Por Caroline Oliveira.
As queimadas na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, têm provocado mudanças significativas na paisagem, segundo quem vive diariamente na região. Vinicius Curva, morador da Vila de São Jorge, afirma que nos últimos anos “houve um grande aumento no número de focos de incêndio, que têm causado mudanças dramáticas na paisagem”.
Brigadista voluntário desde 2017, ele afirma que uma das consequências, ainda que sutil de ser percebida, é que se tornou raro ver animais de grande porte na região, além de ausência de vegetais e alguns frutos.
“Às vezes passa um ano e a gente quase não come mangaba, passa um ano e a gente come pouco caju. Não é só a gente que come fruta, os bichos também comem. Isso implica numa reação em cadeia muito maior do que a gente percebe.”
Scarlett Luz, empreendedora e professora, que mora na região há 18 anos, também sente que a área verde reduziu “bastante”, enquanto a área de monocultura cresceu.
“Nesse período, já era para ter uma grande quantidade de cajuzinho e, neste ano, não deu ainda em grande quantidade. Acho que é um conjunto, são as queimadas com os agrotóxicos que são pulverizados na lavoura. Grande parte do que queimou agora é só lavoura e pastagem.”
Em 2020, foram registrados 552 focos de incêndio nos oito municípios que compõem a Microrregião da Chapada dos Veadeiros, segundo o Banco de Dados de Queimadas (BDQ), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). De janeiro até setembro deste ano, já são 609 focos. Diante de tantos incêndios, seria comum a expectativa por um número razoável de investigações sobre os possíveis culpados e causas.
Também em 2020, entretanto, foram instaurados somente quatro inquéritos policiais referentes a incêndios em vegetação na região, e apenas um inquérito com autoria apontada pelas autoridades e investigações policiais de Goiás foi enviado ao Judiciário, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado, obtidos pelo Brasil de Fato por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
O órgão também informou que o número de ocorrências de incêndios registradas pelo Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás é expressivamente menor do que os focos contabilizados pelo Inpe, apenas 59 ocorrências diante de 552 focos.
Isso porque o Banco de Dados de Queimadas detecta focos de incêndio por análises espaciais e temporais em imagens de satélites, atualizados a cada três horas, enquanto os registros do Corpo de Bombeiros são referentes apenas àqueles que são comunicados ao órgão.
Neste ano, de janeiro a setembro, foram abertos oito inquéritos, e apenas três com autoria definida foram enviados ao Judiciário. A SSP também informou que os dados “estão sujeitos a variações conforme o andamento das investigações”.
Neste período, Corpo de Bombeiros atendeu a 255 ocorrências. O Brasil de Fato procurou o Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás para comentar a diferença em relação aos dados do Inpe, mas não houve um retorno até a publicação desta reportagem.
Processos administrativos
Segundo Yuri Marinho, consultor ambiental, a esfera criminal não é o caminho mais comum no Brasil quando se trata de infrações ambientais. Há um número extenso de multas, que são de natureza administrativa, e processos judiciais de natureza cível. Inquéritos policiais, essencialmente, não se referem a questões administrativas ou cíveis, mas a crimes conforme tipificação em lei.
No âmbito federal, os dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no entanto, também são expressivamente ínfimos em relação às autuações ambientais com infrações do tipo “flora”.
Em 2020, foram apenas duas autuações no conjunto dos oito municípios que compõem a Microrregião da Chapada dos Veadeiros, totalizando R$ 181.224,30 em multas.
De janeiro a setembro de 2021, foram sete autuações, no valor de R$ 1.261.950,50 em multas. A quase totalidade das infrações se relacionam ao descumprimento de normas estabelecidas pelo Decreto 6.514 de 2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente.
Diante dos números, Suely Araújo, ex-presidenta do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, afirma que “os órgãos ambientais se esforçam para combater os incêndios, mas têm muita dificuldade de responsabilizar os culpados. As autoridades policiais instauram poucos inquéritos sobre ilícitos penais referentes a incêndios”.
Para Araújo, “a sociedade tem de cobrar medidas enérgicas para a prevenção e o controle dos incêndios nas matas e florestas e, isso é muito importante, para a responsabilização dos que deram causa a eles. Destruição não pode ser entendida como um quadro normal, advindo de práticas culturais”. E questiona: “Para que servem as leis nesse país?”.
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No âmbito estadual, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad) não disponibiliza os Autos de Infrações Ambientais online, como faz o Ibama. O Brasil de Fato entrou em contato com o órgão solicitando as informações, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Não faltam leis
Para Murilo Mendonça, integrante da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Goiás (UEG), os números indicam que há uma complacência dos poderes ao não criminalizar a questão do fogo. “Acabam considerando as questões como acidentais e não levam os processos adiante.”
No estado de Goiás, explica o pesquisador, “sobram” leis ambientais que recaem sobre os incêndios de vegetação. “A questão não é a falta de leis, mas principalmente a falta de punições. Esse é o grande problema, porque além da própria lei de crimes ambientais e do código ambiental – que prevê de dois até seis anos de prisão, além de multas, ou seja, não é uma legislação tão branda –, essas punições não acontecem, em função de questões políticas.”
“O que poderia facilitar seria uma ação mais forte do Ministério Público ou da área judicial relacionada à questão do meio ambiente ou das próprias polícias ambientais”, afirma Mendonça. Para o professor, “o grande problema é a vontade política de resolver e, de fato, investigar” as causas do incêndio”.
Para Yuri Marinho, praticamente nenhum órgão de fiscalização ambiental está em boas condições de atuar no momento atual. Soma-se a isso o posicionamento político do governo federal contrário a uma cultura de fiscalização e preservação do meio ambiente.
“A gente vive um momento em que os fiscais não se sentem moralmente autorizados a fiscalizar e combater como em anos anteriores. Penso que parte dos donos de áreas, por outro lado, se sentem empoderados, e acho que existe uma estrutura momentânea política de tratar tudo isso como algo normal”, afirma Marinho.
Na mesma linha, Mariana Napolitano, gerente de Ciências do WWF Brasil, afirma que “a redução da capacidade de fiscalização e autuação dos órgãos responsáveis” contribui para esse cenário e o aumento dos focos de incêndio.
Segundo dados da organização, entre 1 de janeiro e 30 de setembro de 2021 foram registrados 73 focos de incêndio somente no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o maior número desde 2017 — 62% superior à média de focos que atingiram o parque nos últimos dez anos: 45,6 focos.
Nessa conta, “a agropecuária continua a ser um grande impulsionador do desmatamento e perda de outros ecossistemas naturais no Brasil. No Cerrado, a savana mais antiga e biodiversa do mundo, mais de 7,3 mil quilômetros quadrados foram perdidos em 2020, e essa destruição está acontecendo ainda mais rapidamente este ano”, afirma Napolitano.
Na mira do agronegócio
Trata-se, na visão de Murilo Mendonça, de uma estratégia do agronegócio de avançar nas fronteiras agrícolas, a partir das queimadas, estratégia essa efetivada com o apoio do governo federal.
Por isso, a “precarização de todas as instituições de combate e fiscalização”, aponta.
“Nesse governo, especificamente nos últimos dois anos, a gente tem visto tanto no âmbito do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] quanto no do Ibama uma precarização da estrutura. Na verdade, é um boicote que o governo faz a essas organizações no sentido de controle de fiscalização”.
Os novos focos de queimadas na região da Chapada dos Veadeiros comprovaram o avanço da fronteira agrícola, uma vez que se concentram na região oeste ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, segundo dados do Inpe e da plataforma MapBiomas, cruzados pelo Brasil de Fato.
Na região leste, predominam os registros de regiões que já foram desmatadas e que agora são utilizadas para pastagem. No lado oeste do parque, onde foram observadas queimadas de grandes proporções neste setembro, predominam os registros de incêndios.
“Teve um aumento maior de áreas recentes. A gente tem o maior desenvolvimento dos últimos anos em áreas novas do que em áreas já consolidadas em termos de desmatamento”, afirma Mendonça.
“Esse avanço no estado de Goiás pelos grandes latifundiários de utilizar o fogo e o desmatamento como estratégia para abrir novas áreas para o agronegócio, tem ocorrido especialmente nessa área que é a região da Chapada dos Veadeiros”, afirma Mendonça.
Neste ano, na segunda quinzena de setembro, o incêndio que ganhou as capas dos jornais após atingir o Vale da Lua, ponto turístico da região, queimou 36 mil hectares da região oeste ao parque. A investigação da Polícia Civil de Goiás recai sobre um fazendeiro que estaria ateando fogo em restos de vegetação desmatada de sua propriedade.
Mudança contundente da paisagem
Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), afirma que, nos últimos anos, a estrada que liga Brasília à região da Chapada dos Veadeiros tem sido transformada basicamente em áreas de grandes cultivos.
“Estão tendo várias transformações ao redor da Chapada, transformações na paisagem que são contundentes, uma conversão completa do Cerrado em grandes campos de soja. Isso tem um efeito na dinâmica do balanço de energia daquela região”, diz Alencar.
A diretora explica que o fogo natural faz parte do processo evolutivo do Cerrado, mas ocorre em condições específicas, próximo às chuvas e sem grande extensão. “Isso nos leva a crer que o fogo hoje no Cerrado acontece principalmente porque as pessoas colocam fogo”, afirma Alencar.
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“Uma das principais fontes para o fogo é a limpeza de pastagem. O fogo é uma etapa do processo de desmatamento. Na região do Cerrado, muitas das áreas que foram desmatadas são desmatadas com trator. Então, o trator e o correntão vão derrubando essas árvores, depois formam-se as pilhas de madeira que foram derrubadas, que depois são queimadas. O fogo é essa ferramenta de conversão do que foi desmatado em cinzas”, explica Alencar.
O mesmo é percebido por Vinicius Curva. “Num momento você percebe ali uma vegetação nativa e no outro momento você vê tudo cortado e calcinado e depois surge soja, eucalipto, palma e milho, algum tipo de monocultura.”
No Congresso Nacional, o deputado federal Delegado Waldir (PSL/GO), protocolou o Projeto de Decreto Legislativo 338, em agosto deste ano, para sustar a ampliação do parque feita em 2017, de 65.514 hectares para 240.586,56 hectares. Segundo o parlamentar, o “aumento desmedido de seu tamanho prejudica os agricultores da região”.
Edição: Leandro Melito