Por Ruy Braga.
Antes da crise econômica iniciada em 2008 e, portanto, antes da Primavera Árabe, dos Indignados em Portugal e na Espanha, dos protestos na Praça Sintagma e do Movimento Occupy Wall Street, a última grande onda de mobilização em escala internacional começou com a chamada Batalha de Seattle em 1999. A passagem de um momento defensivo para um momento ofensivo aconteceu quando da criação do Fórum Social Mundial (FSM) e da emergência de um internacionalismo embrionário que buscou articular diferentes sujeitos políticos e movimentos críticos ao neoliberalismo.
No início do século XXI, esse “movimento dos movimentos” foi considerado o paradigma da globalização contra-hegemônica, isto é, uma articulação de múltiplos movimentos globais em um “espaço aberto de debates” não-hierárquico e permeável a participação de sindicatos e ONGs. Tendo por alvo comum o neoliberalismo entranhado nas estruturas organizativas econômicas globais, tais como o FMI e o Banco Mundial, além das próprias corporações transnacionais, o fórum pareceu encarnar o projeto estratégico necessário à fusão de grupos de interesses diversos por meio da combinação pragmática de seus objetivos comuns.
Uma perspectiva alimentada pelo “otimismo neopolanyiano” diria que a reinvenção dessas múltiplas identidades em luta contra a globalização neoliberal constitui a base do atual contramovimento de proteção social. Em suma, a regulação social do neoliberalismo dependeria da capacidade desses múltiplos atores políticos assumirem democraticamente o controle da economia de mercado. E, de fato, desde que surgiu em 2001, o fórum transformou-se num caso exemplar de construção democrática de alianças entre diferentes movimentos sociais críticos da globalização neoliberal. Nesse sentido, não há dúvidas de que o FSM encarnou as aspirações dos que defendem a necessidade de um contramovimento nos moldes polanyianos.
Ao sintetizar as grandes questões estratégicas que desafiam contemporaneamente os movimentos contra-hegemônicos, ou seja, o problema da liderança, da representatividade e da construção de recursos ideológicos alternativos ao neoliberalismo, o destino do FSM transformou-se na prova da viabilidade do contramovimento polanyiano. Afinal, se a Batalha de Seattle atestou o nascimento desse movimento, apenas com a criação do fórum uma autêntica experiência organizativa delineou-se para os movimentos sociais globais.
Ao analisarmos os atores que estiveram à frente da organização do encontro, perceberemos que as raízes do FSM originaram-se nas tensões existentes entre o Norte e o Sul globalizados, especialmente, a partir da resistência às políticas neoliberais utilizadas durante a crise da dívida do Terceiro Mundo dos anos 1980 e 1990. Durante esse ciclo latino-americano de contestações que se estendeu da redemocratização dos anos 1980 às vitórias eleitorais de partidos de esquerda em países estratégicos da região, nos anos 1990 e 2000, várias organizações normalmente agrupadas sob a rubrica de “sociedade civil global” aumentaram sua capacidade de pautar o debate público.
A diversidade política dessas organizações somada à escala internacional de suas demandas fez com que a direção do FSM optasse pela forma organizativa de rede, evitando a adoção de um sistema mais hierarquizado de organização. A ideia de que o fórum seria um “espaço aberto” dedicado tanto ao debate democrático de ideias quanto à elaboração de propostas dos movimentos da sociedade civil a fim de desafiar o neoliberalismo não apenas expressou a diversidade setorial e geográfica dos participantes, como logrou orientar esses primeiros esforços de articulação do “movimento dos movimentos”.
Por um lado, se o espaço aberto foi notoriamente estimulante no início dos anos 2000, por outro, é necessário reconhecer que em relação à elaboração de iniciativas contra-hegemônicas ao neoliberalismo, o relativismo do fórum tornou-se frustrante para uma parte considerável dos ativistas. A frustração adveio da percepção crescente acerca da incapacidade do FSM responder adequadamente a duas questões-chave: Qual a aparência desse “outro mundo possível”? E o que devemos fazer para chegar lá? O método do espaço aberto não logrou superar nem as concepções despolitizadas da sociedade civil global, nem as formas burocratizadas de organização política.
Como não existem respostas espontâneas aos dilemas estratégicos, a subpolitização do fórum transformou-se em um encruzilhada de difícil solução. Entre os defensores mais lúcidos do FSM como um espaço aberto, Boaventura de Sousa Santos destacou-se pela defesa da ação politicamente orientada do sindicalismo. No entanto, apesar de reconhecer a importância do trabalho organizado no movimento contra-hegemônico, Santos tende a subavaliar o papel do debate estratégico em favorecimento de pautas corporativas. Talvez isso ajude-nos a interpretar o entusiasmo do sociólogo português com as supostas conquistas do fórum. Afinal, sem uma orientação estratégica clara, a medida do sucesso do encontro torna-se bastante arbitrária.
De fato, se acompanhamos o argumento de Peter Evans segundo o qual as contradições da globalização capitalista criam as condições objetivas para o surgimento de contramovimentos à expansão da mercantilização neoliberal , é importante destacar que o destino da globalização contra-hegemônica depende da existência de forças sociais organizadas em torno de uma orientação estratégica clara. Nesse sentido, é necessário tomar certa precaução em relação à afirmação de Santos segundo a qual a maior força do FSM é seu método. Na realidade, quando pensamos em um desafio real à globalização neoliberal, o resultado dos encontros é, no máximo, ambíguo.
Certamente, a experiência de mais de uma década do fórum é a melhor oportunidade para avaliarmos os limites da aposta neopolanyiana na inevitabilidade da formação de um contramovimento global espontâneo em reação ao avanço do neoliberalismo. De fato, é inegável que o FSM permitiu o encontro de movimentos sociais, sindicatos e ONGs em torno de pautas trabalhistas, ecológicas, feministas, etc. No entanto, dessa pluralidade não surgiu um contramovimento em escala global capaz de esboçar uma alternativa de regulação ao neoliberalismo. Na ausência de um método capaz de garantir a implementação de campanhas internacionais, nem ao menos podemos identificar no fórum o surgimento de um novo internacionalismo. Em suma, sem um debate estratégico qualificado capaz de criar canais deliberativos, como seria possível articular uma gama tão variada de interesses corporativistas?
***
Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro,A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Fonte: Blog da Boitempo.