Faltavam quinze dias para o primeiro turno das eleições presidenciais de 2010. O relógio marcava duas horas em ponto quando atravessei o parque Jardim da Luz, em São Paulo, apressada para chegar na Estação Pinacoteca. O atraso – provocado por imprevistos no metrô – já passava de trinta minutos.
O clima estava abafado e o sol, tímido, já se encontrava quase todo encoberto pelas nuvens carregadas que chegavam anunciando um resto de tarde chuvoso. A mochila pesada me doía as costas e o meu cabelo grudava na nuca empapada de suor. Com as duas mãos ocupadas, não tinha como prendê-lo para o alto. Bufando de cansaço, chego enfim na Estação.
– Oi, eu vim entrevistar uma pessoa que está me esperando no Memorial da Resistência. Em qual sala que fica?
O guarda ri num tom amigável e me olha com uma certa compaixão, como se soubesse dos con- tratempos que eu tive para chegar até ali.
– Eu sei que você está cansada, mas vai ter que andar um pouquinho mais para chegar até lá. Aqui é o museu. A Estação fica logo em frente. Segue a rua Praça da Luz, vira à direita e vai em direção ao Largo General Osório. É menos de um quilômetro, dá uns dez minutos.
Qualquer cinquenta metros pra mim já era um suplício. Minha última refeição havia sido no café da manhã e, se a entrevista ocorresse como eu esperava, não iria comer nada antes das 18h. Olhei decepcionada para o guarda e agradeci. Antes, coloquei os livros e garrafa d’água no muro da escada e prendi meus cabelos com um elástico vermelho e desgastado que estava no fundo do bolso da calça jeans. Minutos depois ele arrebentou.
O edifício que hoje ocupa a Estação Pinacoteca foi construído em 1914 para abrigar armazéns e escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana. Em 1938, com as novas instalações da companhia ferroviária, o prédio ficou sob a tutela estadual, que dois anos mais tarde instalou no local o Departamento de Ordem Política e Social paulista.
Criado no governo Getúlio Vargas para reprimir as manifestações políticas contra o Estado Novo, o DOPS – ou DEOPS, como também é conhecido – se transformou em um dos maiores instrumentos de repressão política durante a ditadura militar. Nesse período, destacou-se o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que se tornou o agente mais célebre do departamento, por comandar o Esquadrão da Morte, um grupo de homens que executavam brutalmente as torturas e as buscas pelos adversários da ditadura.
Ter conhecimento de pelo menos boa parte das atrocidades que ocorreram dentro daquele prédio entre 1964 e 1985 causa uma certa angústia quando se entra ali. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. Assim que os primeiros pingos de chuva começaram a cair na cidade, cheguei à porta de entrada da Estação, no Largo General Osório. O edifício é, sem dúvida, imponente, e para quem olha de fora não consegue imaginar que algo tão suntuoso tenha abrigado um dos piores centros de tortura e repressão do país.
São quatro andares construídos com tijolos maciços e dezenas de janelas em arco branco distribuídos simetricamente pela fachada, revelando um ar mais curioso do que propriamente medonho. Lá dentro, o chão de tábuas estreitas e claras cuidadosamente enceradas já não tem mais marcas de sangue espalhado, bem como as paredes brancas e limpas, mas ainda assim carrega o peso de uma história que não tem como encobrir.
Depois de atravessar a porta, paro, tentando reconstruir detalhes que sei a respeito do antigo DOPS, mas são muito poucos comparados à imensidão do local e me perco já na primeira tentativa.
Uma moça de cabelos negros e de gestos rápidos me sorri e entrega o bilhete de entrada. – Quanto é?, pergunto revirando a carteira quase vazia.
– Nada não. É gratuito.
De uma porta na lateral esquerda vem o cheiro de café fresco, o que me deixa enjoada. O acesso à direita leva para o Memorial da Resistência. Dirijo-me para lá, varro as salas com um olhar apurado e não encontro ninguém, fora um grupo de jovens amigos que faz pose para um retrato e os seguranças, vestidos com elegantes ternos pretos . “Na certa ela já foi embora”, penso. Tiro a máquina da bolsa e começo a fotografar algumas obras de Elifas Andreato, artista paranaense que fez da arte uma forma de protesto contra o regime militar.
Alguns minutos depois, gargalhadas contínuas vindas do estacionamento me chamam a atenção. Diva Burnier, loira, miúda e aparentemente frágil, com quem eu havia falado por um longo tempo no dia anterior, conversa com uma mulher de cabelos lisos e arroxeados até o ombro que, apesar do calor, vestia uma calça preta, um casaco escuro e um lenço vermelho enrolado no pescoço. Só conheço Rose Nogueira, a minha entrevistada, por telefone, mas sei que é ela quem está ali.
Apareço na porta timidamente. Diva me reconhece e vem ao meu encontro com um abraço. Em seguida, Rose também me cumprimenta da mesma forma.
– Ah, que bom que você veio, diz ela sorridente. Só peço desculpas porque o Rodolpho está atras- ado e nossa entrevista vai atrasar também. Mas com ele o negócio vai ser rápido, só uns depoimentos mesmo.
Rose decidiu se encontrar comigo no Memorial da Resistência naquela tarde do dia 17 de setembro porque Diva e ela foram convidadas pelo jornalista Rodolpho Gamberini para gravar um depoimento sobre a estadia de Dilma Roussef, candidata à presidência do Brasil, no DOPS. A candidata passou pelo Departamento na mesma época que as duas mulheres. Caso Dilma vencesse as eleições, o pro- grama, SBT Repórter, mostraria a trajetória da primeira mulher a se eleger presidente no Brasil.
***
A jornalista Rose Nogueira chegou ao DOPS na tarde do dia 4 de novembro de 1969, aos 23 anos. Na noite anterior, estava em casa com o marido Luiz Roberto Clauset e o filho Carlos, o Cacá, de apenas 35 dias, quando a campainha tocou. Ao abrir a porta, o frei Fernando de Brito, algemado, foi empurrado para dentro do apartamento pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que entrou na companhia de mais alguns policiais.
A casa foi completamente revirada. Prenderam Clauset, mas não levaram Rose já naquela noite porque ela teimou em não deixar o filho no juizado de menores.
– O bebê, não vai. E eu só vou com vocês se puder deixá-lo com a minha família. – Terrorista não tem família e não deve ter nem filho, respondeu Fleury.
– Mas eu não sou terrorista.
Depois de muito insistir, o delegado perguntou:
– Onde moram os seus pais?
– Na Vila Olímpia
– Muito longe. Tem alguém que more mais perto?
– Meus sogros. Moram na rua Rego de Freitas.
– Eu vou pensar nisso. Amanhã eu volto, disse o delegado, um dos mais temidos do país. Mandou dois policias algemarem a jornalista no braço de madeira do sofá e que ficassem tomando conta do apartamento. Nesta mesma noite, foram presos o fotógrafo do Jornal do Bairro e um homem que acabara de vender para o casal um Fusca bordô novo. Ambos foram até o apartamento falar com Clauset e nenhum deles tinha relação com o que estava acontecendo. O zelador do prédio, que não havia registrado as visitas de Frei Fernando e Carlos Marighella, também foi detido.
Rose pertencia à Ação Libertadora Nacional (ALN) há cerca de dois anos, mas não era militante ativa. Ela e o marido, também jornalista, formavam uma base de apoio logístico. Além de reuniões, eles cediam o apartamento para abrigar pessoas ligadas ao partido, como os dominicanos – Frei Betto, Fernando de Brito, Ivo Lesbaupin, Ratton, Magno e Tito de Alencar Lima, que apoiavam combates contra a ditadura militar– e Carlos Marighella. “Por mais que eu fosse da ALN, eu nunca participei de ação armada, de nada disso. Na minha casa sempre havia reuniões, mas como eu estava grávida, então nem participava. A hora que começavam os encontros, eu ia para o quarto”.
Durante aquela noite, os policiais só soltaram Rose do sofá para que ela pudesse amamentar o filho. Na tarde do dia seguinte, o delegado voltou para buscá-la e mandou que arrumasse as coisas do bebê. Iriam levá-lo para a casa dos avós paternos.
Acompanhada do delegado, Rose chegou na casa dos pais de Clauset. Eles não estavam, apenas a empregada, mineira simpática, veio recebê-los e nada percebeu.
– Escreve um bilhete aí e diz para os teus sogros que você foi acompanhar uma amiga no hospital que está operando a garganta, mandou.
– Eles não vão acreditar.
– Escreve aí., ordenou.
Além do recado, Rose também pediu para descrever no bilhete a receita da mamadeira de Cacá, tentando permanecer na casa o maior tempo possível na esperança de que os pais de Clauset chegas- sem. O delegado concordou, mas eles não apareceram. Arrasada, ela deixou o bebê com a faxineira e, em seguida, foi levada para o DOPS.
As quatro celas de aproximadamente doze metros quadrados do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo ficavam ao lado esquerdo de um corredor não muito extenso. No interior dos com- partimentos, as paredes bicolores – cinza escuro na metade inferior e um tom bege logo acima – pareciam páginas de um diário coletivo, onde em cada canto podiam-se ler frases e pensamentos deixados pelos presos. Era praticamente impossível ser jogado ali dentro e sair sem deixar um rabisco qualquer.
No meio da cela, uma coluna verde, redonda e grossa erguia-se imponente como herança da arquitetura original acompanhando a extensão do pé direito, alto. Em cima do chão de tábuas largas, um ou dois colchões de palha, e nos fundos, uma pia, um vaso sanitário e um varal improvisado.
Da única janela, que ficava no alto da parede, filetes de água escorriam em dias de chuva, motivo que levou muitos presos a acreditarem que estavam retidos no subsolo. Engano, estavam no térreo e conseguiram comprovar isso quando o DOPS foi extinto. Além dos compartimentos coletivos, havia ainda os do “fundão”, que eram isolados, não recebiam luz e tinham espaço apenas para um colchão e uma privada.
Depois de tirar fotos e ceder as impressões digitais para a ficha, Rose foi levada para a cela quatro do “fundão”. Ainda que fosse uma cela solitária, lá também estavam Ana Wilma e Tiana, ambas militantes da ALN, presas naquele mesmo dia.
Já haviam recebido o jantar, que voltara intacto, quando por volta das dez horas o marasmo das celas foi cortado por gritos eufóricos, que contrastavam com os habituais brados de horror que ecoavam por aquele prédio. Carregando nos braços uma batina de frade e nas mãos uma Bíblia, Raul Ferreira, um dos fiéis seguidores de Fleury, chegou afoito no corredor e começou a cantar:
– Olê, olê, olê, olá, o Marighella se fodeu foi no jantar!
O principal dirigente da ALN havia caído, e ninguém ali conseguia acreditar.
***
Carlos Marighella nasceu no dia 5 de novembro de 1911, na cidade de Salvador (BA). No início dos anos 30, vinculou-se ao Partido Comunista Brasileiro – o partidão –, a ala mais radical da política nacional na época, e em 1936, sem concluir o curso de Engenharia na Escola Politécnica, mudou-se para o Rio de Janeiro com o intuito de ajudar na articulação do partido.
Entre prisões, discussões, um mandato de deputado federal na Bahia e o casamento com a judia
Clara Charf, Marighella seguiu militando no PCdoB até 1967. Com as divergências internas do Par- tido, que não aceitava a possibilidade da luta armada como alternativa no combate à ditadura – visão que Marighella passou a defender após participar da reunião da Organização Latino Americana de Sol- idariedade, em Cuba – , as cisões se tornaram inevitáveis e deram início a novas organizações políticas. Entre elas, estava a Ação Libertadora Nacional, chamada inicialmente de Agrupamento Comunista de São Paulo, que tinha Marighella como o principal dirigente.
A ALN foi uma das mais notórias organizações que surgiram contra a ditadura militar. Ficou na- cionalmente conhecida por seus assaltos a bancos e a carros-fortes feitos para arrecadar dinheiro para a militância, e também pelo sequestro do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, realizado em parceria com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) no dia 4 de setembro de 1969, com o qual os militantes conseguiram a libertação de 15 presos políticos.
Após uma intensa perseguição aos membros da ALN, o DOPS conseguiu desmembrar articulações até chegar em Marighella. Na noite do dia 4 de novembro, enquanto se dirigia até o carro onde estavam os padres dominicanos Yves Lesbaupin e Fernando de Brito, que o esperavam para um ponto, Marighel- la foi morto com quatro tiros. Os dominicanos haviam sido rendidos e durante uma sessão de tortura entregaram o encontro que teriam com o dirigente. O assassinato de um dos principais inimigos da ditadura, para alívio dos delegados, tinha enfim dado certo.
“Essa com certeza foi a pior noite pra mim enquanto estive presa. A hora em que os tiras entraram no corredor gritando ‘matamos o chefe’, ‘o chefe de vocês está morto’, Ana Wilma, Tiana e eu não acreditamos, até que chegou Makiko Kishi, fotógrafa que havia trabalhado comigo na Folha da Tarde e foi presa tentando fotografar o lugar onde Marighella foi assassinado, e confirmou. Além disso, eu tinha acabado de me separar de Cacá. Foi uma dor brutal”.
***
Com a chegada de uma multidão barulhenta de jovens que se aglomerou próximo às mesinhas de um café no Shopping Frei Caneca onde Rose e eu conversávamos, ela decidiu que seria melhor irmos para algum lugar mais tranqüilo: a casa dela.
Enquanto andávamos pelos corredores do shopping, olhando apressadamente algumas vitrinas, ela entrou numa loja, retirou da arara um vestido preto de bordados cor-de-rosa e mirou-se no espelho.
– Esse vestido vai ser perfeito para o baile de posse da Dilma, disse numa risada nostálgica e, olhando para a vendedora, falou:
– Mês que vem eu passo para comprar.
Assim que o táxi parou em frente a sua casa, uma das muitas que ainda resistem às grandes construtoras no bairro Perdizes, Requinho e Pretinha apontaram na janela. Os dois filhos vira-latas de Rose não se continham de tanta felicidade ao avistar a dona e pareciam odiar o vidro naquele momento, que os impedia de correr direto para os braços da dona. Quando entramos, pularam e nos cheiraram por alguns segundos e depois correram em direção à cozinha. Fomos atrás.
Enquanto eu tomava um copo d’água e admirava os azulejos portugueses que decoravam aquele cô- modo da casa, Rose abriu uma grande porta branca aos fundos e me chamou para acompanhá-la. Logo abaixo da pequena varanda onde ela estava, um jardim repleto de flores e árvores frutíferas parecia uma ilusão em meio à tanto concreto que eu vira durante todo o dia. Ainda que estivesse escuro – já passava das oito da noite – o lugar parecia ter iluminação própria. Rose se agacha, pega um vaso e me explica:
– Quando você tiver planta em vaso, nunca tire os matos que crescem ao redor dela. É só colocar lá fora que os pássaros vêm e tiram para fazer ninhos. Ali mesmo, diz ela apontando para um enorme pé de goiaba, tem um monte.
Acompanho o seu dedo, mas não consigo ver nada por causa do breu. No entanto, ao lado da árvore, pregada no muro de tijolos, enxergo uma placa azul que traz escrito em letras brancas “Praça Che Guevara”. Concordo que não poderia haver melhor nome para o jardim.
Depois de conversas amenas, voltamos para a sala para continuar a entrevista. Rose liga a televisão para acompanhar relances da novela, se acomoda na poltrona ao lado do sofá onde estou sentada e desabafa:
– Sabe, sempre é muito difícil falar dessa minha história, mas hoje vai ser pior porque eu estou alegre com a possibilidade da vitória da Dilma [Rousseff ] e não queria ficar triste. Isso mexe muito comigo. Ela passou por coisas muito piores do que eu, mas sempre mantinha a cabeça levantada e dizia pra gente que um dia todos iríamos sair daquelas celas, que um dia a ditadura ia acabar, mas o Brasil continuaria, e era por isso que estávamos lá, porque lutávamos pelo Brasil. Ela sempre foi muito pelo nosso país e merece a presidência mais do que ninguém, porque ela sofreu muito dentro do DOPS.
Rose ficou presa no Departamento de Ordem Política e Social paulista por cerca de cinquenta dias. O “clic clac” do engate e desengate dos vagões que chegavam a toda hora na estação Sorocabana havia se tornado insuportável, bem como o cheiro azedo do leite que não parava de escorrer de seus peitos e que já havia se impregnado no vestido-envelope de tecido xadrez preto e vermelho que ela usava desde que chegara ao local. Além disso, a enorme quantidade de sangue que escorria por entre suas pernas, normal após o nascimento de um bebê, se tornava cada vez mais intenso e a única coisa que ela tinha ao alcance para estancá-lo era papel higiênico. O fedor tornava-se demasiado e não podia tomar banho, só se limpar com a água da pequena pia que havia na cela.
Alguns dias depois de ser presa, um policial veio buscá-la para os tradicionais interrogatórios. En- quanto ela andava na frente, o tira que a seguia gritava num tom sarcástico:
– Vamos Miss Brasil. Anda, sua vaca terrorista!
Naquela semana de novembro, um concurso realizado no parque Água Branca, em São Paulo, havia premiado uma vaca leiteira cujo nome era Miss Brasil. A notícia fora publicada em vários jornais da cidade e não faltou motivação para que a jornalista começasse a ser chamada pelo mesmo nome do animal, já que ainda produzia leite.
Quando entrou na sala naquele dia, Fleury arrancou-lhe o vestido, mostrou-lhe um dos jornais que noticiava o fato e começou a rasgá-lo. Enquanto Rose sangrava e o leite de seu peito escorria, João Car- los Tralli, investigador da Polícia Federal, começou a se masturbar. Davam-lhe beliscões, espancavam- na e a xingavam pelo odor que exalava de seu corpo. Depois de rasgar todo o jornal, Fleury e os demais agentes que se encontravam na sala, esfregaram, abusados, os pedaços da página por todo o corpo nu e machucado de Rose, até acabarem com o papel.
Em outra situação, Rose esperava na sala a volta de uma companheira que havia subido para um interrogatório. Quando ela chegou, olhou assustada para a colega ali sentada.
– O seu bebê tem, por um acaso, tem um moisés azul?
Rose estremeceu. O medo de que fizessem alguma coisa contra o filho a perturbou tanto, que rabis- cou na parede: “Estão com meu bebê lá em cima”.
E o bebê realmente estivera. Por três vezes seguidas, os pais de Clauset foram chamados para levar Cacá, sob a alegação de que a mãe iria vê-lo. Nas duas primeiras visitas, o casal passou o dia no DOPS sem que Rose aparecesse. Na terceira vez, tanto ela quanto o marido foram liberados para a visita. Os pais da jornalista também estavam lá.
Alguns dias antes de ser encaminhada para o presídio Tiradentes, Rose foi levada para a carceragem. Na sala, havia uma bandeja de alumínio com várias seringas, e um homem, todo vestido de branco, pegou um dos instrumentos e começou a preparar uma injeção. Depois de pronta, ele avisou:
– Vou te dar uma injeção pra secar esse leite. Já tá na hora.
Apavorada, ela jogou a bandeja e se recusou a tomar.
– Eu não sei o que é isso. Pode muito bem ser hepatite que vocês estão me passando. Eu não quero tomar, disse Rose, pensando que, enquanto estivesse produzindo leite era sinal de que ainda teria alguma ligação com seu filho.
Com a reação da mulher, o enfermeiro chamou um tira que estava perto da sala. O homem entrou imediatamente, pegou uma cadeira e jogou-a com toda força na parede, quebrando-a.
– Cala boca aí e toma essa injeção.
Antes de ir para Tiradentes, Rose já não tinha mais leite em seus peitos. E nunca mais teria. Quando chegou no presídio, um médico a avisou que a infecção que pegara enquanto estivera no DOPS, por causa da injeção e da falta de higiene, resultaram em esterilidade.
***
O Recolhimento de Presos Tiradentes, nome verdadeiro do presídio, foi construído em meados do século XIX para servir de casa de detenção e depósito de escravos. Em 1937, com a implantação do Estado Novo, o local começou a receber opositores do governo de Getúlio Vargas até 1945, com o fim do primeiro mandato do político gaúcho. Em 1969, voltou a atuar como cadeia de presos políticos. Os primeiros “subversivos” a serem presos no Tiradentes foram os operários grevistas de Osasco e estudantes do XXX Congresso da UNE , em 1968.
Rose saiu do DOPS em direção ao presídio Tiradentes em dezembro de 1969. A viagem, feita em uma temida Veraneio, foi curta, pois os dois edifícios ficavam a menos de dois quilômetros de distância. Ao chegar no prédio, ela foi entregue para uma carcereira que a revistou e depois a acompanhou até a cela onde Rose ficaria.
O caminho entre a sala da carceragem e a torre – para onde as presas políticas eram levadas – era um longo corredor descoberto, cercado de um lado por um enorme muro e, do outro, pelas grades que fechavam as celas das “corrós” , as putas.
Enquanto caminhavam pelo corredor, as detentas gritavam:
– Terrorista linda! Vem aqui me dar um beijo.
A carcereira virou-se e mandou que ficassem quietas.
– Essa aqui é terrorista. Gente fina, não é pro bico de vocês não.
Ao final da escadaria que dava acesso à torre, Rose viu uma grande cela à esquerda onde estavam Dulce Maria, a primeira mulher a ser presa em Tiradentes, acompanhada de uma freira. Na cela da frente, para onde ela foi levada, estavam as outras dez mulheres.
Os dias no presídio Tiradentes passavam arrastados. Não havia encontros com carcereiros, nem subidas para interrogatórios, apenas a chegada frequente de novas companheiras. Para preencher as horas, eles cuidavam da limpeza das celas, cozinhavam, faziam ginástica, liam livros, estudavam em gru- pos, pintavam, tricotavam. Durante os jogos da Copa de 70, no mês de julho, ganharam uma televisão por onde podiam acompanhar os jogos.
Às quartas-feiras e aos sábados era dia de visita e de passar batom. Arrumavam-se, penteavam-se e trocavam maquiagens. A vinda da família era realmente uma festa. Para Rose, em dose dupla, pois, como era casada com um preso, podia receber os pais no pavilhão masculino e rever o marido. Cacá fora levado algumas vezes, mas depois, Rose achou que fariam melhor se o deixassem em casa.
Não só para as mulheres como também para os homens, que estavam detidos em outras alas, es- tar no presídio Tiradentes era uma questão de segurança. Só era mandado para lá quem tinha prisão preventiva decretada de maneira legal, ou seja, passavam a existir novamente e deixavam para trás a condição de desaparecidos. Enquanto estavam nas celas do DOPS, não tinham as prisões reconhecidas pela justiça, suas fichas eram secretas e, por isso, a polícia poderia alegar que eles nunca tinham passado por aquelas celas.
Nove meses depois de chegar ao Tiradentes, Rose foi liberada. Era agosto de 1970 e o país começava entrar no período do milagre econômico, mas também caminhava rumo ao auge da repressão.
***
Fora do presídio, Rose ainda tinha que prestar satisfações para a polícia. Permaneceu dois anos em liberdade vigiada, o que significava ter de ir toda semana até a auditoria militar para “bater ponto” e não poder sair de casa depois das 22 horas, muito menos deixar a cidade. Clauset continuaria preso por um ano e seu padrasto havia morrido. Com a mãe viúva e um filho para criar, a jornalista precisava de um emprego.
Depois de ser recusada no jornal Folha da Manhã, em que trabalhara antes de ir para o DOPS, Rose conseguiu emprego na extinta revista Construção São Paulo, da Editora Pini, que reportava temas sobre a construção civil nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná.
Em 1971, Rose foi julgada com outros presos políticos e absolvida, motivo pelo qual perdeu o emprego. No segundo dia após o julgamento, a jornalista se encaminhava para o prédio da editora quando o guarda a fez parar.
– Você vai ter que ir embora, porque eles tão dizendo que você era muito perigosa, que a gente corria perigo com você aqui.
“Foi muito curioso tudo isso. Primeiro porque eles quase te matam, te mutilam, te impedem de ficar junto do seu filho, que é a coisa mais importante na vida de uma pessoa, e depois você é absolvida. Aí, você acha um emprego, trabalha certinho, acaba sendo absolvida, sei lá do que, e no dia seguinte vira uma pessoa perigosa”.
No entanto, Rose não ficou por muito tempo sem emprego. De free-lancer, passou pela Editora Abril, pela TV Cultura de São Paulo – de onde saiu em 1975, com a morte do jornalista Vladimir Herzog – e também pelas emissoras Bandeirantes e Globo, onde foi editora do Jornal Nacional e produtora do programa Balão Mágico, em 1983, mesmo ano em que o DOPS foi extinto.
De 2006 a 2008 foi presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e foi, por duas vezes, presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. Hoje, presidente responsável do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, sua ocupação principal é defender os diretos humanos. “Eu nunca parei desde o dia que sai da prisão e até o meu último dia eu vou defender os direitos humanos, sejam quais forem. Os direitos humanos são econômicos, sociais culturais e ambientais e isso requer boas políticas públicas. Eu quero que os sem-teto, sejam os com casa e é por isso que eu brigo e pelo que eu vou brigar junto com a Dilma quando ela chegar na presidência”.
No dia 31 de outubro de 2010, Dilma venceu a disputa da presidência no segundo turno das eleições, com 56,02% do total de votos válidos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, deixando para trás o candidato derrotado José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Ela foi a primeira mulher eleita presidente no Brasil.
* Esse é o terceiro capítulo do livro INSURGENTES – A história de três mulheres que desafiaram a ditadura no Brasil, da jornalista Angieli Fabrizia Maros.
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