Inteligência Artificial “não escreve bem” porque também “não lê bem”. Por Francisco Fernandes Ladeira.

Por Francisco Fernandes Ladeira.

Atualmente, muito se tem especulado sobre os perigos do uso constante de recursos relacionados à Inteligência Artificial (IA), como o ChatGPT, e suas múltiplas possibilidades para criação de textos. Há quem fale, inclusive, em “morte do escritor”.

Alarmismos à parte, antes de nos precipitarmos, e apresentar visões demasiadamente pessimistas ou otimistas sobre essa complexa e intrigante questão, é importante refletir sobre o que é preciso para ser um “bom escritor”.

Obviamente, “escrever bem” tem como condição sine qua non ser um bom leitor. Em contrapartida, nem tão óbvio assim são os conceitos de leitor e leitura.

Para compreender os diferentes tipos de leitor, bem como os diferentes modos de leitura, recorrerei ao livro “Humanos Hiper-Híbridos: Linguagens e cultura na segunda era da internet”, da professora Lucia Santaella, mais precisamente ao quinto capítulo: “Patrimônio cultural, memória e leitura”.

A partir do pensamento de Vilm Flusser, Santaella apresenta três tipos de leitores: o sobrevoar apressado, o farejar desconfiado e o desdobrar cuidadoso. Este último leitor corresponde à forma crítica de ler em oposição à primeira, que se caracteriza como uma leitura ao acaso, adivinhatória, em que se procede por saltos e associações. Por sua vez, o farejar desconfiado caracteriza a leitura como ato detetivesco.

Ainda de acordo com a autora, podemos pensar em modos de ler que implicam graus crescentes de complexidade, que vão do compreender ao interpretar, até atingir o nível de diálogo crítico com o texto.

Compreender significa ser capaz de traduzir, em palavras próprias, o que o texto quer dizer. Interpretar corresponde a um nível de penetração mais íntima no texto, que pressupõe leituras correlatas (ou do mesmo autor ou de outros autores que trataram de temas similares). Já o diálogo crítico quer dizer que o nível de repertório do leitor o habilita a confrontar suas próprias ideias com aquelas que o texto expressa.

Enquanto a compreensão diz respeito ao entendimento, relativamente seguro, daquilo que o texto pretendeu dizer e transmitir, a interpretação significa entrar em negociações bilaterais com o texto. Já o terceiro grau de leitura só é alcançado quando o repertório do leitor está à altura de um confronto com as ideias e argumentos que são apresentados em um texto. Desse modo, concluímos que o tipo de leitor e o modo de leitura definirão, em última instância, a qualidade do escritor.

Portanto, como se pôde perceber, a partir das considerações acima, ler e, consequentemente, escrever, não são atividades simples, significam ir além de decodificar e colocar palavras no papel ou em uma tela; envolvem relacionar informações, capacidades cognitivas, julgamentos, memórias, percepções, opiniões pessoais, visões de mundo, emoções, negociações de sentidos, contextos, experiências de vida, prática e inspiração. Mesmo que essa “inspiração” seja o prazo de entrega do conteúdo de um livro, como bem ironizou Luís Fernando Veríssimo certa vez.

Sendo assim, não é difícil inferir que nenhuma máquina, por mais avançada que seja a tecnologia, desenvolva de forma satisfatória as capacidades elencadas no parágrafo anterior. Falta sensibilidade humana. Ler é muito mais do que acumular informações. Escrever é muito mais do que cruzar dados (como procede o ChatGPT). Lembrando Gilberto Gil: “o cérebro eletrônico faz quase tudo”.

É claro que os recursos disponíveis nas recentes ferramentas de IA podem nos fornecer ideias interessantes para a construção de um artigo, por exemplo. Mas para isso o antecessor Google, o “pai dos burros” contemporâneo, já nos auxilia. Além do mais, basta um simples teste para constatar a qualidade duvidosa dos textos gerados artificialmente. Não raro apresentam leituras cansativas e inconsistências. Dificilmente poderemos utilizar esses textos para um trabalho universitário, por exemplo, sem alterações significativas.

Em suma, ChatGPT e similares “não escrevem bem”, porque também “não leem bem”, haja vista que ambos se tratam de características exclusivamente humanas. Ou, como dizia Nietzsche, demasiadamente humanas.

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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp e pós-graduando em Jornalismo pela Faculdade Iguaçu.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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