Um incêndio de grandes proporções está devastando há dias uma área no interior da Ilha do Bananal, em Tocantins. A zona mais afetada é conhecida como Mata do Mamão e engloba a região sul da Terra Indígena (TI) Inawebohona, e uma pequena parte da vizinha TI Parque do Araguaia.
De acordo com Eliane Franco Martins, coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Goiás/Tocantins (GO/TO), o local é conhecido como último refúgio de um grupo de indígenas em isolamento voluntário. “A confirmação da presença deles foi o avistamento em outubro de 2019, durante um vôo de helicóptero”. Na ocasião, pontua Eliane, o grupo também estava fugindo do fogo, conforme imagens amplamente divulgadas pela imprensa local.
De acordo com a coordenadora, depois disso, uma decisão da Justiça Federal, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), determinou que o acesso à Mata do Mamão fosse restringido, obrigando a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) a apresentarem um relatório sobre a situação e as principais ameaças.
“Quase um ano depois, praticamente nada foi feito para impedir a entrada do fogo”, adverte Eliane. A coordenadora do regional recorda que, segundo os órgãos de fiscalização, um aceiro – espécie de clareira aberta para impedir a passagem do fogo – foi feito após as queimadas do ano passado. “Mas a recorrência do incêndio indica que essa medida não foi suficiente”, avalia.
Este vídeo de combate noturno ao fogo foi gravado dia 20 de setembro de 2020, na Terra Indígena Inawebohonã
“A Ilha tem pasto nativo e os fazendeiros da região aproveitam esta condição para colocar o gado lá dentro, por meio de arrendamento. Hoje a Ilha tem cerca de 100 mil cabeças de gado”
Pastagem extensiva
O missionário do Cimi GO/TO Carlos Almeida ressalta que o avanço do agronegócio interfere de forma agressiva no ecossistema e amplia a vulnerabilidade a incêndios. “A Ilha tem pasto nativo e os fazendeiros da região aproveitam esta condição para colocar o gado lá dentro, por meio da prática do arrendamento. Segundo a Agência de Defesa Agropecuária do Tocantins, hoje a Ilha tem cerca de 100 mil cabeças de gado, com 344 ‘retiros’, que é como se chama as sedes improvisadas dessas fazendas arrendadas”, ressalta.
A suspeita é de que o fogo seja iniciado de forma proposital, com o objetivo de fazer a limpeza do pasto. No entanto, o risco de descontrole é sempre iminente e as consequências, devastadoras. “Faz três anos que os incêndios estão adentrando a Mata do Mamão nesta mesma época, diminuindo a umidade e ampliando o perigo”.
“Estamos preocupados porque isso pode significar o extermínio deste povo em isolamento”
Menos negligência, mais agilidade
De olho nesta situação que se repete e agrava ano a ano, o Cimi Regional GO/TO enviou nesta quarta-feira (23) um ofício ao MPF de Tocantins solicitando atenção urgente a esta tragédia ambiental. “Estamos preocupados porque isso pode significar o extermínio deste povo em isolamento”, sustenta Eliane. Na avaliação dela, é necessário reforçar as equipes de combate ao fogo – tanto em número de pessoas, quanto em termos financeiros e de equipamentos.
Carlos ressalta que o Cimi recebeu vários relatos de lideranças indígenas e vídeos de membros da equipe de brigadistas informando que o incêndio está fora de controle. “A equipe já está lá combatendo o fogo há mais de 20 dias; estão sobrecarregados e agora o fogo está devastando a Mata do Mamão. É muito preocupante”.
Com área de cerca de 25 mil quilômetros quadrados, a Ilha do Bananal é considerada a maior ilha fluvial do mundo.
Amplo valor socioambiental
Com área de cerca de 25 mil quilômetros quadrados, a Ilha do Bananal é considerada a maior ilha fluvial do mundo. Ela está situada entre dois grandes rios: o Javaés e o Araguaia – nas divisas com Goiás e Mato Grosso – e integra os municípios tocantinense de Pium, Caseara, Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão e Marianópolis.
A ilha é uma das mais importantes áreas de conservação do Brasil, sendo que uma parte dela é parque nacional e a outra é TI. Além dos dois territórios citados – Inawebohona e Parque do Araguaia, ambos regularizados -, a Ilha do Bananal também abriga a TI Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna, que possui portaria declaratória e aguarda homologação.
Embora as demarcações não abranjam a Ilha do Bananal inteira, toda a faixa de terra cercada pelos rios é reivindicada pelos indígenas como território de ocupação tradicional. Do início de 2020 até o dia 23 de setembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 1255 focos de incêndio nestas três terras indígenas. Os dados são do satélite utilizado como referência pelo Inpe, o Aqua-MT, de propriedade da Nasa.
A TI Parque do Araguaia, a maior das três, registrou também o maior número de focos: 1003. Em 2019, ela foi também a TI com a maior quantidade de focos de queimadas no Brasil. Em 2020, até o dia 23 de setembro, as TIs Inawebohona e Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna registraram, respectivamente, 184 e 68 focos cada.
A maioria das queimadas identificadas pelo Inpe nas TIs da Ilha do Bananal ocorreram nos meses de agosto e setembro: foram 808 focos de incêndio apenas neste período, habitualmente mais seco.
O NPP-Suomi, outro satélite monitorado pelo programa Queimadas do Inpe, registrou vários focos de incêndio nas bordas da Mata do Mamão entre agosto e o dia 23 de setembro. Operado pela Nasa e pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) dos EUA, o sensor deste equipamento possui maior resolução espacial do que o satélite de referência do Inpe – o que significa que ele consegue captar frentes de fogo menores.
Devastação induzida
Na terça-feira (22), o presidente Jair Bolsonaro usou seu espaço na abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU para culpar “índios e caboclos” pelas queimadas e afirmar que o Brasil é líder “em conservação de florestas tropicais”.
Longe do retrato delirante pintado pelo presidente da República, contudo, as restrições orçamentárias, o desmonte dos órgãos de fiscalização e a retórica anti-ambiental do governo contribuem para que 2020 repita, com ainda mais gravidade, a temporada de incêndios que marcou 2019. Seis dias antes de encerrar, setembro de 2020 já registra uma quantidade de incêndios 42% maior na Amazônia, em comparação ao mês inteiro do ano passado, segundo os dados do Inpe.
No Pantanal, os 6048 focos registrados pelo Inpe até o dia 24 já fazem de setembro o pior mês da história do bioma em relação às queimadas. A situação também vem afetando duramente diversas terras indígenas da região, localizada entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
As TIs Tereza Cristina e Perigara, do povo Bororo, e Baía dos Guató, em Mato Grosso, já tiveram mais de 80% de sua área devastada pelos incêndios, aponta um levantamento do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da UFRJ. No Mato Grosso do Sul, a TI Kadiwéu – localizada na transição entre o Cerrado e o Pantanal – já teve 206 mil hectares queimados, aponta o mesmo estudo.
Os Regionais Oeste 1 e 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiram uma carta na qual lamentam a destruição do Pantanal e “o desmonte das instâncias de fiscalização e punição”.
No Maranhão, segundo o Regional do Cimi que atua no estado, as TIs Alto Turiaçu, Krikati, Arariboia, Governador, Pindaré e Cana Brava também vêm sendo gravemente afetadas pelos incêndios. As TIs Porquinhos, do povo Kanela Apanjekra, e Kanela, do povo Kanela Memortumré, também preocupam. Incluídas as áreas regularizadas e suas revisões de limites, ambas registraram 267 e 271 focos de incêndio até 23 de setembro, respectivamente, segundo dados do Inpe.
Nacionalmente, em mensagem divulgada nesta quarta-feira (24), a CNBB manifestou indignação com as queimadas que devastam as florestas do país, chamando atenção para o fato de que o já restrito orçamento para fiscalização do desmatamento em 2019, de R$ 102 milhões, foi reduzido em quase 25% neste ano.
“Mesmo diante de tamanha destruição, o governo federal paradoxalmente insiste em dizer que o Brasil está de parabéns com a proteção de seu meio ambiente”, critica a CNBB. “Esta atitude encontra-se em nítida contramão da consciência social e ambiental, na verdade beneficiando apenas grandes conglomerados econômicos que atuam na mineração e no agronegócio”.