Por Claudia Weinman, para Desacato. info.
Em dezembro de 2015, recordo, ainda trabalhava em um jornal impresso do Extremo-oeste, passei ao lado de um terreno onde um grupo de indígenas Kaingang se encontrava. Barracos de lona, conversei com a indígena Juliana Cristão, que me retratou a realidade vivenciada pelas famílias. Foram “convidadas a se retirar do centro da cidade”, do espaço da rodoviária.
Mas o “convite” não foi assim, como o termo designa. Uma solicitação. Colocaram as famílias dentro de um caminhão da prefeitura e as “esconderam” em uma área atrás do cemitério municipal. Tem quem diga que a intensão não era essa, mas a própria fala da secretária de assistência social da época pode ser analisada. “Eles tem direito de ir e vir, mas estavam ficando em área que é de pessoa particular. Colocamos todos eles dentro de um caminhão e levamos eles até uma nova área. Todos os dias estamos recebendo denúncias. Agora o encaminhamento é de que se não quiserem ir até a área que a gente arrumou, até a polícia pode ser acionada. Não podem mais ficar naquele local”.
Outras falas, de comerciantes apontavam para os indígenas como: “sujeira, estragam o cartão postal (rodoviária), incomodam, pedem coisas”, e assim por diante.
Na época em que coloquei essa denúncia em rede, aqui no Portal Desacato, onde estava começando a me integrar, os comentários de preconceito foram inúmeros. No dia seguinte, recebi ameaças via telefone. São Miguel do Oeste/SC, ou a parcela que se considera elite mostrou sua face de preconceito e ódio contra os povos indígenas e contra quem “ousasse” escrever sobre. Foi aí que outras redes, nacionalmente e internacionalmente noticiaram o que estava acontecendo na cidade interiorana do estado de Santa Catarina, e passaram a demonstrar apoio a essa denúncia.
Depois dessa situação, outras tantas se repetiram, veladas pelo receio de denúncia e comprometimento desses grupos perante o imaginário coletivo. Não se podia “fazer feio” afinal, o lema é: “Somos todos Brasileiros”, tem espaço para todo mundo.
Na prática, isso é uma falácia. Agora, se pretende fazer uma audiência pública, no próximo dia 16 de agosto, na Câmara de Vereadores, com o discurso de que as crianças indígenas correm riscos no centro da cidade, estão vulneráveis ao trânsito, ficam por ali, pedindo moedas, comida, sem proteção. Repito, o discurso até engana quem não conhece os princípios da política anti-indigenista, o que o marco temporal tem feito com os povos, o que a não demarcação do território provoca, os impactos culturais e sociais ocasionados por essa situação.
Outra questão que se repete são as conversas feitas com os indígenas, onde pessoas não indígenas usam da função/cadeira que ocupam na sociedade para oferecer emprego fixo, carteira assinada, casa para alugar, tudo, para integrar o indígena a vida que foge de sua cultura, que nega a identidade e as características de cada qual. O espaço da cidade historicamente foi sendo limitado a essa cultura do branqueamento. Construída para o “desenvolvimento”, para o comércio, relacionada ao mercado e consumo. A verticalização das cidades é para atender a essa ideia de cidade, onde se pretende varrer tudo e todos que não se integram nessa lógica mercantil.
Mas é preciso saber de onde vem esse discurso de “preocupação” repentina de líderes de bancadas ruralistas e outros, ao falarem, questionarem determinadas situações envolvendo a vida e segurança dos povos indígenas, especialmente das crianças. Jacson Santana, do Conselho Indigenista Missionário, CIMI-SUL, faz um retrato muito interessante dessa realidade e demonstra nos elementos o quanto de preconceito existe na sociedade em relação aos povos indígenas, o desrespeito a cultura, ao modo de vida.
É imprescindível compreender que respeitar a cultura não é adaptá-la ao que nós achamos ser o melhor. É promover as políticas que tem relação por exemplo, com uma educação não baseada em processos tradicionais. É garantir o direito de ir e vir, a não higienização dos espaços urbanos como acontecia no período imperial, com medidas repressivas, de “limpeza” e vedação de qualquer questão social que apresente “risco” a ordem.
Deixo a leitura do texto de Jacson Santana: CIMI/SUL, para A Outra Reflexão desse tema.
“A floresta deixou de ser lar de milhares de indígenas, escassez de alimentos, avanço das cidades sobre as matas, são alguns dos fatores que motivaram os povos tradicionais a migrar para áreas urbanas e apesar de buscarem melhores condições de vida nas cidades, a maioria dos indígenas vivem em situação de pobreza. A principal renda vem do artesanato. É comum os indígenas mesmo em áreas urbanas viverem em comunidades, conforme vai passando o tempo vem um, vem outro e as famílias acabam se juntando em bairros ou periferia.
Morar em centros urbanos hoje sem ocultar a ancestralidade e as próprias referências é ainda uma luta de mais de 315 mil indígenas no Brasil, segundo o último censo do IBGE. Esse número representa 40% da população indígena do país e ainda existe um forte preconceito e descriminação contra os povos indígenas.
Os indígenas que moram nas cidades são os que mais enfrentam esse tipo de situação, constantemente. Em todo o Brasil São Paulo é a cidade onde se encontra a maior população indígena na área urbana com cerca de 12 mil habitantes. Chapecó também é uma cidade com uma população indígena que passa pela cidade e/ou moram ali. É o espaço tradicional deles, sempre foi. A cidade veio e ocupou e tirou esse espaço deles. Conseguiram depois de muita luta um espaço próximo da cidade para viver mas a cidade não deixou de ser o espaço deles, onde eles vem sempre para comercializar o artesanato e para viver no espaço onde possuem uma identidade.
Conversando com uma liderança indígena, sr. Augusto, ele disse que eles precisam da cidade para justamente comercializar o artesanato e a cidade descrimina eles porque estão na cidade. Então esse é um aspecto.
Outras cidades também são o espaço para eles voltarem. São Miguel do Oeste é um exemplo disso. A região toda de fronteira era uma região tradicionalmente ocupada pelo povo Guarani. Não se “tira” os indígenas, pois em algum momento eles vão voltar, é o espaço deles. Então o povo Kaingang que está em São Miguel do Oeste, está também porque é o espaço onde os indígenas habitavam e existe um preconceito histórico diante disso.
Um exemplo que podemos citar é a prática tradicional do povo Kaingang de levar as crianças em viagem para comercializar o artesanato. O que poderia ser considerado por nós não indígenas como “afastamento das crianças da escola”, tal costume faz parte do aprendizado e isso significa uma imersão nas especificidades culturais do seu povo. Entendemos que os povos indígenas têm o direito de formar as crianças de acordo com as suas tradições, elas têm o direito de ter a formação dentro da cultura do povo que pertence, a constituição garante isso à elas.
Para nós (não indígenas) o olhar é de uma forma, mas para os indígenas, eles estão ensinando, faz parte desse aprendizado. A gente vê sempre em Chapecó/SC as crianças junto das mães, então as mães não vão deixar as crianças nas aldeias pela própria cultura e necessidade de amamentação, etc. E isso tudo faz parte do aprendizado.
A luta desses povos é por esse reconhecimento, para que possam ter cidadania na cidade. É muito comum as pessoas falarem: “Vocês tem a terra de vocês, voltem para sua terra”. Mas os povos indígenas podem responder de outra forma: “A nossa terra também é na cidade, de onde fomos retirados, expulsos”. Então a gente conclama para que a população compreenda e entenda isso tudo”.
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Claudia Weinman é jornalista, diretora regional da Cooperativa Comunicacional Sul no Extremo Oeste de Santa Catarina. Militante do coletivo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).
Os indígenas estavam nestas terras muito antes de todos que aqui vivem e são parte da cultura de nossa região, merecem todo respeito. Eu apoio e faço questao de resgatar essa cultura e criar algo para gerar identidade pra cidade e ajudar esses povos que sofreram e sofrem desde o início da colonização.