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Lideranças indígenas da Terra Indígena (TI) Rio Branco, em Rondônia, estão pedindo compensação por danos ambientais, sociais e culturais que oito Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) estão causando às comunidades da região há quase 30 anos. Segundo as lideranças, os empreendimentos causaram mortandade de peixes, mudaram o curso das águas, destruíram um cemitério indígena e estão prejudicando povos em isolamento voluntário da vizinha TI Massaco.
“Vinte nove anos atrás [ano da instalação da primeira PCH], o rio não secava como seca hoje. Eu tenho um metro e setenta, hoje o leito do rio fica batendo no meu peito, então seca muito e isso afeta principalmente a nossa locomoção. Nós temos aldeias que ficam na beira do rio e tem que subir de barco para pegar um ônibus, ter assistência de saúde e educação e isso [a seca do rio] tá dificultando muito o transporte“, diz Walderir Tupari, líder indígena da TI Rio Branco.
As PCHs começaram a ser instaladas no rio Branco, afluente do rio Guaporé, em 1993. Desde lá, o setor energético passou por um histórico de flexibilizações e as empresas estão aproveitando brechas na legislação para crescer, com um discurso de redução de danos ambientais que na prática se mostra diferente. Cada pequena central hidrelétrica tem capacidade de geração de energia entre 5 e 30 megawatts (MW), enquanto uma usina hidrelétrica (UHE) gera mais do que 30 MW por hora.
Consideradas de baixo impacto ambiental, as PCHs têm uma série de facilidades no licenciamento. Os estudos necessários, por exemplo, ocorrem através de projeto básico, com Despacho de Registro de Intenção à Outorga de Autorização (DRI-PCH). Dependendo da legislação estadual, não há necessidade de apresentar o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), o que faz o investimento sair mais barato e mais rápido.
As oito PCHs instaladas ao longo do rio Branco têm juntas capacidade de geração de 39,3 MW, o equivalente a uma usina hidrelétrica. Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), hoje há 1.444 mil PCHs em atividade, enquanto 470 UHE estão em operação no país.
“Muitos empreendimentos hidrelétricos se esforçam para se enquadrar na categoria PCH, pelo fato da legislação ambiental não se aplicar a essa modalidade de construção. Desse modo, as oito PCHs do rio Branco não precisam se submeter às mesmas exigências legais que uma UHE (Usina Hidrelétrica), mesmo que juntas ocupem toda a bacia hidrográfica”, reforça o antropólogo Vinícius Furlan, em sua dissertação de mestrado “Terra e política: etnografia da luta antibarragem de indígenas e agricultores contra Pequenas Centrais Hidrelétricas da bacia do rio Branco (RO)”.
Os indígenas da TI Rio Branco alegam que nunca houve consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas, e que desde o início eles passaram a fazer denúncias ao Ministério Público Federal (MPF), Funai (Fundação Nacional do Índio) e Sedam- RO (Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia), mas não tiveram resultados.
Em junho deste ano, organizações indígenas da TI Rio Branco lançaram um manifesto acusando a Sedam e Funai de fazerem vista grossa para as empresas, sem garantir punição ou mudança. A situação ainda se agrava porque na mesma região vive o povo Massaco, indígenas em isolamento voluntário confirmados pela Funai, que, de acordo com as associações, também está sendo afetado.
“Esses empreendimentos impactam frontalmente as Terras Indígenas Rio Branco e Massaco e a Reserva Biológica Guaporé. A primeira delas foi construída no início da década de 1990 e, a partir daí, passamos a sofrer prejuízos de ordem social, cultural, econômica, ambiental e risco de morte. Lamentavelmente, o órgão licenciador, SEDAM, e o órgão indigenista, FUNAI, fizeram vistas grossas a essas agressões, permitindo que elas continuassem ao longo dessas quase três décadas“, dizem as organizações no manifesto.
Philip Fearnside, biólogo e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), afirma que a facilidade para conseguir as licenças faz com que as empresas invistam nesse modelo. “É muito mais fácil conseguir licenciamentos para PCHs do que para as grandes hidrelétricas, porque é feito pelos governos estaduais. Os órgãos ambientais no nível estadual são muito mais facilmente pressionados pelos interesses locais”, explica.
Os empreendimentos
Seis das oito PCHs têm o mesmo proprietário, o Grupo Cassol, representado por Ivo Junior Cassol. A família de Ivo é de Santa Catarina e passou a viver em Vilhena (RO), onde desde 1992 trabalha com geração de energia. Ele é filho de Ivo Narciso Cassol, que foi governador de Rondônia entre 2003 e 2010. Os outros dois empreendimentos pertencem a dois grupos de sócios diferentes, Hidroluz Centrais Hidrelétricas e Eletron Eletricidade.
Questionado pela reportagem sobre as alegações dos indígenas, as PCHs em atividade e as recomendações dos órgãos ambientais para novos estudos de impacto, o Grupo Cassol enviou dados de documentos que mostram que as empresas estão respondendo processo dentro da Sedam para redução de impactos e novos estudos ambientais (veja resposta na íntegra aqui).
Em abril de 2018, a Sedam realizou um fórum de discussão para definir medidas de contenção de danos na sub-bacia do rio Branco. “O potencial hidroenergético de todas elas [as PCHs] totaliza 39,3 megawatts – ultrapassando o máximo de 30 MW limitado em estudos e relatório de impacto ambiental. A construção desses empreendimentos causou prejuízos à fauna, flora e ictiofauna na sub-bacia, constataram analistas ambientais no 1º Fórum em 2015“, relatou o órgão, à época.
Em 2011, o MPF emitiu recomendação para Funai e Sedam, solicitando estudos mais amplos sobre os impactos das hidrelétricas e que nenhum outro processo de licenciamento para novas PCHs no rio Branco fosse feito antes que os estudos estivessem prontos. “Os estudos sobre os impactos só levaram em conta as barragens isoladamente uma a uma e desconsideram que, do ponto de vista ambiental, o conjunto de PCHs equivale a um grande empreendimento“, disse o MPF, à época.
A reportagem procurou o MPF, a Funai e a Sedam, mas não obteve resposta de nenhum dos órgãos. As empresas Hidroluz e Eletron também foram procuradas, mas não responderam aos nossos questionamentos até a publicação desta reportagem.
Mais flexibilizações
Um projeto de lei que visa flexibilizar ainda mais a instalação de PCHs tramita na Câmara dos Deputados desde 2015. De autoria do deputado Jorge Côrte Real (PTB-PE), a proposta estabelece que o licenciamento das pequenas hidrelétricas deve dispensar o estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA) e elaborar relatórios simplificados que conterão as informações relativas ao diagnóstico ambiental da região de inserção do empreendimento.
Também estabelece que conversores elétricos e os geradores de energia elétrica de corrente alternada, usados por esses empreendimentos, sejam isentos de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Anna Cármaco, advogada de Direito Ambiental da ONG International Rivers, avaliou que as medidas cometem equívocos e significam retrocesso.
“Os impactos socioambientais cumulativos de PCHs podem ser iguais ou até mesmo superiores aos danos de uma grande barragem, e os mesmos são subdimensionados quando as PCHs são avaliadas separadamente. Destacam-se impactos na qualidade das águas, na biodiversidade e na integridade de ecossistemas frágeis de água doce com a consequente perda de seus serviços ecossistêmicos para as populações locais e a sociedade em geral“, destacou em estudo publicado em 2019.
Na TI Rio Branco, a população já percebe na prática os impactos analisados por Cármaco. Em fotos e vídeos, os indígenas mostram peixes boiando nas águas e alertam para a seca do rio. “Tivemos uma mortandade de peixes e tudo isso foi causado através da usina. A gente manda documento pedindo uma ação e eles (os órgãos ambientais e de justiça) só falam que estão acompanhando“, disse Tupari.
Possíveis soluções
A indigenista Neidinha Suruí afirma que após os diversos danos causados aos indígenas e com a impossibilidade de retirar as PCHs do rio, o que deve ser feito é um programa de compensação pelos danos causados até aqui aos indígenas afetados. Para ela, é necessário avaliar o impacto ambiental, mas também social e cultural, considerando as modificações causadas no modo de viver de cada comunidade e na memória intercultural dos povos.
“Deveria ter um programa de compensação pelos danos ambientais que propusesse soluções, um programa voltado para as comunidades impactadas que previsse os impactos e criasse ações para minimizar os danos e garantir que não tenham outros impactos“, diz.
É o que pedem também os indígenas no manifesto divulgado mês passado. Eles pontuam algumas ações necessárias: reflorestamento de todas as nascentes impactadas e em áreas adjacentes; medidas imediatas para acabar com o assoreamento do rio; criação de áreas para procriação de tracajás e peixes; pagamento de indenização; que seja criado um museu arqueológico indígena e um programa de segurança de barragens, dentre outras solicitações.
O pesquisador Fearnside sugere que é possível diminuir os impactos com a redução da quantidade de água usada pelas PCH, mesmo isso gerando menos energia. Ele entende que a política de uso de hidrelétricas não está sendo um avanço para o Brasil e especialmente para Rondônia. Como o estado já abarca grandes usinas, como a de Jirau e Santo Antônio, ter PCHs não é compensatório, segundo o pesquisador.
“Rondônia não precisa disso, tem energia sobrando pra mais de São Paulo. Se fosse decidir entre fazer PCH e não fazer, era melhor não fazer”, afirma Fearnside.
O pesquisador diz que o país deveria investir em energia eólica, fotovoltaica e em conservação. “O Brasil exporta muita energia em alumínio. Os benefícios vão para fora e os impactos ficam com os indígenas. O país tem enorme potencial de energia eólica ao longo da costa, numa grande plataforma continental. Precisa priorizar outros modelos e não criar mais barragens“, diz.