Estava ansiosa para assistir “As Sufragistas” por diversos motivos. O principal motivo é que eu sou apaixonada pela Meryl Streep desde “A morte lhe cai bem”, adoraria conhecer essa mulher e conversar algumas horinhas com ela. O outro motivo é que desde da polêmica da estratégia de marketing para a divulgação do filme eu queria assistir para pensar direito qual a representação do movimento sufragista britânico estava sendo reforçada para o mundo. Pois bem, eu assisti e tem uma série de questões no filme que é preciso refletir, pensar e formular. Ou seja, este texto está cheio de spoillers e se tu queres assistir sem saber do que rola no filme, então melhor parar de ler por aqui.
O lançamento e distribuição deste filme vem em momento oportuno para o debate feminista no mundo. Seja por conta dos enfrentamentos contra a violência machista que temos visto aparecer de forma cada vez mais contundente pelo mundo, seja as demandas mais democráticas de garantia de representatividade política e afins. É importante por que apresenta de forma categórica que a conquista do sufrágio feminino foi fruto de um processo de mobilização social importante das mulheres da classe trabalhadora do Reino Unido, processo travado com luta, suor, mortes e perseguição política constante. Penélope Duggan, militante irlandesa do NPA, em um texto sobre o filme aponta de forma bem contundente o quanto o marco é importante, pois o grau da repressão do império britânico junto as suffragettes foi usado depois na luta contra os republicanos irlandeses. A luta pelo sufrágio feminino no Reino Unido foi a ferramenta encontrada pelas mulheres para pautar o fato de não possuírem direito algum garantido perante ao Estado, os filhos, dinheiro e afins eram todos de seus maridos, pais e afins.
Esse é um mérito fundamental de “As Sufragistas”, mostrar que a luta pela igualdade entre homens e mulheres não está dissociada de uma questão de classe. Não posso dizer que não chorei ao ver as mulheres na frente de Westminster sendo massacradas pela polícia britânica ao denunciarem o golpe dado no parlamento britânico contra a mudança na lei do sufrágio, mulheres sendo arrastadas, com sangue escorrendo pelas suas faces por terem a coragem de enfrentar as mentiras e sortilégios do lobbysmo. Chorei por que não eram só elas arrastadas no começo do século XX, somos nós arrastadas em pleno século XXI também.
Há diversos momentos em que se demonstra o quanto a ausência dos direitos políticos das mulheres também as colocavam em lugares de coisas em seus locais de trabalho. O ápice de Maud Watts queimando a mão de seu patrão em um momento de jogar que não mais aceitaria assédio algum no local de trabalho demonstra isso profundamente. As mulheres não tinham direitos políticos e não tinham direito a sua própria vida e corpos, eram propriedade alheia. O filme toca, mas falha em diversos momentos. Não conseguimos ter a noção da amplitude de posições colocadas dentro do movimento de mulheres britânico para além da diferença entre as sufragistas e as suffragettes que fica bem esclarecida logo no começo quando se resgata a consígnia apresentada pelas Pankhurst da necessidade de ações concretas para modificar as leis para além dos lobbies praticados por parte do movimento até então. Essa diferença também pode ser vista em “Anjos Rebeldes” que retrata de maneira muito simplista o movimento sufragista estadunidense.
Outra questão importante também é o fato da diversidade das mulheres e da população britânica existente naquele momento. O filme se passa em East End, localidade de Londres que naquele momento era habitado por imigrantes irlandeses e judeus ashquenazes e estas representações são completamente limpadas das telas em “As Sufragistas”, não existem irlandesas na lavandaria onde Maud e Violet trabalham. Assim como não vemos a representação das mulheres não-brancas que já existiam no Reino Unido. Uma das mais conhecidas suffragettes indianas foi Sophia Duleep Singh foi militante importante na luta pela garantia do sufrágio feminino no Reino Unido, mesmo sendo indiana e tendo sua vida toda vilipendiada pelo império britânico. Mesmo que o processo migratório para o Reino Unido de negros só tenha se dado de forma mais contundente no pós-Segunda Guerra, haviam sim mulheres não-brancas habitando aquele país e construindo o movimento de garantia dos direitos das mulheres. E aí reside um problema em “As Sufragistas” decorrente da invisibilização da militância suffragette não-branca no processo britânico: a divisão de concepção política da disputa do movimento que existia entre Sylvia Pankhurst e Emmeline e Christabel Pankhurst.
British suffragettes were fighting for the rights of women in India: for example, Millicent Fawcett led the campaign against the horrific abuse of Indian sex workers outside British cantonments. But it’s also true to say that some suffragettes had a real passion for Empire, and Emmeline Pankhurst was one of them. (What did the suffragette movement britain really look)
Sufragistas britânicas estavam lutando pelos direitos das mulheres na Índia: por exemplo, Millicent Fawcett liderou a campanha contra abuso horrível de profissionais do sexo indianas fora dos acantonamentos britânicos. Mas também é verdade que algumas sufragistas tinha verdadeira paixão pelo Império, e Emmeline Pankhurst foi uma delas.
Sylvia Pankhurst foi quem realmente organizava as mulheres trabalhadoras de East End e comprou polêmica com sua mãe Emmeline e a irmã mais velha – é interessante que as duas imperialistas foram homenageadas com estátua na frente de Westminster e Sylvia esquecida – sobre a relação do movimento de mulheres e a defesa do imperialismo britânico em outras partes do mundo. No filme há uma breve citação sobre Sylvia não mais concordar com a linha política de Emmeline, mas nada muito desenvolvido entre as mulheres retratadas no filme. O que é de se estranhar, já que a região de Londres retratada era justamente onde Sylvia organizava seu trabalho político. Há um acerto do filme em retratar a importância das mulheres trabalhadoras no processo de disputa política existente no Reino Unido, porém o processo de invisibilização que existe de mulheres indianas, irlandesas, judias e das visões políticas colocadas naquele momento junto ao movimento são se nãos importantes. Ainda mais em um momento em que pensar ações feministas de forma interseccional é cada vez mais necessário.
Haveria como representar um enredo que garantisse a diversidade de representação e política que existia na época retratada por “As Sufragistas”? Sim, haveria. Violet poderia ser uma trabalhadora irlandesa, uma das Panks podia ter sido inspirada em Sophia Duleep Singh. Essas questões não são pinimba, mas é de como lidamos com a história da nossa luta, de como preservamos a real representação das coisas que aconteceram. O filme como filme feito por mulheres é bom, será um daqueles que usaremos para debate sobre o movimento feminista em debates, mas isso não quer dizer que não possua falhas importantes ao contar a história das mulheres de East End de forma a invisibilizar sua diversidade de identidade e política.
Nós feministas em luta hoje precisamos olhar para nossa história, pois pra mim a história de Sophia e Sylvia tambám fazem parte da história de luta que travamos hoje, para continuarmos a perseverar. Há uma mensagem poderosa e importante veiculada em “As Sufragistas” as pessoas nas ruas são capazes de modificar o que é dito natural, a força de mulheres inglesas, irlandesas e indianas foi capaz de modificar a política no Reino Unido as mulheres trabalhadoras de lá foram fundamentais para estabelecer um debate sério no movimento feminista em relação a diferença de classe e o imperialismo.
“As Sufragistas” pode ajudar em uma faceta do debate feminista atual, nós que aqui estamos devemos resgatar o resto que não foi apresentado pelo filme e continuarmos a nossa luta num processo de disputa de corações e mentes nas ruas para modificar a política como a história mostra que nós podemos fazer, mas sem invisibilização.
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Fonte: Opera Mundi.
Você assistiu a esse filme em algum cinema de Floripa?