Por Angieli Fabrizia Maros.
No dia 28 de agosto de 1963, cerca de 250 mil pessoas vindas de todas as partes dos Estados Unidos saíram do Memorial a Washington numa lenta caminhada pelas ruas da capital do país. Carregando placas com mensagens de protesto contra a situação social vigente, eles seguiam rumo ao Lincoln Memorial, onde se reuniriam para discursar sobre temas como liberdade, trabalho, justiça e a segregação entre negros e brancos, considerada legal por alguns estados sulistas.
À frente da caminhada, que ficou conhecida como “Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade”, seguia um homem negro, forte, de bigode fino e olhos levemente puxados. O traje distinto – um terno escuro com lenço branco na lapela – que ele, o ativista e pacifista Martin Luther King, estava usando, indicava que aquele seria um momento muito importante para o mundo. E foi.
Num discurso que durou mais de onze minutos, Martin falou sobre a discriminação racial que bar- rava as condições de uma vida melhor para os negros nos Estados Unidos e sobre a esperança que ele tinha de, futuramente, ver a desigualdade superada. Com frases célebres que ecoaram pelo mundo, o sermão proferido pelo ativista negro ficou conhecido como I have a dream (Eu tenho um sonho). Um ano depois, a Corte Suprema estadunidense aprovou a Lei dos Direitos Civis, que proibiu a segregação por cor, raça, religião, nacionalidade ou sexo no país, e Martin Luther King recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
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A década 60 do século passado foi um período extremamente conturbado no que se refere às ques- tões sociais, e não era só Luther King que tinha o sonho de acabar com as desigualdades que assolavam o mundo. Em muitos países surgiam manifestações contra as guerras, as ditaduras, o autoritarismo, a discriminação sexual e racial e as questões políticas e econômicas que colocavam em jogo a integridade física e moral das pessoas.
Com o fim da II Guerra Mundial, em 1945, o mundo se viu imerso numa zona de disputas entre as duas grandes superpotências que emergiram no final do conflito. Chamado de Guerra Fria, pois não houve enfrentamentos bélicos diretos entre os dois países, o confronto tinha de um lado a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) defendendo seus interesses socialistas, e do outro, os Estados Unidos, que tentavam estender suas pretensões capitalistas.
Nesse mesmo contexto em que as grandes autoridades mundiais voltavam suas atenções para expandir diferentes formas de domínio e avanço territorial, milhares de pessoas demonstravam um enorme descontentamento com os problemas que delineavam a década de 60, e entre os principais atores desse cenário estavam os jovens.
Movidos por uma grande excitação revolucionária gerada pelo movimento da contracultura – a cultura do não –, eles passaram a contestar tudo aquilo que lhes era imposto. O advento da TV e de outros meios de comunicação de massa possibilitaram o rápido acesso a informação e com isso os valores enraizados pelos meios conservadores passaram a ser questionados.
Mas os anos rebeldes não foram apenas um rompimento com os padrões culturais pré-estabelecidos. A consciência crítica, social e política foi uma grande marca dessa geração, que teve seu auge de visibilidade em 1968. Conhecido como “o ano que não terminou”, foi um período em que inúmeros acontecimentos irromperam e, como consequência, abriram portas para mostrar a força da nova juventude.
O aumento da intervenção dos EUA na Guerra do Vietnã por meio de estratégias brutais, como ataques aéreos e uso de bombas de napalm foi um dos fatos mais marcantes de 1968, assim como o Maio Francês, em que milhares de estudantes saíram às ruas na capital francesa para protestar contra a péssima qualidade do ensino nas escolas e contra os valores moralistas que guiavam o país. Também nesse ano, o assassinato de Martin Luther King nos Estados Unidos e o fim da Primavera de Praga, que propunha reformas políticas e econômicas na Tchecoslováquia – que vivia sob totalitarismo soviético – ganharam notoriedade e a revolta do povo.
Na América Latina da década de 60, a situação social não foi muito diferente. Golpes militares colocaram vários países sob domínio autoritário, suprimindo as liberdades democráticas da popula- ção civil sob o pretexto de conter o avanço das ‘perigosas ideias’ comunistas. A luta ideológica entre as duas vertentes políticas fez com que os EUA passassem a desenvolver políticas de apoio aos países latino americanos para evitar que o comunismo se alastrasse pelo continente – principalmente a partir do exemplo cubano – e assim continuar com seus programas de expansão do capitalismo. Foi o que aconteceu no Brasil.
Após a renúncia de Jânio Quadros (1919-1992), o vice-presidente João Goulart (1919-1976) as- sumiu o poder sob regime parlamentarista, ainda que quase impedido de fazê-lo pelos ministros das Forças Armadas que viam nele uma ameaça comunista para o país. Durante os mais de dois anos do seu governo, Jango implantou projetos nacionalistas de fortalecimento das classes populares, as Re- formas de Base, e se aproximou de países de economia socialista, como Cuba e China, motivos que, associados a uma alta instabilidade econômica no país, culminaram com a retirada de Jango do poder pelos militares.
No dia primeiro de abril de 1964, os brasileiros amanheceram sem saber quem era o presidente do país – e não era mentira. As tropas militares já haviam chegado no Rio de Janeiro para depor o gover- no, que, no dia seguinte, foi substituído provisoriamente pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. O primeiro presidente eleito (indiretamente) para assumir o cargo durante a ditadura militar foi Humberto de Alencar Castello Branco, no dia 15 de abril.
Oito dias após o golpe, os ministros militares decretaram o primeiro dos dezessete Atos Institucionais que emendariam a Constituição e que tornavam legais as ações do governo. O Ato Institucional número 1 (AI-1), institucionalizou, entre outras medidas, as eleições indiretas para Presidente da República, o fim de associações civis, a intervenção em sindicatos e a suspensão dos direitos políticos por dez anos de todas as pessoas que eram vistas como ameaças ao regime. Era o início de uma grande onda de repressão que tomaria conta do país.
Em dezembro de 1968, já no governo do marechal Arthur da Costa e Silva (1902-1969), foi de- cretado o AI-5, o mais radical de todos os atos. Os direitos previstos pelo AI-5 davam ao presidente poderes quase que irrestritos. A intensa radicalização política gerou uma onda de protestos por todo o país, com o enfrentamento direto entre as forças de segurança e os vários setores da sociedade, onde se destacaram principalmente os trabalhadores, os intelectuais, os artistas e os estudantes.
Como em todo mundo, a juventude no Brasil também foi uma peça muito importante na luta contra as atrocidades políticas que se espalhavam por aqui. Em sua maioria estudantes ligados ao movimento estudantil, eles participaram ativamente das agitações contra a ditadura militar, principalmente porque tiveram suas entidades perseguidas pelo governo.
No mesmo dia do golpe, a UNE foi saqueada e queimada pela força de segurança do regime. Logo depois, diretórios e centros acadêmicos foram fechados, e em outubro, a UNE foi extinta com a apro- vação da lei Suplicy de Lacerda. No entanto, ela continuou sendo uma entidade política importante, transformando-se numa das principais forças de oposição ao regime.
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Naquele fim de tarde do dia 9 de outubro de 1968, uma garoa fina e chata caía na cidade de Ibiúna, a 63 quilômetros de São Paulo. De hora em hora, um ou outro veículo parava em um ponto próximo ao sítio Murundu, de onde desciam pequenos grupos de universitários vindos de todas as regiões do Brasil – situação que vinha se repetindo há cerca de dois dias. De Santa Catarina, chegaram, separa- damente, 15 pessoas, entre elas, Derlei Catarina de Luca, uma das três mulheres que representavam a delegação catarinense.
Natural de Içara, Derlei estava em Ibiúna como delegada do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para participar junto com aproximadamente outros 900 estudan- tes do XXX Congresso da UNE, que começaria no dia 12, às 8h30, e iria eleger o novo presidente da entidade.
Com a UNE na ilegalidade, todo o cuidado para manter o encontro alheio aos órgãos do governo era pouco. O transporte dos delegados até Murundu bem como a realização do congresso precisariam de um esquema de segurança estratégico para que as votações ocorressem sem problemas, e o primeiro passo deveria ser dado pelos próprios delegados, que teriam de conseguir chegar até São Paulo – onde se encontrariam com demais estudantes para serem transportados até Ibiúna – sem que fossem captu- rados por agentes do regime. E Derlei encontrou aí o seu primeiro problema.
Ainda que o Congresso da UNE tivesse a intenção de ser clandestino, os rumores de que estava para acontecer uma reunião de universitários foram suficientes para alertar o Estado. Em Florianópolis, o general Vieira da Rosa, secretário de segurança de SC, avisou aos estudantes que a ilha passaria a ser vigiada e ninguém sairia dali em direção ao evento. Dias antes da realização do encontro, a ponte Her- cílio Luz, que liga a ilha ao continente, foi cercada por homens da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Federal.
Procurando uma maneira de atravessar a ponte sem que fosse pega, Derlei foi informada de que por aqueles dias um professor da Universidade faria uma viagem com o carro da reitoria. Era a carona perfeita. Depois de passarem a ponte, o professor deixou a estudante no bairro Estreito, localizado logo após o fim da ponte Colombo Salles, e de lá, ela partiu rumo ao encontro.
Ao chegar em São Paulo, Derlei, que já era militante da Ação Popular (AP), foi para o conjunto residencial da Universidade de São Paulo onde se encontrou com alguns companheiros da AP. Logo depois, saiu para a cidade de São Roque, onde seria apanhada por organizadores do Congresso. Até então, os delegados não sabiam para onde estavam sendo levados.
O trajeto de São Paulo ao sítio Murundu era árduo. Cada participante havia recebido uma senha de identificação e um local pré-determinado pela diretoria da UNE, onde deveria esperar o veículo em que ele e mais alguns estudantes seriam conduzidos até um trecho da estrada. Lá, eram apanhados por caminhonetas, onde continuavam a viagem na carroceria, cobertos por uma lona escura.
As instalações montadas para receber os quase mil estudantes eram visivelmente improvisadas. Além de um espaço coberto por lona para a realização das assembleias, o sítio tinha ainda um alpendre que era utilizado pelos congressistas como dormitório. Devido ao espaço insuficiente, nem todos podiam dormir no galpão ao mesmo tempo e, por isso, precisavam revezar horários com outros grupos.
Não bastasse a precariedade do lugar, a chuva e o frio haviam se tornado insistentes. A terra se transformara num lamaçal espesso e escorregadio e não havia como evitar as quedas e o acúmulo de sujeira nas roupas e no corpo. Uma pequena queda d’água gelada nas dependências do sítio servia como chuveiro.
O movimento incomum na pequena cidade de seis mil habitantes colocou os moradores do muni- cípio em alerta. Com o alto consumo de mantimentos – principalmente pão, leite e carne – e de produtos de higiene no comércio da região, a desconfiança de que algo anormal estava acontecendo não demorou a ocorrer. A denúncia, feita por um dos moradores de Ibiúna, que foi proibido pelos vigias da UNE de chegar até o sítio, confirmaram as suspeitas da polícia, que no dia estipulado para o início do congresso, invadiu o local.
Era por volta das 7h e, como nos dias anteriores, a chuva miúda e o frio permaneciam característicos do encontro. Depois de conversas agitadas que antecederam o início do congresso e de uma noite curta e mal dormida, barulhos de tiros ecoaram pelo acampamento, assustando as cabras e os bodes que já ha- viam se levantado e vagueavam pelo local. Ainda sonolentos, os estudantes tentaram reagir, mas foram contidos pelos barulhos cada vez mais constantes das rajadas atiradas pelos 215 policiais que invadiram Murundu. Alguns participantes conseguiram escapar pela mata que rodeava o sítio.
Depois de cercados, os congressistas foram organizados em filas e encaminhados aos ônibus que os levariam até São Paulo. As mulheres, aproximadamente duzentas, seguiram em veículos separados, e, aos poucos, começaram a jogar para fora do ônibus bilhetes improvisados com papel de bala e batom, avisando que estudantes haviam sido presos em Ibiúna. Quando chegaram ao destino final, o presídio Tiradentes, por volta das seis da tarde, muitos familiares e conhecidos já estavam à espera dos jovens. Luís Travassos, presidente da UNE, José Dirceu, presidente da União Estadual dos Estudantes e Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana de Estudantes, foram levados diretamente ao DOPS.
Presa com outras estudantes numa cela de cerca de 50 metros quadrados, Derlei esperou quase dez dias para que fosse retirada de Tiradentes. A pedido do general Vieira da Rosa, o delegado do Departa- mento de Ordem Política e Social de Santa Catarina viajou até São Paulo e libertou os 13 catarinenses que haviam participado do XXX Congresso da UNE. Cara a cara com os estudantes, ele provocou:
– Vocês realmente acharam que iriam conseguir fazer um congresso com 900 pessoas sem que a polícia ficasse sabendo?
Sem que ninguém respondesse, o delegado mandou que o seguissem para fora de Tiradentes. En- quanto andavam em fila indiana pelos corredores, Derlei pensou: “Pelo menos tentamos”.
Na saída do presídio, uma caminhoneta Willys, uma Kombi e um carro da polícia esperavam os jovens que, algemados, foram sendo colocados um a um nos carros disponíveis. Derlei e a outra garota do grupo foram mandadas para a Willys, enquanto os rapazes foram distribuídos entre os outros dois automóveis.
Três horas depois de saírem de São Paulo, os carros pararam em um restaurante de Registro, sul da capital paulista. A presença de treze pessoas algemadas, carros de polícia e soldados causou um certo al- voroço entre os clientes que já se encontravam no recinto. De olhos enviesados, começaram a disfarçar as conversas, o que deixou o clima do ambiente ainda mais hostil. Sentaram-se ao redor de uma mesa e o delegado mandou trazer o almoço.
Com a chegada dos pratos, Derlei e os colegas se olharam por um tempo e começaram a rir. Sem en- tender o que se passava, o delegado os olhou assustado, na expectativa de que os estudantes estivessem tramando alguma coisa. Segundos depois, deu um leve sorriso e ordenou a um dos soldados:
– Eles precisam comer, né? Tira as algemas deles.
Apesar de pertencerem a um órgão da repressão, os agentes não repreenderam os congressistas du- rante o trajeto de volta para Florianópolis. “A polícia daqui não era uma polícia fascista, e nós, em momento algum, ficamos com medo de que eles nos fizessem algo de mal. E isso é uma coisa que ainda me intriga. Até hoje fico me perguntando se essa falta de medo, essa sensação de aventura era por causa da idade ou porque estávamos em conjunto”. Durante todo o resto do percurso, os 13 estudantes ficaram com as mãos livres.
Derlei ainda era caloura do Curso de Pedagogia da UFSC quando, em 1966, foi convidada pelo amigo Divo Ghizoni, atual secretário estadual de organização do Partido Comunista do Brasil, a se juntar aos militantes da Ação Popular, organização política criada em 1962 por várias agremiações católicas, que pregava um socialismo humanista com a participação de camponeses e operários.
Em Florianópolis, a AP tinha 22 membros, todos cursando a Universidade ou o Instituto Estadual de Educação. Com os partidos dissolvidos pelo AI-2, os encontros não tinham um lugar definido. Às vezes se reuniam nas praias, outras, em casas emprestadas.
A primeira atividade de Derlei como integrante da Ação Popular foi dirigir um grupo de estudantes secundaristas do Instituto ligados ao movimento estudantil do estado. A segunda veio em dezembro de 1968, logo depois da vigência do AI-5 – o mais severo Ato estabelecido e que deu poderes quase absolutos ao regime militar – e da consequente entrada dela na clandestinidade.
O esquema de organização interna da AP, assim com dos outros partidos políticos que atuaram na ilegalidade durante o regime, era minucioso. Fora as direções nacional e estaduais, existiam também as direções seccionais, subordinadas a cada estado, e os núcleos de base, que eram regidos pelas seccionais. Além disso, o partido era composto por três movimentos: o operário, que era a classe dirigente, o cam- ponês, considerado a força motriz da organização, e o movimento estudantil, que compunha a maior parte dos integrantes do partido, na época com aproximadamente três mil militantes.
Por ser a AP comandada majoritariamente por operários e camponeses, os membros da organização deveriam se infiltrar de maneira direta no universo dessas forças, para que a militância passasse a ter um sentido concreto. Por isso, em janeiro de 1969, Derlei mudou-se para Curitiba, onde, com o nome de Deise Campos, trabalhou em uma fábrica de tecidos até junho de 1969, quando foi deslocada para São Paulo para fazer a integração entre as direções nacional, estaduais e seccionais da AP.
A noite estava calma. O clima agradável daquele fim de novembro parecia descontrair ainda mais o ambiente da lanchonete na Rua Vergueiros, em São Paulo. Numa das mesas, um casal tomava guaraná enquanto, entre goles, conversavam sobre um assunto em que pareciam não concordar. Ela ria timidamente.
Encarando a jovem de pele clara e cabelos castanhos, o rapaz, meio sem jeito, tentava persuadi-la: – Eu estou apaixonado por você. Vamos namorar, vamos morar juntos.
– Olha, Zé, eu gosto bastante de ti, mas como amigo. Nada mais que isso, disse a garota sem resistência.
O rapaz continuou a insistir e o diálogo ainda fluía no mesmo sentido quando, de repente, a polícia entrou no bar.
– Documentos, todo mundo mostrando os documentos.
O casal, José Carlos Zanetti e Derlei, se entreolhou. Amedrontados com o desfecho que aquele encontro poderia tomar, tornaram-se cúmplices de um crime forçado. Além do pedido de namoro, Zé, que também era membro da AP, fora encontrar Derlei para entregá-la o novo documento ela passaria a usar em São Paulo e receber uma pasta, com programas de partidos políticos de esquerda internacionais, que estava com a companheira.
Não bastasse o susto, na parede da lanchonete havia um cartaz com fotos de alguns “terroristas” pro- curados pela polícia, e nele estava o retrato de Maria Aparecida Costa, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), procurada por participar de assaltos em bancos. Maria Aparecida tinha pele clara e cabelos castanhos.
Ao abordarem a mesa da dupla, um policial olhou para Zé e, inclinando a cabeça em direção a Der- lei, foi logo perguntado
– Você conhece essa moça aí?
– Não, eu apenas a convidei para tomar um guaraná.
Enquanto a viatura se dirigia para o local, os policiais algemaram Derlei e a levaram junto com Zanetti para a porta da lanchonete. Numa esquivada rápida, Zé, que ainda estava sem algemas, conseguiu fugir, e Derlei foi levada para um quartel da polícia militar. “Ali começou o meu massacre. Claro que viria coisa muito pior depois, mas foi no quartel que eu levei as primeiras ‘porradas’. Nem me interrogaram. Só queriam saber de como funcionava a célula onde eu estava metida. A polícia não era inteligente naquela época”.
Foi também sob tapas e golpes que Derlei foi levada logo em seguida para a Operação Bandeirantes (Oban), responsável por coordenar as atividades dos diversos órgãos encarregados da repressão à sub- versão e ao terrorismo no país. Para os policiais, não era Derlei Catarina de Luca – por acaso, ela estava usando a identidade verdadeira – que chegava. Era Maria Aparecida Costa, a loira dos assaltos. Um infeliz equívoco que ajudou a tornar ainda mais insuportável sua primeira noite na Oban.
Lá, não havia necessidade de fotos e impressões digitais. Sem registro, podiam atuar à vontade que ninguém ficaria sabendo. Por isso, assim que chegaram ao prédio, arrancaram as roupas da presa e a levaram para o segundo andar. Estava sob o comando do capitão Homero César Machado.
A sala era pequena. No meio dela apenas um cavalete e uma barra de ferro. No chão e nas paredes, havia manchas de sangue, que intimidavam os interrogados. Nua, colocaram-na no “pau de arara”. A cada informação que dizia não saber, uma dor a mais penetrava em seu corpo. Choques elétricos nos dedos, no ouvido e na vagina, cacetadas na cabeça, socos na boca e nos seios. A dor era dilacerante.
Era alta madrugada quando, já entorpecida, os torturadores a tiraram do pau. Um preso político que era médico a examinou e mandou que a enfaixassem. Estava em frangalhos! Em seguida, carregada pelas pernas e pelos braços, foi levada para a cela, de onde voltou para outra câmara de tortura dezoito horas depois. Desta vez, para conhecer a “cadeira do dragão”, numa salinha ao lado daquela em que fora torturada pela primeira vez.
No fim da noite de 25 de novembro, o corpo da torturada havia sucumbido aos choques e aos socos e já não respondia mais. Sob ordens do capitão Dalmo Cirillo, ela foi transferida para o Hospital Militar de Cambuci. Era uma tentativa de isenção. Cirillo não queria se responsabilizar pela morte daquela “terrorista”.
Cerca de uma semana depois, quando já tinha saído do hospital e voltado para a Oban, Derlei re- cebeu a notícia da prisão de Maria Aparecida no Rio de Janeiro. Antes de avisarem-na, Lourival Gaeta, agente da Polícia Federal, dirigiu-se até o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e fez uma pesquisa a respeito da cidade natal de Derlei. Estrategicamente, anotou num pedaço de papel o nome do prefeito e do padre do município, e voltou para o prédio.
Lá, avisou Valdir Coelho, comandante da operação, que chamou a catarinense para a sala de interrogatório.
– Então tá. Ao que parece você é mesmo a Derlei Catarina de Luca nascida em Içara, não é? Sem deixar que ela o respondesse, continuou.
– Me diz então o nome do prefeito e do padre lá da tua cidade.
– Ascendino Pavei e Bernardo Junkes, respondeu Derlei sem hesitar.
– E por que você não avisou que tinha participado do congresso de Ibiúna?
Sua ficha no DOPS também havia sido investigada por Gaeta.
– Por que ninguém me perguntou. Queriam saber a respeito da Maria Aparecida. Não acreditaram que eu não era ela.
Nessa mesma noite, Derlei recebeu “um castigo” pela mentira. A cadeira do dragão a esperava novamente. As perguntas eram vagas, ela não sabia do que estavam falando, e as repostas negativas enfureciam os torturadores, que não economizavam os golpes, as porradas e os choques. As mãos sobre uma mesa, recebiam palmatórias [espécie de raquete de madeira, usado para bater nas pessoas]. Passaram a insistir na pessoa que a acompanhava na noite da prisão, de quem a presa realmente não tinha informações. A dor insuportável, que parecia preceder a morte, voltava outra vez.
Na véspera de Natal, há pouco mais de um mês da sua entrada na Oban, Derlei tomou o primeiro banho desde que chegara ali, uma tarefa relativamente difícil, pois mal conseguia segurar o sabonete. Em seguida, foi encaminhada para uma cela coletiva. A presença de outras mulheres era um certo alívio. No mesmo compartimento, estava Maria Aparecida Costa. Realmente, elas se pareciam.
Em janeiro de 1970, Derlei foi liberada. Antes, no entanto, passou pelo DOPS onde permaneceu por cerca de 15 dias e não foi torturada.
No ônibus de volta para Florianópolis, ela ainda sentia dores na perna quebrada e nas feridas da cabeça. Percorreu o trajeto todo sem descer do ônibus nem olhar para ninguém. Ao chegar em Criciúma, cidade vizinha, ela decidiu seguir a pé os dez quilômetros que levam até Içara. No meio do caminho, dois conhecidos a encontram e a levam até a cidade de carro.
O reencontro com a família é emocionante. A mãe chorou ao ver o estado da filha, e com os outros parentes, a reação foi a mesma. Apesar da sensação de segurança que há anos não sentia, Derlei precisa- va voltar para Florianópolis e continuar suas atividades. Não largaria a AP. No dia seguinte, partiu para a capital catarinense, onde ficou por vinte dias, até ser mandada para realizar compromissos na Bahia, cidade em que chega na sexta-feira Santa de 1970.
Em Salvador, Derlei passou a se chamar Maria Luisa. Continuou a fazer as integrações do partido, retomou a vivacidade e no dia 17 de julho se casou com César sem comunicar a família. Engravidou . Ele era agrônomo e não participava de nenhuma organização política, mas aceitava os trabalhos da esposa. Com o cerco da repressão apertando na Bahia, César largou o emprego e os dois foram embora para Londrina, onde ele acabou sendo preso por ter sido amante da comunista Derlei Catarina de Luca. A vida de Derlei passaria a ser um inferno.
Em dois anos, ela teve que, longe do filho – com a família em Içara – e do marido, vaguear pelo Rio de Janeiro e por Florianópolis, sempre na expectativa de que pudesse ser capturada. Em junho de 1972, teve no entanto, que deixar o país. O ex-marido estava ajudando os policiais na busca pela mulher.
A militante da AP entrou no Chile com a ajuda de José Serra, ex-presidente da UNE, exilado no país desde 1965. Aos poucos, ela ia tentando retomar uma vida normal, ainda que os problemas psi- cológicos insistissem em mantê-la atordoada, como se ainda vivesse no Brasil. Atenta a toda a situação política do Chile, ela tinha certeza que a qualquer momento o país também cairia num regime militar, o que realmente não demorou muito a acontecer.
Na manhã do dia 11 de setembro de 1973, Derlei foi comprar leite enquanto seu colega Betinho se dirigia até o aeroporto para buscar a mãe, a irmã e o filho da catarinense, que estavam para chegar. A felicidade em ver a família era algo que ela não podia descrever, mas, infelizmente, não demorou muito. Naquela mesma manhã, Salvador Allende, presidente chileno, fora assassinado e o general Augusto Pinochet tomara o poder. Logo em seguida, começou a perseguição aos estrangeiros exilados, que atuavam politicamente no país.
No dia seguinte ao golpe, José Pedro e a avó foram abrigados em um refúgio das Nações Unidas. A embaixada do Brasil negou receber qualquer brasileiro, independente se fosse ou não exilado político. Derlei encaminhou-se para a embaixada do Panamá e logo depois para a cidade de Las Tablas, cidade panamenha, de onde um mês depois, seguiu para Cuba. A volta para o Brasil só aconteceu em 1979, com a promulgação da Lei da Anistia.
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Derlei não foi um caso isolado ao incorporar a luta contra a ditadura a partir do movimento estudantil. Como ela, milhares de pessoas tiveram seus primeiros contatos com a militância política nas escolas de ensino secundário ou nas universidades do país.
Mesmo com o fechamento das entidades estudantis, como a UNE e UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundários) em 1964, essas organizações continuaram a realizar passeatas e manifestações, que sempre acabavam sendo encampadas por civis simpatizantes às causas estudantis.
Muitos desses alunos também se incorporaram a outras organizações de resistência ao regime. Para a historiadora Maria Paula de Araújo, os partidos Ação Popular e Dissidência Comunista da Guanabara (DC-GB), que mais tarde se tornaria o Movimento Revolucionário 8 de Outubro “foram as duas grandes forças que disputaram a liderança do movimento estudantil nacional entre 1966 e 1968”.
Entre massacres, prisões e mortes, os estudantes, não só do Brasil como do mundo todo, foram peças importantes para a retomada de valores e direitos suprimidos pelos governos autoritários. Tomados por uma ânsia revolucionária e contrários a tudo aquilo que os impedia de seguir em frente, eles desafiaram a sociedade, quebraram tabus, lutaram como nunca haviam feito. Tornaram-se o centro das resistências e sofreram por isso.
Sobre esse cenário, Derlei reflete, rememorando o que ocorria no Brasil.
– Nós respondemos ao momento histórico em que vivíamos. Naquele momento tínhamos de questionar o governo ditatorial, denunciar a Guerra do Vietnã, lutar pela redemocratização. Hoje temos outras tarefas, é claro. O momento é outro. Cada geração tem um papel e o nosso era responder ao que estava acontecendo naquele momento. E foi o que a gente fez.
* Esse é o primeiro capítulo do livro INSURGENTES – A história de três mulheres que desafiaram a ditadura no Brasil, da jornalista Angieli Fabrizia Maros.
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