Com objetivo de oferecer respostas práticas e efetivas para as diferentes situações de violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha trouxe inovações para o sistema de justiça, como a própria necessidade do campo de o Direito atuar com perspectiva de gênero (saiba mais). De acordo com as operadoras do Direito especializadas na aplicação do marco legal, a Lei n º 11.340/2006 trouxe duas importantes novidades no campo jurídico: as medidas protetivas de urgência e a previsão de um defensor público ou advogado para defesa dos direitos da vítima, e não apenas do réu.
“A Lei trouxe inovações processuais, como as medidas protetivas de urgência e a obrigatoriedade do defensor para a mulher em todos os atos processuais. É uma lei bastante progressista, com ferramentas importantes à disposição do poder judiciário e que, se bem aplicadas, podem promover a prevenção, o atendimento multidisciplinar integrado e humanizado”, considera a defensora pública Dulcielly Nóbrega de Almeida, que coordena a Comissão de Proteção e Defesa dos Direitos da Mulher do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege).
Ambas inovações podem ser decisivas para que haja uma resposta eficiente do poder público às necessidades da mulher que busca o auxílio do Estado para romper o ciclo de violência. Ao mesmo tempo, desafiam os profissionais responsáveis por sua aplicação a promoverem uma revisão de práticas e hábitos setoriais.
Medidas protetivas de urgência cíveis e criminais
Entre os aspectos mais importantes da Lei nº 11.340/2006 estão as medidas judiciais de proteção às mulheres em situação de violência doméstica – um dispositivo previsto no quarto título da Lei Maria da Penha (ver box abaixo) que prevê que se adotem rapidamente ações que podem ser fundamentais numa situação emergencial, como afastar o agressor da vítima ou suspender o direito de posse de armas.
As medidas protetivas são apontadas como uma grande inovação da Lei e uma importante ferramenta para preservar a integridade física e psicológica das vítimas e também para prevenir que a violência chegue ao extremo do crime contra a vida, o feminicídio. “As medidas protetivas são fundamentais, não só para a sensação de segurança da mulher, que se sente mais protegida, como também para agir como um freio sobre o agressor, uma vez que há um fator coercitivo muito importante de fazer cumprir a decisão do juiz”, frisa a defensora Dulcielly Nóbrega de Almeida.
O título IV da Lei informa que o pedido das medidas pode ser feito pela própria mulher na delegacia, pelo advogado ou defensor da vítima ou ainda pelo Ministério Público. O artigo 18 do marco legal estabelece que, recebido o pedido, o juízo tem outras 48 horas como prazo limite para expedir a medida protetiva. E o artigo 22 apresenta um leque de possibilidades de ações de proteção à mulher (ver box ao final).
São inúmeras as medidas que podem ser concedidas para proteger a integridade física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial da mulher. As medidas podem ter natureza híbrida – ou seja, podem abordar tanto medidas penais, como o afastamento e monitoramento do agressor, quanto cíveis, como preservar a segurança alimentar da mulher e dos filhos ou assegurar que o direito à relação parental não se sobreponha ao resguardo da integridade da mulher.
“Na maioria das vezes o juiz determina o afastamento do lar e proíbe a aproximação, mas o rol de medidas protetivas que constam na Lei é meramente exemplificativo. Podemos pedir várias medidas protetivas, dependendo do caso concreto: restituição de bens, suspensão de porte de arma, restrição ao direito de visitas aos filhos menores, suspensão de procuração, proibição de venda de determinado bem. São inúmeras as medidas que podem ser concedidas e que visam proteger a integridade física e psicológica da mulher, além de evitar que ela sofra novas violências, seja física, psicológica, moral ou patrimonial”, explica a defensora Dulcielly Nóbrega de Almeida.
Expedição das medidas deve ser ágil e independente de inquérito ou processo penal
As medidas protetivas devem ainda ter caráter autônomo, independendo da instauração de inquérito ou processo penal, já que, dado seu uso em situações de urgência, a rapidez na expedição é essencial para sua efetividade, conforme ressalta a promotora Valéria Scarance, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
“Apesar de não haver vinculação expressa da proteção a um procedimento criminal, firmou-se o entendimento – ainda predominante – de que as medidas protetivas devem estar vinculadas a um inquérito ou processo, dada a sua natureza cautelar. Desvincular as medidas protetivas da instauração de investigação ou processo significa salvar vidas. Significa que a mulher pode ser prontamente atendida, protegida e resgatada sem carregar mais um fardo, o de ‘acusadora’ do parceiro e protagonista da prova”, explica Valéria Scarance, que também é coordenadora geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), em artigo realizado para o Informativo Compromisso e Atitude.
É importante destacar que, se a mulher pedir, os agentes de segurança pública e justiça têm o dever de fazer a solicitação das medidas ao sistema de justiça, uma vez que ainda são recorrentes os casos em que o profissional considera que a mulher ‘está exagerando’ e não reconhece a gravidade da violência doméstica e familiar, muitas vezes levando aos inúmeros casos de feminicídio que são considerados mortes evitáveis (saiba mais no Dossiê Feminicídio).
Outro ponto importante para a efetivação da medida é o acompanhamento posterior do seu cumprimento pelo poder público, a exemplo de iniciativas como as patrulhas e rondas específicas para acompanhar essas medidas que têm surgido em várias cidades brasileiras (conheça algumas iniciativas), e o uso de dispositivos ou aplicativos de emergência pelas vítimas ou tornozeleiras eletrônicas de monitoramento pelos agressores.
Na Bahia, por exemplo, a Ronda Maria da Penha é especializada no acompanhamento de mulheres que tenham medidas protetivas expedidas pelo Poder Judiciário. “Toda vez que recebemos uma Medida Protetiva de Urgência (MPU) dialogamos com seu agressor, explicamos passo a passo qual é a medida e que ele poderá ser preso caso a descumpra. Explicamos também para as mulheres que elas receberão nossas visitas aleatórias – ou seja, sem agendamento, já que a proposta da ronda é passar segurança e apoio, mostrar que estamos presentes. Muitas vezes, a mulher vítima de violência se sente abandonada, ela já passou por diversos tipos de agressão, e não é incomum que a família ou os amigos achem que ela está errada em denunciar. Ainda é comum aquele tipo de pensamento de que o agressor ‘é o cara que joga bola comigo’, ‘que me emprestou uma grana’, que ‘é um bom pai’ – sem entender que esse homem lá fora pode ser legal, mas que enquanto companheiro, marido, é perigoso e violento. Por isso, é fundamental mostrarmos que estamos do lado da mulher, nosso papel é empoderá-la”, reforça a major Denice Santiago, coordenadora da ronda.
Defesa dos direitos da mulher: assistência e informação
Outra inovação jurídica da Lei Maria da Penha é a previsão de um defensor público ou advogado para defender os direitos das vítimas – assistência que pode ser decisiva para que a mulher seja informada e orientada sobre seus direitos e se apodere deles para romper o ciclo de violência, conforme aponta a defensora Juliana Belloque, no livro Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista (Carmen Hein de Campos, org., 2011).
O trabalho de defesa dos direitos é importante ainda para que haja conexão entre processos que correm em esferas diferentes, ajudando a evitar que uma decisão cível exponha a mulher a riscos. “A Defensoria Pública tem uma atuação muito relevante ao ingressar com as ações cíveis, como de separação, divórcio, guarda de filhos, medidas patrimoniais, que também são medidas urgentes e importantes. Imagine uma situação em que há a restrição de visitas aos filhos numa medida protetiva de urgência, como será se na vara de família for estabelecido o direito de visitas?”, aponta a promotora Valéria Scarance.
O acolhimento jurídico vai permitir que a atenção não fique restrita ao problema da violência doméstica, abarcando demandas correlatas, como ajuizar uma ação de divórcio, de alimentos, de guarda dos filhos, de regulamentação do direito de visitas, de danos morais, entre outras. “Isso vai fazer com que a mulher seja bem assistida e tenha garantidos seus direitos, seja para conseguir uma medida protetiva ou para conseguir uma ação na vara de família. O defensor ou advogado também vai zelar para que não ocorram perguntas discriminatórias e que reforcem estereótipos, para que haja uma boa condução do processo e para que ela não seja revitimizada. Isso dá segurança para a mulher, que sabe que alguém estará ali para recorrer por ela se for preciso e tomar as medidas necessárias”, explica a defensora Dulcielly Nóbrega de Almeida.
Nestes casos de defesa dos direitos da vítima, Defensoria e Ministério Público atuam de forma parceira no processo penal. “Na violência doméstica e familiar, essas instituições estão juntas na rede, ambas devem atuar para garantir a efetivação dos direitos da mulher e que ela seja protegida, seja pela medida protetiva ou por meio do bom andamento do processo penal. O Ministério Público atua como fiscal da lei e autor do processo penal. É por meio dele que a condenação do acusado vai ocorrer. Quando atuamos juntos fazemos com que a mulher se sinta mais protegida”, complementa a defensora.
O que diz o Título IV da Lei Maria da PenhaDOS PROCEDIMENTOS CAPÍTULO I – DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei. Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária. Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado: I – do seu domicílio ou de sua residência; II – do lugar do fato em que se baseou a demanda; III – do domicílio do agressor. Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. CAPÍTULO II – DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Seção I Disposições Gerais Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas: I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; II – determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III – comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis. Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. § 1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado. § 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. § 3º Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público. Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor. Seção II Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios. § 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso. § 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). Seção III Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV – determinar a separação de corpos. Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo. CAPÍTULO III – DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher. Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário: I – requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros; II – fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; III – cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. CAPÍTULO IV – DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei. Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado. |
Fonte: Compromisso e Atitude.