõe ao capital) é legitimar a desigualdade e a opressão. O direito assume a forma de mercadoria, e sua fetichização sustenta ilusões nos indivíduos. Tal mecanismo contribui também para alimentar debates eleitoreiros, seara onde as frações burguesas sabem tirar bastante proveito.
Não há modificação material que se sustente apenas por discussões jurídicas. Escapar do julgamento moral burguês não é um motivo forte para que a descriminalização da interrupção voluntária da gestação seja suficiente para lidar com suas consequências concretas na vida da classe trabalhadora. Quando a burguesia não enxergar mais vantagem em postergar a mudança legal – tendência não apenas nos países ao redor do globo, sendo assim também dentro da corte suprema, como mencionado acima -, decidir-se-á por analisar a ADPF 442 e passará a ser admitida a descriminalização da interrupção voluntária da gestação até as 12 semanas. Porque a classe dominante sabe o momento certo de encenar a nação democrática e em desenvolvimento que o Brasil é. E a esquerda, entrando nessa dinâmica política, despreza o fato de mulheres estarem optando por não levar sua gravidez adiante, em consequência das regras do capital, da dependência, da luta de classes. As mulheres não serão mais presas, mas continuarão interrompendo suas gestações de forma insegura, e aquelas que não morrerem, estarão nas mãos dos médicos, enfermeiros e assistentes sociais que constituem hoje a ampla maioria dos denunciantes do ato. Continuarão também sendo vítimas de má assistência na saúde, especialmente, durante a fase reprodutiva, onde a morte materna possui números assustadores. Não é aceitável que um assunto tão sério, um drama da mulher trabalhadora, seja tratado com despreparo, seja por ingenuidade, seja por conivência com o sistema jurídico e político. Que os agentes políticos identifiquem as reivindicações dos movimentos sociais, mas compreendam que sua atuação é política. O direcionamento político se dá pela utilização das instituições e de suas regras, porém sem perder de vista o horizonte realmente transformador, de absoluto rompimento com o modelo de sociedade atual, seus valores e suas misérias, e compromisso fiel de construção socialista e seus princípios de responsabilidade coletiva.
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