Inação do governo agrava crise humanitária de venezuelanos em Roraima

Teresa Surita, prefeita de Boa Vista, admite falta de planejamento e que as medidas atuais do Estado para ajudar migrantes são insuficientes.

Foto: Mauro Pimentel

Por Paula Ramon.

Assim que os carros param nos semáforos das principais ruas de Boa Vista, capital de Roraima, um enxame de jovens venezuelanos, munidos de esponjas e garrafas plásticas cheias de água e sabão, se lançam para limpar vidros em troca de algumas moedas.

Outros, em esquinas diferentes, oferecem sua mão de obra em cartazes escritos à mão. De forma menos explícita e à noite, mulheres esperam clientes em um bairro do oeste da capital deste estado do norte do País, que faz fronteira com a Venezuela.

Milhares de migrantes ocupam praças e parques. Os que têm mais recursos se juntam para alugar um quarto. A Prefeitura de Boa Vista estima que haja 40 mil venezuelanos na cidade, mas ninguém sabe realmente quantos são.

“A crise humanitária está instalada”, afirma à AFP a prefeita Teresa Surita (MDB), que reconhece ter faltado planejamento e que Brasília demorou muito em agir para atender à migração maciça de venezuelanos que chegam há três anos ao Brasil por terra, fugindo de seu país por falta de comida, remédios e trabalho. “São muitas reuniões e poucas ações”, explica a prefeita.

A tranquila Boa Vista, com 330 mil habitantes, viu o fluxo aumentar a ponto de ser difícil andar na cidade sem ver a bandeira venezuelana em bonés ou mochilas.

Apesar de o governo federal anunciar recentemente medidas para atender à crise, a presença governamental não é vista nas ruas de Boa Vista, onde é difícil andar sem notar a situação de uma migração que busca como sobreviver.

Três espaços foram transformados em refúgios improvisados no ano passado, mas abrigam apenas 1,5 mil pessoas, muitas delas em condições precárias.

Direito ao trabalho

Estimativas oficiais advertem que entre 500 e 1,2 mil venezuelanos cruzam diariamente a fronteira com o Brasil, a 215 quilômetros de Boa Vista. Boa parte consegue se legalizar por meio de pedidos de refúgio ou residência temporária e segue até a capital do estado em busca de emprego e gastando na travessia o pouco dinheiro que tem.

René Santos, de 42 anos, deixou mulher e três filhos em Ciudad Bolívar, a quase mil quilômetros de distância. Desempregado, sobrevive há meses em uma barraca na praça Simón Bolívar, na avenida Venezuela.

“Há muitos profissionais nesta praça (…), o que precisamos é da ajuda de quem defende os direitos humanos. Porque este é um direito humano universal que merecemos: direito à vida, direito ao trabalho”, diz, segurando as lágrimas, este ex-operário da Siderúrgica do Orinoco, coração do polo industrial venezuelano em Ciudad Guayana, que chegou a simbolizar o progresso nacional e agora agoniza.

Na praça, centenas de migrantes pernoitam em barracas e em papelões. Não há nenhum tipo de estrutura provisória neste local, que ironicamente exibe em vários idiomas a legenda “Bem-vindos a Boa Vista”.

Os venezuelanos usam os banheiros de um posto de gasolina próximo e do vizinho terminal de ônibus, e, em sua maioria, se alimentam graças à caridade de pessoas como Leila Bezerra, que passa horas cozinhando donativos para preparar mil refeições.

“A gente tem de ajudar porque eles não estão aqui porque querem, eles estão aqui porque estão com fome”, diz, enquanto mexe uma enorme panela com mais de 30 quilos de feijão e salsicha.

Como um criminoso

Apesar destas iniciativas individuais, a socióloga France Rodrigues, professora da Universidade Federal de Roraima, destaca um aumento da xenofobia, que se manifesta em discriminação e falta de vontade política.

“É preciso a ação dos governantes, mas o que a gente vê aqui são senadores e políticos querendo fechar a fronteira ou tentativas de limpar a cidade porque não querem os venezuelanos aqui”, afirma. contradizendo as palavras de Filippo Grandi, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), que há semanas classificou o governo brasileiro de “campeão da causa dos refugiados”.

Víctor Lira, de 27 anos, percorreu quase 1,5 mil quilômetros de Caracas a Boa Vista. Chegou há três meses e não conseguiu emprego. Vive nesta praça em um arremedo de barraca, feita com sacos de plástico preto.

“Consegui dois reais ontem e fui ao mercado comprar bananas. Acharam que eu queria roubar. Você sabe como é difícil que te tratem como um criminoso, quando o que você quer é comprar comida?”, diz, com lágrimas nos olhos.

Mas a rejeição não é exclusiva dos brasileiros. Alguns venezuelanos que já se estabeleceram em Boa Vista são favoráveis a fechar a fronteira ou torcem o nariz quando perguntados sobre a onda migratória. “Deveriam ser mais rigorosos e não deixar entrar todo mundo”, afirma Eduardo Pérez, venezuelano com mais de cinco anos na cidade, que trabalha em um restaurante.

Recentemente, o governo federal anunciou a abertura de 530 vagas para transferir venezuelanos para São Paulo e Manaus. Mas por causa dos requisitos sanitários, apenas vinte pessoas de todos os recenseados estariam aptas para viajar imediatamente, explica a prefeita Surita. “O que estamos fazendo não resolve a situação”, admite.

“A realidade anda sozinha, enquanto ficamos discutindo”, diz a socióloga France Rodrigues. “O Brasil, com sua dimensão continental, tem como e poderia, sim, aproveitar essa migração, mas infelizmente não é isso que acontece”, afirma.

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