Talvez o esforço para dar sentido pós-capitalista às redes sociais seja vão. Por sua própria estrutura, elas prestam-se ao consumo e à disputa fútil e egoica — mas não à crítica e às alternativas.
Por Rafael Evangelista.
Ao mesmo tempo que as redes sociais se mostram como uma fissura na represa de informações dos grandes grupos de mídia, o diálogo que se dá por meio delas parece cada vez mais confuso, por vezes violento e produtor de rupturas e rivalidades pouco construtivas. As peças de informação alternativa, escritas a partir do ponto de vista dos sujeitos historicamente explorados, quando submetidas aos filtros sociais, de mercado, ou dos algoritmos das redes proprietárias, vão tendo dois destinos igualmente ruins: ou desaparecem num mar de irrelevância e futilidades; ou são tão simplificadas, para viralizarem ou se tornarem os populares memes, que pouco servem para produzir transformações sociais necessárias. Viram item para atiçar torcidas, dão margem a perseguições pessoalizadas que atingem desnecessariamente indivíduos quando deveriam mirar as estruturas. Propagam-se por serem de consumo fácil, tendo como combustível emoções exacerbadas.
Já faz uns anos, montei uma disciplina de pós-graduação que se propõe — entre outras coisas, mas fundamentalmente — a analisar duas figuras populares da ficção contemporânea: o ciborgue e o zumbi. Claro, os encontros são recheados de cenas de sangue e circuitos, miolos e chips, mas estão baseados principalmente em dois textos acadêmicos filiados aos estudos culturais: um é o popular Manifesto Ciborgue (ou Manifesto para os Ciborgues, como preferem alguns), de Donna Haraway; e uma resposta ou criação a partir dele, muito menos conhecida mas também interessante e provocativa, o Manifesto Zumbi, de Sarah Lauro e Karen Embry. Ciborgues e zumbis, como tratados a partir dessa literatura, podem nos ajudar a falar dessa balbúrdia que se tornou o diálogo político contemporâneo.
Ciborgues e zumbis
Escrito em meados da década de 1980, o Manifesto Ciborgue é uma aposta no ruído, contra os essencialismos e pela comunicação. Está sintonizado com as questões do feminismo do período, que se indaga sobre as identidades – e divisões – de classe, étnicas e de origem. Contudo, suas respostas vão muito além disso, colocando em xeque a separação entre natureza e cultura. Pode parecer contraditório advogar pelo ruído e falar em comunicação ao mesmo tempo, mas trata-se de produzir novas sínteses que superem as categorias absolutas, fechadas. É um trabalho em favor da racionalidade e que se constrói a partir de condições materiais. De suma importância é a inteligência, entendida na mesma chave da ideia dos sistemas de inteligência da cibernética, capazes de produzir coisas novas a partir de informações atualizadas constantemente.
O ciborgue é invocado por ter a ver com a tecnociência contemporânea, mas principalmente por suas características híbridas. Ele não é o robô, totalmente de ferro, aço e chips. Ele integra tecnologia à carne, não está nem lá nem cá, não é nem humano nem máquina, sendo ao mesmo tempo os dois. Haraway recupera essa figura inspirada pela ficção científica feminista, capaz de produzir, a partir da imaginação, essas sínteses que apontam para o futuro. O ciborgue é menos importante como objeto, hoje alvo de um certo fetiche de um futuro tecnoutópico, e mais como imagem de algo difícil de ser classificado e produto marginal de tempos atuais. “As histórias feministas sobre ciborgues têm a tarefa de recodificar a comunicação e a inteligência a fim de subverter o comando e o controle”.
A escrita, em sentido amplo (literatura, código computacional, imagens etc), tem papel destacado como ação de produção de outras sínteses. “Disputas em torno dos significados da escrita são uma forma importante da luta política contemporânea. Liberar o jogo da escrita é uma coisa extremamente séria”, diz ela. “A escrita é, preeminentemente, a tecnologia dos ciborgues – superfícies gravadas do final do século XX. A política do ciborgue é a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado de forma perfeita – o dogma central do falogocentrismo. É por isso que a política do ciborgue insiste no ruído e advoga a poluição, tirando prazer das ilegítimas fusões entre animal e máquina.”
O Manifesto Zumbi vai em outra direção. Seu foco está mais nas relações econômicas e de trabalho – que também estão no texto de Haraway, mas dividem espaço com questões dos movimentos de minorias. Embora reverentes ao legado do texto de Haraway, as autoras partem de uma critica ao ciborgue. Este teria como ponto positivo o abandono dos discursos essencialistas sobre o corpo, mas manteria a identificação com uma posição de sujeito iluminista, em que as transformações são possíveis por meio da ação dos sujeitos livres.
Independente da validade ou não da crítica, o interessante do texto de Lauro e Embry é a apropriação, como “imaginação irônica”, feita das histórias sobre os zumbis. As autoras mostram como essa figura, tanto em sua versão original haitiana como nos filmes de terror, está ligada, ao mesmo tempo, à escravidão e à revolta escrava. O zumbi era um escravo, um humano vivo que, submetido a magia, parecia morto e era enterrado, para então ser tirado da cova pelo autor da magia que ganhava um servo. Reanimado, mas sem consciência. Como o ciborgue, mas com o sinal trocado, ele é uma figura limite: move-se como os vivos, embora seja incapaz de reconhecer o mundo — como os mortos. É o corpo aprisionado unicamente ao trabalho, com a mente completamente alienada de suas condições.
O zumbi foi importado pelo cinema B hollywoodiano em meados dos anos 1940, mas se tornou popular nas mãos do diretor George Romero, que deu à figura os contornos que conhecemos hoje. Durante os anos 1960, contemporâneo ao movimento dos direitos civis nos EUA, Romero usou dos zumbis para produzir alegorias sobre segregação étnico-racial, imigração, consumismo, militarismo e para fazer críticas ao capitalismo. O zumbi é sempre a massa, violenta, brutalizada, sem inteligência. O outro, o diferente, cujo comportamento nos parece animal e irracional, e cuja fala é mero grunhido.
Lauro e Embry apegam-se ao zumbi como imagem do pós-humano, símbolo do antisujeito. Eles não estão organizados sob um comando central, o que os move é a ânsia por carne humana. Toda organização ali é, na verdade, não-organização, pura emergência; não há comunicação, inteligência ou reelaboração. Quando atacam uma casa ou um prédio, não vencem por estratégia, mas por número, pelo excesso. A fome nunca se sacia e são, ao mesmo tempo, uma máquina de consumo e de produção. Consomem a carne e também produzem mais consumidores de carne, num processo de destruição da vida consciente que é também produção de mais zumbis. Trabalham reproduzindo sua condição de zumbi que é, em si, homogeinizadora e destruidora de qualquer ordem anterior.
“Numa era em que o capitalismo global fecha todas as tentativas de escape do sistema, a única opção é desligar o sistema e os indivíduos que nele estão”, escrevem as autoras, numa conclusão distópica e radical. No entanto, a posição delas pode ser lida como resposta irônica, ou seja, em lugar de uma efetiva solução para um problema, um apontamento sobre os limites das alternativas já dadas. Sem elas, a opção seria a destruição do sistema, ao qual a noção de indivíduo liberal seria inerente.
Voltado às redes e aos seus debates
Aqui, muito mais modestamente e fazendo referência ao objeto elencado no início do texto, a imagem do zumbi talvez possa ser usada como uma espécie de alerta.
As redes, os softwares, assim como todos os objetos, têm uma certa arquitetura, um desenho, que sugere um determinado uso. É claro, sempre é possível resistir e inventar novos usos, mas mesmo essa resistência encontra limitações materiais e qualquer outro uso diferente do “recomendado” será marginal. A maior parte dos usuários tende a seguir o que o desenho manda.
A questão então é nos indagarmos sobre o que sugere a arquitetura dos softwares de comunicação e sobre qual tem sido o comportamento das pessoas frente a essas estruturas. Se essas redes de comunicação são construídas como plataformas para impulsionar o consumo de mercadorias (do mundo real ou informacionais), até que ponto estamos conseguindo resistir a esse desenho e estamos produzindo sínteses inteligentes frente ao ruído que nos é apresentado? Estamos conseguindo nos comunicar efetivamente em redes cujas progressivas modificações no código são voltadas para a maximização dos lucros?
A grande maioria dos veículos de comunicação, sejam os comerciais ou os alternativos, hoje são altamente dependentes das redes sociais para propagarem seus conteúdos. Estrategicamente, as notícias atualmente são formatadas para se acoplarem nas redes, para viralizarem. A matéria caça-clique virou questão de vida ou morte para os veículos. O que não é compartilhado pelos usuários acaba soterrado em meio a avalanche de memes, listas e manchetes em forma de pegadinha. Dezenas de novos projetos informativos surgiram recentemente mas, para sobreviverem, são obrigados a repetirem os formatos mais simplistas e que permitam a sobrevivência na rede. A alta oferta acaba sendo a da informação mais irrelevante, básica ou mesmo mentirosa, muitas vezes compartilhada por pessoas que nem se deram ao trabalho de clicar no link.
Nesse ponto a analogia ciborgue-zumbi talvez nos caiba. Como mortos-vivos, vamos consumindo o que ainda existe de carne viva e compartilhando-a em forma de imagem-meme ou conceito/xingamento reducionista, porque isso viraliza, tem forma compartilhável, pode ser lido e assimilado em uma fração de segundo e com a atenção de nossos interlocutores dividida em outras tantas telas. O ruído dissonante que tanto agrada a Haraway acaba descartado ou ignorado, porque requer processamento, inteligência, síntese de coisas novas. Pede por uma outra atitude mental e de atenção.
Podemos pensar, também, o zumbi haitiano como modelo do trabalho sem salário realizado pelos usuários nas redes. Hipnotizados, entretidos com a exposição coletiva dos “eus” de nossos “amigos”, fazemos o ofício de compartilhamento e categorização do que circula, das informações e de nós mesmos. As redes conseguem lucro pelas publicidades direcionadas a que somos submetidos e cujo combustível são os nossos dados pessoais: as buscas de informações que fizemos, nossas interações com os outros e o perfil que ativamente construímos.
Em lugar de construirmos pontes entre nós, de nos embrenharmos no processo de escrita, de processamento, inteligência e criação, estamos envolvidos, talvez porque a arquitetura das redes sociais assim nos sugere, na reprodução da “comunicação perfeita”, para usar a expressão de Haraway. Perfeita não porque correta ou verdadeira, mas porque se encaixa em tudo o que já está dado, em caixinhas que já estão prontas: coxinha, petralha, governista, reaça, feminazi, mimimi. Toda fala já está previamente classificada. Algum tipo de simplificação classificatória seria relativamente normal — é isso que nos permite navegar pelos textos com alguma rapidez, ainda mais com a avalanche de informações a que somos submetidos diariamente . Mas quando o procedimento torna-se regular no debate público, em veículos importantes e populares, trata-se de uma degradação preocupante.
O comportamento acaba não se restringindo às redes, porque a divisão estanque entre online e offline é, em si, falsa. As conversas presenciais acabam repetindo parte dos mesmos padrões zumbi, dão-se nos (e com os) mesmos termos e padrões. A cena de pessoas, fora da internet, conversando a partir das mesmas expressões e memes usados nas redes já foi explorada em esquetes de humor e pode ser parcialmente observada no cotidiano, em versões menos caricatas, especialmente em círculos sociais mais conectados, ainda que altamente escolarizados.
A crítica com relação às potencialidade políticas e aos rumos que a comunicação via internet vem tomando frequentemente esbarra em uma réplica que se dá em termos absolutos ou anacrônicos. Por mais que ela tenha sido construída com padrões abertos e favorecendo a colaboração igualitária, muito aconteceu dos anos 1990 para cá. O sucesso comercial implica em capacidade de compra de mais estrutura física, força de trabalho e espaço na mídia tradicional. E a maior parte dos projetos de sucesso comercial foi construída com esse propósito em mente, captar dinheiro. O capitalismo impulsiona a si mesmo, em seus termos.
A infra-estrutura da internet pode ser basicamente a mesma, mas a web evoluiu sob o signo do comércio. Inicialmente tentando vender objetos, hoje transformando o fluxo de informações em ativo financeiro. É preciso pensar sobre as potencialidades e os limites de se fazer um debate pós-capitalista no seio das redes capitalistas. A carnificina zumbi certamente é popular, mas o bom debate nem sempre gera cliques.
Fonte: Outras Palavras