Por Maria Guimarães.
“Tenho ossos para você.” Ao ouvir a tradução do aviso do queniano Pedro Ebeya, que trabalha na busca de fósseis, a bióloga Marta Lahr não imaginava o que veria. “Na superfície havia restos humanos quebrados”, disse ela em entrevista ao podcast da revista Nature, “mas em seguida vi a parte de trás do crânio de uma pessoa emergindo do solo”. Era o primeiro dia de trabalho de campo em 2012 na bacia do Turkana, no Quênia, e a escavação subsequente revelou uma raridade: um esqueleto inteiro, articulado, mostrando que aquele homem foi morto pela pancada na cabeça e ali ficou. Foi o primeiro de 12 esqueletos que se tornaram o mais antigo registro de um massacre, acontecido há 10 mil anos e descrito agora em artigo publicado na Nature de 21 de janeiro.
O cenário era Nataruk, uma área desértica no Quênia onde ossos despontam da areia. Mas há 10 mil anos estava às margens do lago Turkana, um cenário cheio de animais que atraía caçadores-coletores, segundo explica Marta, doutorada em antropologia biológica, que estuda e ensina evolução humana na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. E é argentina, mas cresceu no Brasil, onde cursou a graduação na Universidade de São Paulo – instituição em que chegou a ser professora. A presença de cerâmica que deveria ser usada para armazenar alimentos indica que ali poderia haver povoações humanas mais ou menos sedentárias.
Entre os 12 esqueletos encontrados, dez tinham sinais inequívocos de violência: pancadas na cabeça, sinais do que parecem ter sido flechadas na cabeça e no pescoço, joelhos, mãos e costelas fraturadas. O homem e a mulher sem ossos partidos estão em posições que indica terem morrido amarrados. Chocante é o caso da mulher com pés e mãos cruzados juntos (sinal de terem estado atados) e, na cavidade abdominal, o esqueleto de um feto em fase final da gestação.
Pontas de flecha em alguns esqueletos, inclusive uma enterrada em um crânio, são o testemunho de uma das armas usadas, com um enigma a mais: pontas feitas de obsidiana, uma rocha que não deveria existir na região naquela época. “O aspecto único de Nataruk é que fornece indícios conclusivos de conflito entre grupos”, explicou Marta. Com base no que viu, ela acredita que os recursos que existiam às margens do lago Turkana eram suficientes para levar à disputa violenta que ela enxerga no achado. Mesmo habituada a atuar como legista em uma cena de crime, a bióloga afirma que nunca tinha sonhado em encontrar os restos de um massacre.
Além dos esqueletos articulados, outros ossos dispersos ajudam a contar uma história. O grupo de Marta encontrou também ossos de 21 adultos, dos quais oito homens, oito mulheres e cinco não identificados, e seis crianças (todas perto de mulheres). Quase todas tinham menos de 6 anos, a não ser um adolescente cujos dentes indicam idade entre 12 e 15 anos, mas com ossos menores do que o esperado. Um cenário rico de detalhes para a imaginação, mas que também suscita perguntas. Como era o povoamento? Todos os habitantes foram mortos? De onde vinha a obsidiana? Marta espera descobrir nos próximos anos.
Artigo científico
LAHR, M. M. et al. Inter-group violence among early Holocene hunter-gatherers of West Turkana, Kenya. Nature, v. 529, n. 7586, p. 394-398, 21 jan 2016.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp