Por Patricia Fachin.*
Apesar de ainda não terem sido divulgados os dados oficiais sobre o número de greves ocorridas em 2013, a estimativa é de mais de 900 paralisações trabalhistas no Brasil nesse período, considerando que em 2012 o índice de greves foi o mais alto desde 1996, o que demonstra que elas têm sido mais frequentes, inclusive antes das jornadas de junho.
Entretanto, “há diferentes significados nas greves que estão ocorrendo no último período”, assinala Marcelo Badaró Mattos, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line. Na avaliação dele, as greves podem ser compreendidas a partir de dois grandes movimentos: de um lado, sindicatos que se mantiveram ativos e combativos ao longo das duas últimas décadas sentiram um momento favorável para as mobilizações grevistas após as jornadas de junho de 2013 e no contexto pré-Copa do Mundo e, (…) por outro lado, estão acontecendo também muitas greves de categorias de trabalhadores que não se veem representadas por suas entidades sindicais, há muito tempo controladas por burocratas a serviço dos patrões e dos governos. É o caso das greves recentes de rodoviários, trabalhadores da limpeza urbana e, em muitos casos, de trabalhadores da construção civil.
Com base em dados referentes ao ano de 2011, divulgados pelo IBGE, o pesquisador destaca que “82% dos empregados no Brasil recebem até três salários mínimos, sendo que, destes, 30% recebem até um salário mínimo”. Apesar de o número de empregados sem carteira assinada ter diminuído nos últimos anos, “calcula-se entre 8 e 10 milhões o número de trabalhadores terceirizados. Nestes quase 12 anos de gestões petistas do governo federal, tanto nas fases de crescimento mais significativo no segundo mandato de Lula da Silva quanto nos períodos de quase estagnação do crescimento econômico, como hoje em dia, a maior parte dos empregos gerados no Brasil foi ancorada em baixo salário”, constata. E dispara: os reajustes do salário mínimo mal e mal o recolocaram no patamar dos anos 1980, que já era o ponto mais baixo da sua curva desde o final dos anos 1950.
Na entrevista a seguir, Mattos também comenta as propostas das esquerdas em relação às questões trabalhistas, eleitorais e a reduzida capacidade de influência das manifestações de junho. “Hoje, não apenas o desempenho eleitoral dessas forças é muito pouco significativo, como sua inserção nos movimentos sociais de base trabalhadora é diminuta, sendo reduzida sua capacidade de influenciá-los, como ficou evidente no ano passado, em meio às jornadas de junho, quando a esquerda organizada não conseguiu exercer um papel protagônico nas manifestações de massa, abrindo-se, inclusive, em meio aos manifestantes, durante um certo período, o espaço para um rechaço, de matriz conservadora, aos partidos de forma geral”. Por outro lado, pondera, seria injusto não reconhecer que as organizações de esquerda vêm cumprindo um papel importante, com todas as suas dificuldades, ao aglutinar forças na resistência aos ataques do capital às conquistas da classe trabalhadora.
Confira a entrevista.
O que as greves que têm ocorrido recentemente significam, especialmente pelo fato de as categorias estarem se organizando sem a participação e apoio dos sindicatos?
Marcelo Badaró Mattos: Fenômenos sociais complexos, como os ciclos de greves e mobilizações da classe trabalhadora, nunca podem ser explicados por um único fator.
Portanto, há diferentes significados nas greves que estão ocorrendo no último período. De um lado, sindicatos que se mantiveram ativos e combativos ao longo das duas últimas décadas sentiram um momento favorável para as mobilizações grevistas após as jornadas de junho de 2013 e no contexto pré-Copa do Mundo.
Em grande medida porque, quando as manifestações multitudinárias do ano passado levantaram bandeiras como “da Copa eu abro mão, quero dinheiro para saúde e educação”, ecoaram os últimos vinte anos de lutas dos trabalhadores do serviço público nessas áreas, que reivindicaram não apenas melhores salários e condições de trabalho para si, mas também defenderam saúde e educação pública de qualidade como direito de todos, em tempos de privatização e péssimas condições de oferta desses direitos fundamentais. Daí porque greves no serviço público de forma geral e na educação em particular estejam acontecendo em grande número, dirigidas muitas vezes por sindicatos combativos.
Por outro lado, e acho que esse foi o ponto da pergunta, estão acontecendo também muitas greves de categorias de trabalhadores que não se veem representadas por suas entidades sindicais, há muito tempo controladas por burocratas a serviço dos patrões e dos governos.
É o caso das greves recentes de rodoviários, trabalhadores da limpeza urbana e, em muitos casos, de trabalhadores da construção civil. Tais situações reforçam a tese de que a burocratização é uma decorrência da estrutura sindical brasileira, em grande medida a mesma estrutura oficial (dependente do registro no Ministério do Trabalho, baseada na unicidade sindical, sindicato único por categoria e região, e ancorada na contribuição compulsória de todos(as) os(as) trabalhadores(as) para o sistema) criada nos anos 1930 e apenas levemente reformada em 1988 e depois.
De qualquer forma, a existência de polos combativos no movimento sindical indica que esse processo não é inevitável.
A que o senhor atribui o fato de as greves terem quase dobrado de 2010 para 2013, tendo ocorrido 446 greves em 2010 e mais de 900 em 2013? Os protestos por conta da Copa do Mundo ajudaram?
Marcelo Badaró Mattos: O número de greves no Brasil vem crescendo, mesmo antes das jornadas de junho de 2013. O ano de 2012 teve o maior número de greves desde 1996, segundo os dados do Dieese. Não há ainda levantamentos divulgados para 2013, mas tudo indica que a tendência de elevação no número de greves se manteve.
Algumas das greves de 2012, como a dos trabalhadores da educação nas instituições federais de ensino (que foram seguidas por outras categorias de servidores públicos federais), podem ser vistas como impulsionadoras de reivindicações que reemergiram nas ruas nas vozes dos manifestantes de 2013. Por outro lado, como eu mencionei, as jornadas de junho demonstraram um elevado nível de descontentamento e uma pauta que, embora difusa, possui um nítido sentido de classe (saúde, educação e transporte público de qualidade, além de protesto contra a violência policial, cotidianamente letal nas favelas e periferias da grande cidade).
Isso reforçou a disposição de diversos grupos profissionais de ir à luta, empolgados com a nova conjuntura, que não apenas fizeram greves, mas também foram para as ruas, dando maior visibilidade e buscando apoio para suas causas. Não se deve esquecer, porém, que as greves decorrem também de um acúmulo de descontentamentos relativos às condições de trabalho e aos salários. Por um lado, a relativa diminuição do nível de desemprego atenua um pouco a insegurança em relação ao confronto grevista, por outro lado, os baixos salários e condições adversas de trabalho (vide o crescimento dos acidentes de trabalho e as autuações por trabalho análogo à escravidão em canteiros das grandes obras do PAC e dos megaeventos, por exemplo) são fatores objetivos a impulsionar um maior volume de greves.
Quais são as principais reivindicações das categorias nessas greves?
Marcelo Badaró Mattos: As principais reivindicações são reajustes salariais e melhoria das condições de trabalho – o que envolve o fim da dupla função para os rodoviários (dirigir e cobrar passagens ao mesmo tempo), a melhoria da alimentação e alojamento em canteiros de obras da construção civil, valores maiores pagos para a alimentação dos garis, para ficar em alguns exemplos. No caso dos servidores públicos, predominam, além das demandas salariais, a reformulação dos planos de carreira (depois de anos de desmanche das carreiras, com a introdução de gratificações diferenciadas e perda da isonomia entre aposentados, ativos mais antigos e recém-ingressos), além da defesa de políticas públicas que atendam aos interesses da maioria da população (como na luta contra o fechamento de escolas, o crescimento do número de alunos por turma, o encolhimento dos turnos e a não garantia do tempo de preparação de aulas por parte dos profissionais da educação).
A que atribuiu os baixos salários, apesar do aumento do salário mínimo, e a falta de avanços dos direitos trabalhistas, considerando especialmente a terceirização no Brasil?
Marcelo Badaró Mattos: A lógica da acumulação capitalista explica esses fenômenos, pois as empresas e empresários que personificam o capital, só à custa de muita luta, organizada por parte da classe trabalhadora, reajustam salários, aceitam ampliar direitos e garantem condições de trabalho minimamente dignas. Desde os anos 1980 em todo o mundo, e no Brasil especialmente a partir dos anos 1990, vive-se uma época de recuos históricos das conquistas da classe trabalhadora e avanço do capital sobre os limites que as lutas do século XX impuseram à exploração. Por trás desse processo está o esforço do capital para superar as várias crises cíclicas que, por suas dimensões cada vez mais planetárias, indicam para muitos analistas uma crise estrutural, ou sistêmica.
Todos os processos de reestruturação produtiva induzidos desde os anos 1970, assim como a disseminação de modelos neoliberais de gestão do Estado, criaram as condições para tal avanço do capital sobre as conquistas dos trabalhadores. Tal processo adquire características ainda mais violentas em uma periferia capitalista tardiamente industrializada e economicamente dependente do capital externo como a brasileira, em que as conquistas da classe trabalhadora eram ainda muito limitadas e onde a necessidade de gerar lucros capazes de remunerar tanto os capitais locais quanto os forâneos tendeu a produzir sempre uma superexploração da força de trabalho (para usar o sentido dado à expressão por Ruy Mauro Marini (1)).
O que essas greves indicam do ponto de vista do trabalho no Brasil, considerando que há críticas positivas em relação aos governos Lula e Dilma no sentido de aumentar o salário mínimo e criarem políticas de crédito para o consumo?
Marcelo Badaró Mattos: Nestes quase 12 anos de gestões petistas do governo federal, tanto nas fases de crescimento mais significativo no segundo mandato de Lula da Silva quanto nos períodos de quase estagnação do crescimento econômico, como hoje em dia, a maior parte dos empregos gerados no Brasil foi ancorada em baixo salário. Dados de 2011 indicam que 82% dos empregados no Brasil recebem até três salários mínimos (30% recebem até um salário mínimo). Calcula-se entre 8 e 10 milhões o número de trabalhadores terceirizados. O número de empregados sem assinatura na carteira de trabalho diminuiu nos últimos anos, mas, se somarmos os que não possuem registro aos que não contribuem para a previdência e aos cerca de 7% de desempregados (segundo os dados mais recentes do IBGE), temos uma ideia do grau de precarização das relações de trabalho no Brasil.
Os aumentos do salário mínimo acima da inflação e as facilidades do crédito consignado e do crediário no comércio estimularam uma ampliação do consumo de fôlego curto, à qual o governo tenta dar sobrevida através das isenções fiscais (ou seja, pagamos todos para garantir o lucro das montadoras de automóveis e fabricantes de eletrodomésticos e eletrônicos, praticamente todas grandes transnacionais). Mas é preciso lembrar que os reajustes do salário mínimo mal e mal o recolocaram no patamar dos anos 1980, que já era o ponto mais baixo da sua curva desde o final dos anos 1950. E a facilidade do crédito é também a facilidade da dívida, cujo limite é também pouco elástico em se tratando de trabalhadores de renda tão baixa. As greves constituem uma das reações possíveis a esse quadro.
E o que as greves sinalizam, especificamente, em relação à representação dos sindicatos e à organização das categorias?
Marcelo Badaró Mattos: Quando diversas categorias fazem greves independentemente da orientação das direções sindicais, ou mesmo contra elas, estamos diante de um quadro em que um processo de reorganização sindical se faz necessário. A última vez em que isso ocorreu com proporções significativas foi no fim da década de 1970 e início dos anos 1980, quando das greves do chamado “novo sindicalismo”, algumas delas tendo à frente direções sindicais representativas, mas muitas construídas por “oposições sindicais”, ou mesmo por setores menos organizados de bases sindicais insatisfeitas com o perfil “pelego” de suas direções. Daquelas lutas surgiu a Central Única dos Trabalhadores (CUT), e mais tarde outras centrais que com ela disputaram espaço por uma via menos combativa.
A centrais sindicais ainda têm relevância na atual situação da discussão trabalhista no país?
Marcelo Badaró Mattos: Aquela CUT que emergiu das lutas dos anos 1970/80 já não existe mais. Em lugar da central sindical autônoma em relação ao governo e aos patrões, que propunha um sindicalismo classista, combativo e construído pela base, ergue-se hoje um imenso aparato burocrático, atrelado ao Estado, pois dependente da contribuição sindical compulsória e de fundos públicos, dominada por uma concepção de colaboração de classes, que se espelha em cada posicionamento de seus dirigentes. Centrais que se apresentavam como rivais, à direita, da CUT nos anos 1990, como a Força Sindical, hoje praticamente se equivalem em propostas e compromissos com Estado e patrões. Novas centrais surgiram nos últimos anos, quase todas com um objetivo claro de se credenciarem para arrecadar uma fatia do bolo da contribuição sindical compulsória. Esses aparatos burocráticos cumprem muito mais o papel de dique de contenção do que o de polo irradiador das greves e mobilizações. Há, no entanto, espaço para o surgimento de alternativas.
As greves hoje em curso são fragmentadas. Em alguns momentos se tenta unificar atividades e manifestações, mas, na ausência de centrais sindicais amplas e representativas, dispostas a dirigir a unificação das lutas (há quantos anos não ouvimos falar a sério da ideia de uma greve geral no Brasil?), qualquer caminho unitário é mais difícil de ser trilhado. Há alguns esforços em curso na direção de se constituir um polo sindical combativo e o mais significativo deles me parece ser a Central Sindical e Popular – CSP Conlutas. Digo isso porque a CSP – Conlutas se propõe a reunir não apenas sindicatos, mas também outras organizações e movimentos com base social na classe trabalhadora, como movimentos de luta pela moradia, pela reforma agrária, pela igualdade racial e de gênero etc.
Em um período em que a classe trabalhadora se encontra profundamente fragmentada e uma parcela expressiva dela trabalha de maneira informal e precária, não sendo a forma tradicional de sindicato capaz de agregar todas as parcelas da classe, uma central de sindicatos e movimentos sociais pode ser uma boa saída. Há que se ressalvar, porém, que, embora seu processo de construção já tenha uma década, a CSP – Conlutas tem dimensões ainda muito pequenas para dar conta dos desafios que se apresentam.
Quais têm sido as propostas das esquerdas em relação às discussões acerca do trabalho?
Marcelo Badaró Mattos: As forças políticas de esquerda, entendidas como aquelas que reivindicam a alternativa socialista à ordem capitalista, sofreram duramente com o recuo das lutas da classe trabalhadora, de forma análoga ao sindicalismo combativo, e suas dificuldades são também um componente desse recuo. Hoje, não apenas o desempenho eleitoral dessas forças é muito pouco significativo, como sua inserção nos movimentos sociais de base trabalhadora é diminuta, sendo reduzida sua capacidade de influenciá-los, como ficou evidente no ano passado, em meio às “jornadas de junho”, quando a esquerda organizada não conseguiu exercer um papel protagônico nas manifestações de massa, abrindo-se, inclusive, em meio aos manifestantes, durante um certo período, o espaço para um rechaço, de matriz conservadora, aos partidos de forma geral.
Seria, entretanto, injusto não reconhecer que as organizações de esquerda vêm cumprindo um papel importante, com todas as suas dificuldades, ao aglutinar forças na resistência aos ataques do capital às conquistas da classe trabalhadora, postando-se contra as reformas que retiram direitos, assim como apresentando propostas de reconquista desses direitos – a redução da jornada de trabalho sem redução de salário, o fim do fator previdenciário no cálculo das aposentadorias, a anulação de medidas privatizantes na área da saúde e previdência (como o fundo de pensão privado para os novos servidores públicos, FUNPRESP, e a empresa que privatiza os hospitais federais, EBSERH), entre outras.
Como avalia especificamente a gestão dos governos Lula e Dilma em relação às questões trabalhistas, sendo que este é o partido dos trabalhadores?
Marcelo Badaró Mattos: Os governos do Partido dos Trabalhadores possuem uma base eleitoral ancorada em setores da classe trabalhadora urbana e, cada vez mais, nas parcelas mais precarizadas e pauperizadas da população dos chamados rincões de pobreza do interior do país. No entanto, o partido que carrega os trabalhadores em seu nome, desde o primeiro mandato de Lula, não governa para eles, governa para o capital. Daí que, em relação às questões trabalhistas, já a partir de 2003, suas medidas foram sempre de retrocesso. A retirada de direitos, que vinha dos anos 1990, continuou, como ficou evidente já nos primeiros meses do primeiro mandato de Lula, com a sua “reforma” da previdência, ao que se seguiram mudanças na legislação das falências e das pequenas e médias empresas na mesma direção. No campo da legislação sindical, ocorreu um aprofundamento do atrelamento dos sindicatos ao Estado, justo no caminho oposto ao que o dirigente sindical dos metalúrgicos de São Bernardo, Lula, pregava em fins dos anos 1970.
Em relação ao trabalho no Brasil, que avanços e retrocessos são possíveis apontar?
Marcelo Badaró Mattos: Todas as respostas anteriores apontam para um balanço em que, nas relações capital-trabalho no Brasil das últimas décadas, as forças do trabalho perderam muito. No entanto, no último período, a elevação no nível de conflitividade social — com as manifestações massivas do ano passado e a onda de greves deste ano — parece apontar para o início de um novo ciclo de lutas da classe trabalhadora. Só um movimento desse tipo poderá reverter o processo de retirada de direitos e retrocesso no grau de organização e consciência da classe, permitindo avanços significativos para os trabalhadores.
Nota
1) Ruy Mauro Marini (Barbacena, 1932 – cidade do Rio de Janeiro, 1997): cientista social brasileiro. Conhecido internacionalmente como um dos elaboradores da Teoria da Dependência. Embora extremamente conhecido nos países latino-americanos de língua espanhola, sua obra é pouco conhecida no Brasil. (Nota da IHU On-Line).
*De IHU ONLINE
Publicado originalmente em IHU Unisinos
Fonte: Correio da Cidadania