Por Carolina Franco e Marina Empinotti.
Zero Jornal.- “O mercado é assim”. O coordenador do curso de Medicina da UFSC Carlos Eduardo Pinheiro fala com naturalidade sobre a rotina dos internos na universidade. Nela, estão incluídos períodos integrais de trabalho, começando por volta das 8h e terminando entre 17h e 18h, muitas vezes complementados por plantões das 20h às 8h. Logo depois do plantão, atividades normais; o descanso é na parte da tarde. “A carga horária não é muito pesada, na medicina isso é tradicional. A gente é diferente de todo mundo [da universidade]”, complementa Pinheiro. Internato é um estágio curricular obrigatório para graduação médica. Durante o período, que deve ter duração mínima de 2700 horas – ao menos 35% da carga horária total da graduação -, estudantes fazem um treinamento supervisionado por pro?ssionais em áreas como Clínica médica, Cirurgia e Pediatria. Nas três maiores universidades catarinenses que oferecem o curso, ufsc, Univali e Unisul, a duração é de dois anos. Quando chegam nessa etapa, os alunos passaram por quatro anos de curso majoritariamente teórico e começam a se dedicar aos trabalhos práticos em hospitais, maternidades e postos de saúde. Ainda há discussões de casos clínicos e aulas, mas as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ministério da Educação (mec) exigem que pelo menos 80% do tempo seja investido nos atendimentos. Atualmente, a carga horária semanal do internato deve ser de 40 horas. Essa é uma exigência da Lei de Estágio (Lei 11.788, De 25 de setembro de 2008), mas que, segundo Pinheiro, não foi feita para a medicina.
“Essa lei nos criou um problema. Antigamente, eram 60 horas semanais. Durante muitos anos foi padrão. Agora temos que diminuir horas sem diminuir a qualidade da formação, o que não é fácil. Precisamos de 44 horas semanais, pelo menos”, justi?ca. Para o coordenador da Medicina da Unisul, João Ghizzo Filho, a limitação da carga horária não compromete a formação dos estudantes. Os alunos da universidade têm aulas em período integral e cumprem plantão semanal das 18h às 24h – sem períodos de 12h como na ufsc -, mais uma visita em ?ns de semanas alternados. “Formamos a primeira turma no campus Pedra Branca, com 24 alunos. 80% ?zeram provas de residência e foram aprovados, embora nem todos chamados para trabalhar. Esse é o termômetro que temos”. Ainda que estruturalmente adaptados à lei, na prática, os estudantes a?rmam que muitos estágios ultrapassam 40 horas semanais. “A pediatria da nona fase tem 52 horas semanais,
Ciclo deve ter 40 horas semanais, mas professor diz que é insuficiente
Tranquilamente. Entramos no ambulatório às 7h30 e das 11h às 12h tem aula. Para almoçar, temos que ir em duplas, para não deixar o serviço descoberto. A tarde é inteira na emergência e uma vez por semana temos plantão de doze horas no hu, das 20h
Às 8h. Nesse caso da pediatria não há pós-plantão, que é a tarde livre para descansar. Não há nenhum período livre”, relata um aluno da ufsc, que pediu para não ser identi?cado. Para os estudantes, se as 40h semanais fossem bem aproveitadas, seriam su?cientes para o aprendizado pleno. Parte da jornada nos hospitais é cumprida preenchendo papeis. Em horários em que há mais de uma turma de internos, os mais velhos assumem a maioria das funções e os outros ?cam livres. “Esta semana ?quei a tarde inteira na maternidade e ?z duas consultas. Foram quatro horas em que, efetivamente, aprendi durante uma”, conta outro aluno. Por não se tratar tecnicamente de trabalho, e sim de atividade acadêmica, a legislação trabalhista não regula o internato. O advogado do Sindicado dos Médicos de Santa Catarina, Ângelo Kniss, explica que se há algum problema, a universidade
É responsável. “Alguns estudantes entram em contato conosco questionando as jornadas diárias acima do razoável ou do programa pedagógico do curso, além da questão do trabalho informal entre os estudantes, já que praticam o ato médico no que diz respeito a alguns pontos [os internos consultam, examinam e levam o diagnóstico aos responsáveis]”. Mesmo reconhecendo os excessos, os estudantes da ufsc acreditam que a rotina cheia é naturalizada por eles e pelos professores. “É como se houvesse uma via crucis para se tornar médico. Você já estudou muito para entrar na faculdade e é muito exigido do primeiro ao último semestre. Você não se alimenta nem dorme bem, mas os professores, em geral, insistem que são nessas condições que você vai viver”, relata um aluno da nona fase. “A lógica parece ser: vamos precarizar o ensino já que o serviço está precarizado”, completa.
Falta de acompanhamento é problema
De acordo com pesquisa realizada entre os alunos pelo Centro Acadêmico Livre de Medicina (ca- limed) da ufsc, a principal defasagem do internato está na preceptoria, o acompanhamento que recebem de pro?ssionais. Alunos relatam situações graves em que estavam sozinhos na emergência cirúrgica do Hospital Universitário (hu): “Aconteceu de eu estar sem staff (médico experiente) nem residente e chegar um paciente politraumatizado. Era meu primeiro estágio cirúrgico, não podia fazer nada além de chamar alguém quali?cado para lidar com o caso. Fiquei muito nervoso, mas felizmente não foi um caso de vida ou morte”. Segundo os alunos, a falta de acompanhamento, principalmente nos estágios cirúrgicos, é recorrente e bem conhecida dentro do curso, só que por envolver ?guras importantes na hierarquia do hospital é um problema que permanece sem solução. Há também relatos de casos de favorecimento ou retaliação nas avaliações dos alunos, que muitas vezes é feita por residentes ou médicos recém formados que foram colegas de curso dos internos e por isso não utilizam somente critérios pro?ssionais nas atribuições. Na Maternidade Carmela Dutra, por exemplo, são os residentes que fazem as avaliações. “Na enfermaria, tem uma prescrição padrão que damos às pacientes que estão bem após dar a luz. É só imprimir e levar para o residente carimbar. Alguns são nossos conhecidos e assinam tudo sem checar. É uma ?exibilidade que não deveria acontecer” conta outro estudante. Na Univali a di?culdade maior é pelos alunos não contarem com um hospital universitário para trabalharem. “Os internos não são recebidos no
Hospital-escola da forma que achamos que deveriam. Nem sempre os professores estão lá. Então, contamos com os médicos em serviço, que podem não ter vínculo com a universidade, mas têm obrigação de nos ajudar justamente pelo status de escola que o estabelecimento possui. Mas eles não recebem nada a mais por isso, não têm motivação alguma” relata a presidente do Centro Acadêmico de Medicina Professor Edison Villela (capevi) da Univali, Lygia Cruz. O Centro Acadêmico da Unisul não foi encontrado para comentar a situação e os alunos contatados não quiseram se manifestar.
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Marina Empinotti: [email protected]