Por Isadora Stentzler.
Após a disseminação de um vídeo em que alguns indígenas Kaingang da Terra Indígena (TI) de Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras, na região central do Paraná, aparecem saqueando um caminhão de carga e pisoteando o corpo de um homem morto, a comunidade convive com uma série de conflitos com a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Segundo um dos indígenas, Neoli Kafy Rygue Olibio, porém, a cena foi alterada pelos policiais para culpabilizar a comunidade em caso de vilipêndio, além de usarem a situação como cortina de fumaça para intimidar os indígenas da TI.
“Vamos denunciar a imprensa e a polícia por racismo”, destacou Neoli, favorável à prisão dos indígenas que saquearam o caminhão, mas contra a forma como os indígenas têm sido tratados, que considera arbitrária e racista.
Os conflitos começaram na região na tarde de quarta-feira, 11 de novembro. A comunidade de Rio das Cobras possui cerca de 19 mil hectares e mais de três mil indígenas, das etnias Kaingang e Guarani – estes foram introduzidos ali após perderem suas terras no Oeste do Paraná, na década de 1950. Apesar de estar homologada desde o início do século 20 e ser a maior TI do Estado do Paraná, uma Rodovia Federal, BR 277, passa na beira da comunidade. Pelo menos desde 2014, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul), 22 indígenas morreram atropelados ali, além de outros transtornos que o fluxo de veículos causa à comunidade.
O início dos conflitos
No dia 11, o que ocorreu foi um acidente entre um caminhão baú, carregado com pneus, e uma van, causando uma vítima fatal. Indígenas foram até o caminhão e o arrombaram, levando parte da carga. A cena foi filmada por algumas pessoas.
Uma das imagens mostra os indígenas tentando abrir o caminhão baú. Nestas cenas, o corpo do homem da van aparece ao lado do caminhão, na grama. O agente que filma enfatiza que há um “cara morto” no chão.
Já em outro vídeo, um policial rodoviário federal aparece machucado na testa, e o corpo do homem que morreu no acidente é pisoteado por alguns indígenas. “Olha aí, invadiram o caminhão e a polícia tudo aqui e não pode fazer nada. Que que é isso, meu deus! Vai até quando um negócio desses? O cara morto. Tão pisoteando, ó, em cima do cara morto”, narrava o homem que grava as cenas.
Em seguida, alguns dos policiais que também assistiam vão até o corpo do homem que está ao lado do caminhão, e o retiram, trazendo para mais perto do canteiro que divide a rodovia e a TI, o cobrindo.
Quatro indígenas foram presos na ocasião e encaminhados à Polícia Civil de Nova Laranjeiras. Cinco dias depois, dia 16, a PRF disse que uma viatura foi furtada pelos indígenas que queriam a liberdade dos que estavam presos, e foram registrados conflitos na rodovia, onde imagens, também disseminadas pelas redes sociais, mostram o uso de gás lacrimogêneo pela polícia. Neste dia, os indígenas que estavam presos em Nova Laranjeiras foram transferidos, mas não foi informado para onde. A não informação foi justificada como medida de segurança, na época. O Batalhão de Choque também foi acionado.
Ataques racistas
Desde então, a comunidade passou a ser alvo de diversos ataques racistas nas redes sociais e teme pelas sucessivas ameaças que dizem receber na região.
A situação foi agravada após alguns veículos de imprensa local disseminarem discursos de ódio, em que comentários ao vivo diziam que a polícia deveria “quebrar no pau” os indígenas.
Mas toda a versão até então divulgada é contestada pelos indígenas, que concordam com a prisão dos Kaingang que efetuaram o saque, mas que apontam erros na condução e divulgação do caso.
“Aconteceram três situações”, frisou Neoli, elencando outros fatores para os conflitos na região. “O acidente, com consequência de saques, com todas aquelas imagens que saíram mundo a fora, o outro foi o conflito que houve na aldeia, da comunidade e da PRF, e também o manifesto da categoria dos professores”, explicou.
Fotografias contestam versão
Diferente das imagens que mostram o corpo do homem no chão, sendo pisoteado, fotografias retiradas pelos indígenas, que, segundo eles, foi feita antes do saque da carga, mostram o motorista da van, que morreu no acidente, dentro do veículo, e não ao lado do caminhão baú.
Uma outra imagem, mais distante, também mostra o corpo caído ao lado da van e a porta do caminhão ainda fechada, e não arrombada, contestando os vídeos divulgados pelos agentes policiais.
Segundo Neoli, o motorista da van morreu no momento do acidente, tendo o corpo removido para o lado do canteiro pelos próprios agentes policiais, que mudaram a cena do acidente para incriminar a comunidade. “O que nos deixou chateado nesse caso, e muito triste com o que aconteceu, foi que a PRF, que estava lá, que foi os primeiros que chegaram, eles removeram, eles alteraram a cena do acidente, sem a presença da perícia”, acusou.
Neoli defende que o corpo deveria ter sido tratado com respeito, sendo retirado e colocado em uma ambulância, ainda que fosse da concessionária responsável pela estrada. Ele também disse que a concessionária estava lá e não agiu nesse caso.
“Acredito que quem cometeu o crime maior foi quem deixou o corpo ali, praticamente jogou o corpo no acostamento para ser pisoteado. Esse é o nosso descontentamento. A polícia poderia ter agido diferente: pra que colocar o corpo ali pra justificar um ato criminoso? É crime saquear a carga? Tanto é que eles foram presos! Mas o que está pegando muito mal pra nós é os índios pisoteando o corpo. Mas não foram os índios que levaram ali. Os índios não foram buscar na van e trouxeram embaixo pra pisotear. Então é uma intenção de má fé muito clara. E é isso que vamos batalhar pra mostrar: que o rapaz que faleceu não estava ali. Alguém jogou no acostamento”, disse Neoli.
Quanto aos indígenas que roubaram a carga e que estão presos, ele disse que são pessoas que possuem problemas com alcoolismo e que devem se acertar com a Justiça.
Cortina de fumaça
Já no dia 16, e também diferente do que havia sido divulgado, Neoli conta que a comunidade havia se organizado para um ato contra o Processo Seletivo Simplificado (PSS) do Estado do Paraná, previsto para o ano de 2021. A principal reclamação nesta reivindicação é em relação ao edital 47/2020, que, entre outras demandas, coloca em xeque a autonomia na educação escolar indígena, conforme destacou o professor indígena e cientista social, Jean Carlos Karai Veloso. “Os atos que tem acontecido na rodovia foram contra o PSS: Sistema que tira autonomia das cartas da liderança sobre quem serão os professores que trabalharão na aldeia. Porque trabalhar na aldeia não é questão de concurso, mas perfil”, enfatizou.
Um ato foi organizado às margens da rodovia no dia 16, mas mudou de tom, segundo Neoli, após um indígena, em uma moto, ser atropelado dentro da TI por uma viatura da PRF, tendo escoriações e não recebendo ajuda. Esse teria sido o motivo para a contenção da viatura, o que desencadeou os conflitos.
“Talvez para a PRF seja normal aquele tipo de abordagem. Mas eles atropelaram um motoqueiro indígena. Deu danos materiais pra ele, escoriações, e simplesmente depois de identificar que era indígena estavam indo embora”, contou Neoli. Segundo ele, parte da comunidade foi em direção aos agentes, tomando as chaves do veículo e segurando a viatura. Eles exigiam o atendimento ao indígena atropelado. “A polícia PRF tava dentro da aldeia, foi atropelar dentro da aldeia o indígena. E a revolta foi por isso”, explicou.
Nesse dia, um conflito foi registrado na rodovia, envolvendo policiais que foram reaver a viatura e indígenas que pediam o atendimento ao membro da comunidade. Os policiais usaram bombas de gás lacrimogêneo e o Batalhão de Choque foi acionado.
Para Neoli, o caso ocorrido no dia 11 tem sido usado como cortina de fumaça para justificar as arbitrariedades da PRF contra a comunidade, que já vinham acontecendo. Dias antes ao saque, Neoli denunciou também que um indígena foi de bicicleta à cidade comprar gasolina e um agente da PRF o abordou, esvaziando a garrafa.
Já na sexta-feira, dia 20, após a sequência de atos, várias viaturas voltaram à região da aldeia. “Hoje [dia 20] adentraram pela PR [rodovia estadual], uns 5 km pra dentro da Terra Indígena. Contamos 13 viaturas, e hoje [dia 20], depois do almoço, chegou dois helicópteros. E eu não sei por que, mas está bem claro a provocação, a intimidação que estão fazendo. Não tem justificativa plausível. Eles dizem que foi porque foi apreendido o veículo. Mas já foi entregue. Eu não sei porque esse aparato todo”, disse Neoli, reiterando que, “todo esse aparato não deve ser a toa”.
Diante das ofensivas da PRF e dos ataques virtuais recebidos a partir da incitação de veículos de imprensa, os indígenas têm elaborado um dossiê para ajuizar uma ação civil pública contra imprensa e PRF por racismo.
Funai culpabiliza indígenas
A Fundação Nacional do Índio (Funai) emitiu uma nota ainda no dia 17 de novembro sobre o caso. Nela, Marcelo Xavier, presidente da entidade, disse que a Funai “repudia qualquer ato ilícito” e que “tem prestado apoio às autoridades policiais para a devida apuração dos fatos ocorridos no município de Nova Laranjeiras”.
No texto, Xavier fala que os indígenas “são perfeitamente responsáveis por suas ações”. Com vários termos jurídicos, ele também cita decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento de outros casos.
“Cabe destacar que a Funai tem se empenhado e promovido ações de conscientização junto às comunidades indígenas acerca da inviabilidade da prática de atos ilícitos. No caso do Estado do Paraná, o trabalho é realizado pela unidade descentralizada da fundação localizada em Guarapuava (PR), a qual acompanha o caso”, destacou trecho.
Entidades se manifestam
Na sexta-feira, dia 20, o Observatório da Temática Indígena na América Latina (Obial) cobrou que o Governo Federal se manifeste sobre o conflito. Em nota divulgada à imprensa, eles destacaram o processo histórico envolvendo a região e repudiaram a abstenção da Funai na defesa dos povos originários. O Obial acusa Xavier de “desconhecimento total da literatura antropológica e etno-histórica” dos Kaingang.
“É importante esclarecer que não foram os Kaingang os responsáveis pelo acidente e pela morte, mas a concessionária do pedágio e o governo federal que não deram condições de segurança aos usuários da rodovia. Porém, percebe-se que é mais fácil culpar os Kaingang que assumir a responsabilidade. O OBIAL conclama as autoridades responsáveis para que busquem soluções para o caso, inclusive removendo a rodovia do local se for o caso, mas que a comunidade indígena seja ouvida e, se for para manter a rodovia no local, que seja duplicada, que os Kaingang sejam mitigados permanentemente pelo uso de suas terras e impactos ambientais e que obras complementares de segurança para os indígenas sejam construídas, para que a comunidade indígena tenha mais segurança”, frisou.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul) também reforçou a defesa da comunidade, destacando a preocupação com os Kaingangs e Guaranis diante das violações aos direitos aos povos originários do local. A entidade se solidarizou com a vida de todas as vítimas que já morreram em acidentes na rodovia e pediu a duplicação da BR 277 bem como a efetiva proteção dos indígenas do local. “Os indígenas não causaram o acidente! Quem causou foi a própria rodovia!”
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da PRF, pedindo se houve violações, se a cena do acidente foi alterada, quem atropelou o indígena, no dia 16, e se a PRF abrirá uma investigação dos casos, com possível afastamento dos agentes em caso de culpa. Até a publicação desta reportagem, a PRF não havia retornado. A reportagem ainda aguarda a resposta.
Edição: Lia Bianchini.